quinta-feira, 21 de junho de 2012

Bergman homenageia Freud

mais que sonhos em comum


por Claudia Bavagnoli*


Fazer filmes é mergulhar até as mais profundas raízes, até o mundo da infância. (Bergman)




          No final do século XIX, especificamente em 1895, nasceram oficialmente a Psicanálise e o cinema: Sigmund Freud publicou seus primeiros estudos e Louis Lumière fez a primeira projeção cinematográfica a um público pagante.


          Durante o amadurecimento de ambos, profissionais desses e de outros campos - como realizadores cinematográficos, psicanalistas e pensadores em geral - perceberam relações entre tais áreas e se dedicaram a estudá-las.


          Hugo Mauerhofer foi quem idealizou uma situação cinematográfica. Nesta não devem existir distúrbios audiovisuais, apenas as emissões provenientes do filme, deixando o espectador totalmente afastado do mundo exterior à sala de projeção, o que acarreta uma fuga voluntária da realidade cotidiana. O espectador assiste ao filme semi- imobilizado e anonimamente isolado, no escuro, condição que gera afinidade com o estado do sono, possibilitando então que a situação cinematográfica assuma uma função psico-terapêutica.


          Edgar Morin, em O Cinema ou Homem Imaginário, aponta as anomalias que aparentam o cinema e o sonho, as características para- hipnóticas da sessão cinematográfica: obscuridade, encantamento por meio da imagem, descontração "confortável", passividade e impotência física. Como ocorre durante o sonho, Morin verificou a projeção-identificação do espectador com o filme.


          As analogias entre cinema e sonho, ao unirem seus diversos elementos constituintes - o escuro, o isolamento, a alucinação, a projeção... - fazem com que o cinema seja visto como um simulacro do sonho. Especulando, nota-se que o tempo de duração da fase do sono na qual se sonha, REM (Rapid Eye Moviment), dura cerca de 90min, aproximadamente, a mesma duração dos filmes. Segundo a cineasta brasileira Ana Carolina: "de noite somos todos diretores de cinema, porque um sonho é como um filme que cada um de nos faz com inteira liberdade."


          O presente trabalho não será conduzido pelas relações entre sonho e cinema, assunto que ainda hoje gera estudos, mas pela análise de um filme em especial, no qual o sonho é tematizado: Morangos Silvestres (Smultronstället) de Ingmar Bergman, Suécia, 1957.


          Morangos Silvestres conta a história de um médico e professor aposentado, Isaak Borg (Victor Sjostrom), que aos 78 anos será homenageado com o título honorário da Universidade de Lund, sua cidade natal, a qual abandonara em favor de Estocolmo. Desde a véspera até a chegada em Lund, Borg é invadido por recordações do passado que confrontam o seu presente. Sonhos, devaneios e flashbacks conduzem-no a um mergulho no inconsciente, fazendo-o perceber que seu temperamento áspero e distante impossibilita o envolvimento afetivo com familiares e amigos, protegendo-o do sofrimento e, por outro lado, isolando-o. A constatação da velhice e solidão trazem a presença iminente da morte, incitando-o a repensar sua vida durante o percurso que faz até Lund. O desencadeador dessa viagem introspectiva é o sonho que teve na noite anterior à partida para a sua celebração.


          Em um ensaio intitulado O outro lado do sonho em Morangos Silvestres tal sonho é analisado por Eduardo Peñuela Cañizal. Utilizando-se de modelos semânticos de metáfora e a visão freudiana dos processos oníricos, ele inicia a análise tomando por base os comentários e a sinopse que o próprio Bergman faz sobre o filme e sua vida, reunidos no livro Imagens.


          Quanto à sinopse, Bergman se limita a relatar que Borg receberá uma homenagem em Lund e, na noite de véspera, sonha estar em uma cidade desconhecida e despovoada, onde um caixão cai de um carro funerário deixando escapar uma mão que o agarra: o morto tem a sua aparência. Peñuela observa que a descrição limita-se a uma parte do conteúdo manifesto do sonho: não são mencionados a figurativização do carro-carruagem, seu suposto percurso por ruas vazias, a velocidade que a carruagem adquire ao perder a roda e o barulho da queda do caixão. O enorme relógio sem ponteiros que denota um tempo imensurável também é ignorado.


