Teatro/CRÍTICA
"Dorotéia"
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Furores e delírios no Poeira
Lionel Fischer
"Dorotéia é uma linda mulher que larga a prostituição após a morte de seu filho. Depois de alguns anos afastada da família, ela procura suas primas para ter uma vida decente. Porém, as três primas, todas viúvas, repudiam-na por causa de sua beleza. No decorrer da história, inicia-se uma tentativa irracional de levar Dorotéia ao caminho da virtude e das privações. O enredo, envolvente e repleto de fantasias, fará o espectador conhecer um mundo caótico, onde o feio torna-se a representação da pureza, onde o ser humano revela suas múltiplas facetas".
Extraído do release que me foi enviado, o trecho acima sintetiza o enredo de "Dorotéia", que acaba de entrar em cartaz no Teatro Poeira. De autoria de Nelson Rodrigues, o texto chega à cena com direção de João Fonseca e elenco formado por Alinne Moraes (Dorotéia), Gilberto Gawronski (D. Flávia), Alexandre Pinheiro (Carmelita), Paulo Verlings (Maura), Keli Freitas (Das Dores) e Marcus Majella (D. Assunta da Abadia).
Definida pelo autor como "uma farsa irresponsável", não sei até que ponto a peça é realmente uma farsa e menos ainda se é responsável ou não. Tampouco poderia afirmar que Nelson Rodrigues, ao menos em alguma medida, tenha se inspirado nas Fúrias da Mitologia Grega - três figuras femininas de negro e usando máscaras, aterrorizantes e hieráticas, personagens da "Oréstia", de Ésquilo. Mas me parece irrefutável que neste texto estão presentes alguns temas recorrentes na obra do autor, como castidade, pudor, culpa, repressão etc. E se tais temas pudessem ser aqui resumidos numa única frase, esta poderia ser a seguinte: a solidão vil do sexo sem amor.
Toda a ação transcorre numa casa sem quartos, o que soa coerente, já que uma das personagens afirma que é "no quarto que a alma e a carne se perdem", embora todos saibamos que tanto nossa alma, quanto nossa carne, podem se perder em diversificadas geografias. Mas aqui o quarto passa a ser uma espécie de símbolo do pecado, da transgressão, da ausência de pureza, de todas as possíveis e condenáveis tentações.
Outro dado interessante diz respeito à identidade de Dorotéia. Na família existiram duas: uma teria se afogado, por não suportar o conhecimento de que "por dentro de seu vestido estava um corpo nu"; a outra perdeu-se, tornou-se prostituta. Finalmente: qual das duas é a que está em cena? Acaba-se sabendo que é a ex-prostituta, que perdeu um filho e agora deseja trilhar os caminhos da virtude. Mas é belíssima, enquanto todas as mulheres da família são medonhas. E para se chegar à virtude, há que se matar a beleza...
E, por último: a bisavó das primas, em sua noite de núpcias, fora acometida pela Náusea. Ou seja: na hora em que a onça deveria beber água, teria sido possuída por uma total repulsa ao sexo, sendo esta, a partir de então, transmitida a toda sua descendência feminina. Em resumo: um contexto bem mais adequado a um estudo psicanalítico do que propriamente à avalição de um crítico teatral...
Provavelmente, este não é um dos melhores textos de Nelson Rodrigues. Mas nem por isso destituído de interesse, sobretudo quando levado à cena de uma forma absolutamente não convencional e corajosa. Dentre os muitos méritos que devem ser atribuídos a João Fonseca, talvez o principal nem resida no fato de ter escolhido homens para interpretar as três primas e a vizinha - embora tal opção contribua para reforçar o estranhamento do texto -, mas por ter feito aflorar um humor que jamais havia presenciado em nenhuma outra montagem. Não um humor superficial e inconsequente, mas impregnado de delirante e frenética selvageria.
Não temendo ousar mas, que fique bem claro, em nenhum momento objetivando desfigurar o texto, João Fonseca criou uma encenação que valoriza todos os conteúdos em jogo através de uma dinâmica cênica altamente expressiva, materializada com admirável paixão e total competência por todo o elenco, a começar pela protagonista, Alinne Moraes.
Uma das melhores atrizes de sua geração, já há muitos anos fazendo enorme sucesso no cinema e na TV, Alinne Moraes estreou no teatro em 2007 com "Dhrama - o incrível diálogo entre Krishna e Arjuna", sob a direção de João Falcão. Era um texto complexo, nada comercial, e o papel de Alinne muito difícil. E ela o fez de forma admirável, aceitando uma série de riscos, pois seria muito mais seguro e confortável protagonizar uma comediazinha romântica. E agora faz o mesmo: encara um Nelson Rodrigues em um texto por muitos considerado "maldito". E seu desepenho, como o anteriormente citado, é de altíssimo nível.
Possuidora de uma beleza que não pode ser descrita com palavras - ao menos palavras que conheço -, Alinne Moraes evidencia aqui a beleza que de fato importa: a beleza interior, a força que a move no sentido de se tornar uma atriz incontestavelmente importante, que se recusa a assumir o papel de parasita de suas próprias conquistas. Na pele de Dorotéia, a intérprete exibe atuação irretocável, tanto nas passagens mais dramáticas quanto naquelas em que o humor predomina. Assim, só me resta desejar que os sempre caprichosos deuses do teatro continuem abençoando sua trajetória artística.
Vivendo a mais velha das primas, D. Flávia, Gilberto Gawronski arrebata a plateia desde o primeiro momento em que surge em cena, mantendo intacto o mesmo fascínio até o final da montagem. Está engraçadíssimo em seus furores operísticos, em sua selvagem histeria, nos estertores de sua intolerância. Exibindo maravilhoso trabalho vocal e corporal, Gawronski é um dos maiores destaques da atual temporada.
E são também deslumbrantes as performances de Paulo Verlings e Alexandre Pinheiro, que dão vida às duas outras primas que integram o desvairado trio de repressoras histéricas, ambos exibindo as mesmas virtudes vocais e corporais de Gawronski. Marcus Majella também está irrepreensível na pele de D. Assunta da Abadia, o mesmo aplicando-se a Keli Freitas, que valoriza ao máximo um papel que, interpretado por um atriz mediana, jamais causaria
o menor impacto. E sua Das Dores é um dos pontos altos do espetáculo.
Na equipe técnica, Nello Marrese assina uma cenografia adequadamente soturna, claustrofóbica e delirante, sendo maravilhosos os inventivos figurinos de Thanara Schönardie. Luiz Paulo Nenen responde por uma iluminação que consegue enfatizar os múltiplos climas emocionais em jogo, cabendo ainda destacar o expressivo visagismo de Sid Andrade e a ótima direção de movimento de Rafaela Amado.
DOROTÉIA - Texto de Nelson Rodrigues. Direção de João Fonseca. Com Alinne Moraes, Gilberto Gawronski, Paulo Verlings, Alexandre Pinheiro, Keli Freitas e Marcus Majella. Teatro Poeira. Terças e quartas, 21h.
sexta-feira, 22 de junho de 2012
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