quinta-feira, 21 de junho de 2012

“A economia da cultura ou
Perdoa-me por me traíres”



          Tal e qual o personagem de “Perdoa-me por me traíres”, de Nelson Rodrigues, o grande ícone do teatro homenageado deste ano, o produtor cultural é levado a ter um sentimento de culpa, como sujeito e objeto da traição, por ter a necessidade de produzir cultura com recursos públicos e ao mesmo tempo perder o direito de olhar o bem ou serviço produzido como um produto que pode ser rentável.


          A Lei Rouanet hoje é o principal mecanismo federal de incentivo a cultura. A exemplo de outros setores da economia do país, temos o nosso marco, baseado no incentivo fiscal. Em troca, ao contrário dos outros setores, temos que obedecer a regras cada vez mais contraditórias ao propósito da existência da lei. Seu objetivo como ferramenta de desenvolvimento econômico do setor tem dado lugar a discussões que comprometem suas possibilidades de sustentabilidade, a partir da visão míope dos burocratas que desviam seu olhar da principal meta para focar apenas em um dos elos da cadeia produtiva: o público.


          Nos últimos tempos os produtores culturais têm sido alvos de torpedos governamentais, de várias ordens, indicando a elaboração de política de taxação de preços de ingressos para espetáculos. Hoje, o produtor de eventos que tem o benefício da Rouanet tem a obrigação de comprometer sua bilheteria com 20% da lotação do teatro para distribuição gratuita (como contrapartida social e patrocinadores) e 80% com a meia entrada, subsidiada com recursos próprios.


          Esclarecemos que os teatros ou casas de espetáculos, na maioria dos casos, não são subsidiados com recursos públicos e cobram um valor de locação mínima ou um percentual da bilheteria entre 25% e 50%. Além disso, o autor da obra - no caso de teatro, autor do texto - tem por direito entre 10% e 12%. Se a peça for um musical ou contiver obras musicais protegidas, além do texto há o direito sobre as músicas, que pode chegar a 10%, dependendo da minutagem de música em relação ao texto.


          A Comissão Nacional de Incentivo a Cultura – CniC - é o órgão que tem representantes do estado e da sociedade civil organizada (produtores e empresários), podendo elaborar, propor e deliberar sobre a análise dos projetos aprovados e sua operação. Em 12 de junho de 2012, a CniC fez reunião com o propósito de discutir o tema “Democratização do acesso”. Foram citados alguns artigos da Lei Rouanet, como o Art. 1o: “contribuir para facilitar, a todos, os meios para o livre acesso às fontes da cultura e o pleno exercício dos direitos culturais”. Se “facilitar o acesso” for interpretado simploriamente como redução do valor dos ingressos, apenas isso, a partir daí surgirão idéias mirabolantes e estapafúrdias de como administrar a produção alheia.


          No documento apresentado na reunião da CniC há importantes constatações do MinC que só reforçam a necessidade de ampliar essa curta visão. Segundo o texto do documento, de um universo de 2 mil projetos captados, apenas 12,5% conseguem 100% dos recursos aprovados pela CniC. Estamos falando de cerca de 250 projetos. Também há a consciência de que o restante dos recursos vem de outras fontes, inclusive da bilheteria, que pode manter uma peça em cartaz em alguns casos. Outro problema é estabelecer regras apenas para espetáculos, como controlar a taxação de produtos produzidos, obras de arte... Nesse caso, se houver algum artista com uma bolsa para criação de uma peça teatral, por exemplo, o MinC passará a dizer quanto esse autor vai cobrar pelos seus direitos no mercado? É um terreno complicado de administrar.


          No documento da CniC a idéia é taxar o ingresso no mesmo valor teto estabelecido no projeto do Vale Cultura: R$ 50,00. Mas no mesmo documento há a informação de que o preço médio normal é de R$ 62,00 e o promocional R$ 11,83. Considerando que a renda é diferente em cada região do país e que o governo não tem espaços culturais para atender a essa demanda, teria que ser criado um subsídio a mais para os donos dos equipamentos culturais, complicando ainda mais todo o processo.