          Os comentários recortados por Peñuela de Imagens sobre a época da criação do roteiro, mostram o diretor sueco num momento tumultuado: separava-se de Bibi Anderson e revivia conflitos com seus pais. Bergman compara a condição de seu personagem com a de seu pai e com a própria: privação de relações humanas, necessidade de se impor, introversão e fracasso apesar do sucesso profissional. Escreveu sobre a dificuldade de assistir aos próprios filmes por estes serem concebidos em todo seu corpo, principalmente nos intestinos.


           Peñuela compara também cartas desse período que Bergman troca com amigos ao relato que Borg faz no prólogo do filme. As revelações coincidem: angústia, solidão, isolamento e preocupação com o trabalho em processo. A vida de Bergman, extradiegética, dialoga com a vida do personagem que cria, intradiegética - mesmo se tratando de modalidades textuais diferentes, uma real e outra ficcional, há vozes ressonantes nesses dois textos: os traços psicológicos dos dois indivíduos.


          O sonho em questão é interpretado por Peñuela de acordo com a teoria freudiana que, resumidamente, defende a idéia dele ser composto por dois conteúdos: o manifesto (como o sonho se apresenta na memória) e o latente (os "pensamentos do sonho", a significação). Esses conteúdos são apresentados como duas versões do mesmo assunto em duas linguagens diferentes: o manifesto seria a transcrição pictórica do latente, seus caracteres devem ser individualmente transpostos para a linguagem do sonho ser interpretada.


          Os mecanismos fundamentais do trabalho do sonho são: condensação, deslocamento, figuração e elaboração secundária (Freud, 1987,p 270-298). Segundo Peñuela, a condensação é enunciada no sonho de Isaak com a sobreposição de imagens, originando uma mistura de corporalidades diferentes. O deslocamento é percebido com a duplicidade de Isaak Borg, dentro e fora do caixão puxando a si mesmo, com a liberação do compromisso temporal e racional.


          Implementando esse raciocínio, ressalvo a presença do relógio sem ponteiros que, ao invés de fazer tic-tac, bate como um coração, desnorteando o velho professor que procura alívio nas sombras; e também indico a presença de um homem com as feições fechadas e presas no centro do rosto, como um umbigo, que ao cair no chão, apesar de parecer uma estátua oca, sangra.


          Quanto ao conteúdo latente, Peñuela reflete a significação de tal sonho partindo do paradigma da alimentação: o cineasta afirmara que seus filmes foram concebidos nos intestinos e Borg é chamado a almoçar no prólogo do filme, antes de serem dados os créditos que precedem o sonho com a carruagem vinda por ruas tortuosas que ao perder a roda e liberar o caixão sai em disparada. Por metáforas, Peñuela observa: "a carruagem teria partido de um necrotério- estômago trazendo o caixão- excremento até que sua traseira- ânus o arrojasse para fora". O sentido latente dessa seqüência se faz presente por meio de uma representação metafórica da defecação.


          Peñuela acredita que Bergman utilizou como modelo para esse simulacro de sonho a obra de Freud intitulada "Analises de la fobia de un niño de 5 años (el pequeño Hans)" (1993), na qual há passagens em que Hans relata ao pai problemas que tinha para defecar por meio de metáforas: "as carruagens carregadas podem virar, são como barrigas cheias, por isso assustam; já as vazias não".


          Seu ensaio, sustentado pela teoria freudiana da "Interpretação dos sonhos", dialoga o sonho de Borg e o caso do pequeno Hans. Mas Peñuela também nos mostrou que Borg e Bergman dialogam. Conclui-se então que Bergman, utilizando-se do sonho de Borg, seu provável simulacro, livra-se de fatos que pesavam e incomodavam sua vida, conseguindo, depois de certo esforço, andar mais livremente.


          Acredito que não apenas esse sonho, mas que diversas situações do filme dialoguem com as teorias psicanalíticas de Freud: Morangos Silvestres, enquanto mergulha no passado e inconsciente de Borg, homenageia a psicanálise ao retratar alguns seus diversos conceitos.


