quarta-feira, 1 de junho de 2011

A verdade do drama

Martin Esslin


          A maior parte do drama é ficção colocada à nossa frente por seres humanos reais; ao contrário da ficção puramente literária, ele se torna, assim, visível e palpável, dotado da forma e do impacto da carne viva. Tais elementos emprestam uma forte dose de realidade à ficção; por assim dizer, emprestam sua realidade à fantasia do autor.

          Toda ficção, até mesmo a mais naturalista, a mais estritamente documentária de todas as peças, pode ser encarada como uma fantasia, um sonhar de olhos abertos do autor, o que em essência jamais deixa de ser. O autor da mais rigorosamente documentada e pesquisada das peças históricas imagina todos os detalhes, todas as tensões emocionais dos personagens, para depois poder configurar suas fantasias de forma artística. Se ele nos quiser mostrar Napoleão no campo de batalha de Waterloo, ele terá de imaginar o que estaria sentindo Napoleão antes de escrever o que imagina que este tenha feito ou dito.

          É lugar comum da herança da sabedoria popular dizer-se que a ficção é uma forma de mentira. Considerando-se libertado das conseqüências que poderão advir de qualquer coisa que possa dizer ou fazer no mundo real, o inventor de histórias, de situações manipuladas, fica livre para satisfazer suas mais desatinadas fantasias.

          No entanto, sob outro aspecto, estas vão constituir-se verdades importantes. Elas nos falarão das fantasias de seus autores, dos devaneios e visões que lhes ocorrem quando deixam soltas as rédeas da imaginação. E tais devaneios e imaginações e fantasias são verdades que contém material precioso a respeito da vida interior de seus criadores, fornecendo-nos profundos insights da personalidade e psicologia dos seres humanos que os produziram.

          Toda obra de ficção, portanto, nascendo como nasce dos processos mentais conscientes e subconscientes do autor é um documento humano precioso. Os desenhos e escritos de doentes mentais podem ter enorme valor para o diagnóstico e cura de sua condição, do mesmo modo que o podem os sonhos que os pacientes relatam a seus psicanalistas.

          As obras de arte da ficção são obviamente diferentes sob muitos aspectos das fantasias desses pacientes, porém elas também têm certos aspectos comuns a elas. O dramaturgo que escreve os diálogos para um poersonagem que seria de Napoleão tem de penetrar imaginativamente na mente de Napoleão; o doente mental que pensa que é Napoleão faz a mesma coisa, porém com maior intensidade e sem a capacidade de controlar sua fantasia, de distinguir o fato da ficção.

          Mas a principal diferença entre as fantasias dos doentes mentais e a arte da ficção reside no grau de sua relevância para um grande número de pessoas, na universalidade da arte e, acima de tudo, da medida de habilidade com a qual esta última dá forma aos devaneios e às fantasias. Se acontece que este ou aquele indivíduo se entrega a devaneios e vidas fantasiosas para aliviar suas tensões psicológicas particulares, então as criações de um artista têm a capacidade de aliviar as tensões psicológicas de grande número de indivíduos - bem como as de seus autores. É por isso que ler ficção ou assistir a um drama não constituem, para muito gente, apenas atividades aprazíveis, mas sim uma verdadeira necessidade.

          Um dramaturgo ao imaginar seus personagens e o diálogo que trocam, precisa, se ele realmente tem habilidade, penetrar nos sentimentos, nas reações, nos maneirismos individuais do modo de falar de cada personagem. Por outro lado, cada personagem que assim nasce da mente de seu criador, irá de algum modo corresponder e representar certos aspectos e elementos da experiência pessoal e da estrutura psicológica daquele dramaturgo; toda imaginação terá sempre de basear-se em pelo menos um germe de experiência pessoal.

          Assim, poderíamos dizer que ao criar Macbeth, Shakespeare teria de buscar aquela parcela de sua própria psicologia que era ambiciosa e agressiva, mas que ao imaginar Lady Macduff, tão terrivelmente assassinada na mesma peça, Shakespeare teria de explorar aquela parte dele mesmo que era delicada, amorosa e aterrorizada pela violência.

          Freqüentemente ouvimos certos dramaturgos falarem de personagens que, uma vez imaginados, por algum fenômeno adquirem uma certa autonomia de ação e, na verdade, recusam-se a fazer o que o autor havia planejado inicialmente. Em outras palavras, isso significaria que determinados elementos da personalidade do dramaturgo, digamos o componente agressivo de sua personalidade que permeou sua caracterização de um assassino, entrou em conflito com os outros elementos de sua personalidade representados por outros personagens, do mesmo modo que alguém, uma vez que tenha começado a bater em seu oponente em uma briga, pode repentinamente ver-se incapaz de parar, muito embora seus instintos de respeitador da lei exortem-no fortemente a parar.

          A peça de Pirandello Seis Personagens à Procura de um Autor trata diretamente desse aspecto da experiência de um dramaturgo em relação à sua própria arte. Tendo sido imaginados e depois descartados, aqueles personagens adquiriram tal força autônoma que insistem em adquirir vida própria no palco. Por que razão não teria Pirandello querido continuar aquela trama que abandonou? Será que aqueles personagens repentinamente colocaram-no em confronto com um aspecto dele mesmo que desejava reprimir? Provavelmente sim, e foi o conflito com ele mesmo que, como autor, tentou dramatizar com toda a habilidade consciente e a inteligência que tinha à sua disposição.

          Tais considerações não são apenas interessantes do ponto de vista da psicologia do ato criativo de um dramaturgo. Elas são também extremamente relevantes para o estudo da própria natureza do drama, pois nos mostram que toda ficção, inclusive o drama, é verdadeira, se não nos fatos que concernem às circunstâncias exteriores delineadas na trama e nos personagens, muito mais o é na penetração que podemos ter, por intermédio dos personagens, na mente do autor e, desse modo, no modo pelo qual ele pensa e sente.
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Fragmento extraído do capítulo A Verdade do Drama, que encerra o maravilhoso livro Uma Anatomia do Drama, do qual já retirei alguns segmentos e os coloquei neste blog. Aliás, recomendo com total entusiasmo a leitura deste volume, imprescindível a todos os profissionais ligados ao teatro e, mais especificamente, àqueles que se dedicam a escrever textos teatrais.

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