segunda-feira, 27 de junho de 2011

Teatro/CRÍTICA

"Novecentos"

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O ideal do humano


Lionel Fischer


"Novecentos não é um número, não é uma data; é um nome. No primeiro ano do novo século, o século XX, um bebê recém-nascido é encontrado dentro de uma caixa de papelão, em cima do piano de cauda do salão de baile da primeira classe do navio a vapor Virginian, que fazia a rota Europa/América. Não havia nada que indicasse quem era ou sua origem. Apenas uma inscrição no papelão da caixa: T. D. Lemon.

O marinheiro que o encontra, Danny Boodmann, toma-o nos braços, diz 'Hello Lemon!' e resolve adotá-lo e batizá-lo de Danny Boodmann T. D. Lemon Novecentos. Aos 8 anos, com a morte de Danny Boodmann, Novecentos fica órfão pela segunda vez e passa a ser filho do navio, onde cresce, torna-se um exímio pianista, passa sua vida sem jamais pisar em terra firme e, mesmo assim, ganha a fama de ser o melhor pianista de todos os tempos".

Os parágrafos acima, extraídos do programa oferecido ao público, sintetizam o enredo deste surpreendente e singular monólogo, em cartaz no Midrash Centro Cultural (Rua Gal. Venâncio Flores, 184, Leblon). De autoria do italiano Alessandro Baricco, o texto chega à cena com direção de Victor Garcia Peralta e atuação de Isio Ghelman - Peralta e Ghelman também respondem pela tradução.

Romancista de sucesso, Alessandro Baricco fez com "Novecentos" sua primeira incursão no teatro, e define o texto como "uma bela história que valia a pena ser contada". E tem toda a razão: estamos diante de uma bela história, uma espécie de conto que é "lido" e narrado pelo trompetista que tocou e conviveu muitos anos com Novecentos, e que permite múltiplas leituras.

Como seria altamente improvável, em termos reais, que alguém passasse 33 anos em um navio sem jamais deixá-lo, tudo me leva a crer que o autor pretendeu escrever uma espécie de fábula, cujo significado, como dito acima, faculta diversificadas interpretações.
Para mim, o protagonista, sem deixar de ser um personagem, é bem mais do que isto. Senão, vejamos.

Ninguém o ensinou a tocar piano, mas toca magistralmente. Jamais executa uma peça conhecida e tampouco repete as que inventa sucessivamente. Gera inenarrável prazer tanto aos passageiros da primeira classe quanto aos emigrantes da terceira, convertendo em sublimes melodias os diversificados sonhos dos que o escutam. É doce e educado, mas ao mesmo tempo inacessível. Além da música, sua única relação palpável é com o oceano, cuja vastidão e mistérios não parecem inquietá-lo; pelo contrário, sugerem conforto e paz. 

Assim, de que matéria seria feita esta singular personalidade? Quem seria, afinal, esse homem que, com os outros homens, só se relaciona através de sons? Obviamente que não se trata apenas de um pianista, pois todos os pianistas, ainda que célebres, estabalecem laços mais concretos com pessoas, ainda que em número reduzido. Em resumo: estamos diante de um personagem ou de um símbolo?

Na dúvida, opto pela segunda hipótese. Ao menos para mim, Novecentos materializa o que poderia nomear de ideal, ou seja, o humano em estado de total pureza, generosidade, infinita capacidade de gerar alegria sem jamais esperar qualquer tipo de retribuição. 

Caso fosse religioso, ousaria supor que Novecentos não é deste mundo, que a ele foi enviado por um poder superior para cumprir uma missão específica. Na condição de agnóstico, acho mais coerente me limitar ao que disse algumas linhas acima. Mas, também como já foi dito, certamente cada espectador criará sua versão para Novecentos. E, provavelmente, todas serão válidas.

No tocante ao espetáculo, Victor Garcia Peralta explora com sabedoria e sensibilidade a despojada cenografia e sutil iluminação assinadas por Maneco Quinderé e Miguel Pinto Guimarães, sendo impecável a atuação que extrai de Isio Ghelman.

Neste particular, gostaria de registrar o seguinte: ao longo desses 22 anos exercendo a crítica teatral, devo ter assistido a pelo menos 90% dos trabalhos feitos por este ator que, em nenhuma ocasião, exibiu uma performance inconvincente.

Ou seja: quando as condições foram mais favoráveis, esteve brilhante; em caso contrário, no mínimo digno e crível. Como aqui tudo conspira a favor, Isio Ghelman demonstra seu sólido talento,  sua inteligência cênica e a originalidade de suas escolhas. Sem dúvida, uma das performances mais marcantes da atual temporada.

No complemento da equipe técnica, destaco com o mesmo entusiasmo a expressiva trilha sonora de Ary Coslov, a ótima direção de movimento de Cristiana Lara Resende e a fluente tradução de Victor Garcia Peralta e Isio Ghelman.

NOVECENTOS - Texto de Alessandro Baricco. Direção de Victor Garcia Peralta. Com Isio Ghelman. Midrash Centro Cultural. Sábado às 21h, domingo ás 20h.      
  

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