          Os procedimentos do sonho, condensação e deslocamento, como já mencionado, são sempre anunciados por meio da sobreposição de imagens e da falta de lógica, respectivamente. Enquanto Borg sonha, delira ou tem um flashback, as imagens do filme formam-se sempre por meio da confusão gerada pela junção de dois ou mais fotogramas, e o personagem Borg aparece em todas essas situações, independente da época da vida a ser retratada, com o corpo envelhecido, até quando é levado de volta à sua juventude e se encontra com Sara, seu puro e primeiro amor.


          Sara descreve o jovem Isaak como "gentil, fino, honesto e sensível", contrariando a maneira que ele nos é apresentado: "um velho egoísta". Subentende-se que essa transformação em seu comportamento teve uma causa: o fato da amada ter-lhe trocado pelo irmão inútil fez com que endurecesse, afastando-se do convívio social por medo de sofrer. Poderia ser entendido esse fato como um trauma?


          O "egoísmo" que lhe é atribuído por sua fiel empregada e por sua nora doce nora Marianne é de serventia a Freud para a caracterização dos sonhos, no sentido em que "o ego bem amado aparece em todos eles (sonhos)". "O egoísmo é o interesse que o ego tem por si mesmo" (Laplanche, 1995). Egoísta é aquele que pensa em si visando se proteger, é uma pulsão de auto-conservação.


          Em um de seus sonhos, Borg está em companhia de Sara, que lhe mostra um espelho pedindo-lhe que se olhe: ele titubeia, como se não conseguisse se encarar. O espelho reflete alguma verdade: será que ele a teme ou lhe desagrada? Contrariando Narciso, Borg foge de sua imagem, da verdade e do que mais lhe traria algum encanto, pois é assim que há tempos permanece com sua carcaça rija, distanciando-se de tudo que poderia torná-lo volúvel.


          O casal que gera um acidente na estrada é formado por uma mulher que sofre de males não diagnosticados (não apresentam causas somáticas), e por um homem que a ridiculariza, chamando-a de fingida e apresentando-a como atriz. A reação incrédula e debochada do marido para com a esposa, uma provável histérica, pode ser comparada à atitude dos doutores colegas de Freud diante das idéias deste sobre a histeria.


          Ainda uma última passagem traz alusão à teoria psicanalítica. Quando a mãe de Isaak Borg pega uma caixa de recordações, diz ter dado risadas de recadinhos que duas irmãs escreveram ao pai: "Ao meu pai, quem mais amo no mundo" e "Vou me casar com papai". Ela agiu da mesma maneira irônica que os congressistas presentes na divulgação da teoria que Freud denominou "Complexo de Édipo".


          Realizei apenas um levantamento de coincidências entre algumas teorias freudianas e passagens do filme de Bergman, as quais me levam a pensar em Morangos Silvestres também como uma homenagem à Freud e ao seu trabalho, mas nunca o limitando a isso. Não acredito que essa seja a leitura totalitária do filme, mas sim que colabore para seu entendimento. Acho interessante a presença de inúmeras cenas que remetem à psicanálise e absurdo seria ignorá-las.


          Contudo, Morangos Silvestres é um belíssimo filme sobre o tempo, a memória e o reencontro, uma obra- prima em que Bergman explora a vida e a morte com incrível sensibilidade.


Referência Bibliográficas:


BERGMAN, Ingmar. Imagens. São Paulo, Martins Fontes, 1996.


CAÑIZAL, Eduardo Peñuela. O outro lado do sonho em Morangos Silvestres In Galáxia. São Paulo, EDUC, 2001.


FREUD, Sigmund. A interpretação dos sonhos In Obras Completas, vol. IV 1987.


LAPLANCHE e PONTALIS. Vocabulário da psicanálise. São Paulo, Martins Fontes, 1995.


MAUERHOFER O, Hugo. A psicologia da experiência cinematográfica In A experiência do cinema: antologia. org. Ismail Xavier. Rio de Janeiro, Graal, 1993.


MORIN, Edgar. Cinema ou Homem Imaginário. Lisboa, Moraes Editores,1980


*Claudia Bavagnoli é Mestre em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP
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