          Voltando ao terreno da contradição, ou da “traição”, assunto do começo do texto, o termo mais repetido nos discursos da gestão atual do Ministério da Cultura é “economia criativa”. A ministra Ana de Holanda falou sobre uma “Visão de longo prazo para a Cultura”, texto de apresentação das metas do Plano Nacional de Cultura, datado de dezembro de 2011, que se encontra publicado no sítio virtual do MinC: “Sustentabilidade e, portanto, planejamento, são algumas das palavras-chave da atual gestão do Ministério da Cultura. Significa pensar lá na frente, no futuro, a partir das bases do presente. Foi com esse intuito que colocamos em discussão as metas do Plano Nacional da Cultura (PNC), que hoje apresentamos. São propostas para a próxima década. É a primeira vez, em quase 30 anos de existência, que o Ministério tem objetivos planificados a partir da discussão com a sociedade.”


          Ainda no sítio virtual do MinC, obtemos a informação que “em reunião ordinária ocorrida no dia 29 de dezembro de 2011, o Conselho Nacional de Política Cultural (CNPC) aprovou as 53 metas do Plano Nacional de Cultura (PNC), elaboradas a partir de consultas à sociedade e com a participação do Conselho Nacional de Política Cultural. A implementação do Plano Nacional de Cultura se dará com a publicação das metas de desenvolvimento institucional e cultural para os 10 (dez) anos de sua vigência. As metas que serão publicadas expressam o compromisso com os principais temas das políticas públicas de cultura, como: reconhecimento e promoção da diversidade cultural; criação, fruição, difusão, circulação e consumo; educação e produção de conhecimento; ampliação e qualificação de espaços culturais; fortalecimento institucional e articulação federativa; participação social; desenvolvimento sustentável da cultura; e mecanismos de fomento e financiamento.”


          Será que temos dois Ministérios da Cultura? Dois pensamentos que não se completam, com certeza, temos.


          Há mais de oito anos estamos sendo convocados, como cidadãos da classe cultural, membros fundamentais dessa cadeia produtiva, para uma discussão sobre essa economia e a importância estratégica da cultura para o desenvolvimento do país. Apresentamos contribuições acerca da problemática que envolve todos os elos da nossa cadeia produtiva, desde a formação de nossos profissionais até a distribuição dos bens culturais produzidos.


          Hoje vemos muitas resultantes desse imenso processo onde detectamos que a cultura como economia, meio de trabalho e produto era um universo desconhecido a ser explorado, a começar pela formalização do mercado. Avançamos nesse ponto, com a criação do MEI - Micro Empreendedor Individual - que possibilitou a inclusão de muitos profissionais que antes viviam num mercado informal. As produtoras culturais foram enquadradas no SIMPLES NACIONAL, reduzindo sua carga tributária.


          O advento da Lei Rouanet é um marco do setor, sem dúvida, mas quem são seus principais personagens? Os protagonistas são o Ministério da Cultura, as empresas incentivadoras e os proponentes (nós, produtores culturais). Se por um lado a lei é uma fonte importante de recursos, por outro põe uma faca no peito do produtor. São muitas as cobranças. E então voltamos à culpa rodrigueana. Nossas prestações de contas não eram analisadas, por isso temos que guardar arquivos de notas fiscais por uma eternidade, até recebermos a aprovação; somos culpados também por anos de ausência histórica de um Ministério da Cultura e por entulhar os arquivos do MinC com projetos, por isso hoje há uma limitação de até cinco projetos anuais ativos por proponente; temos que nos responsabilizar pela acessibilidade a deficientes nos espaços culturais, sendo que muitos dos espaços públicos não a tem; subsidiamos com recursos próprios a lei da meia entrada; oferecemos contrapartida social; temos que aplicar a logomarca do Governo, do Ministério da Cultura e da empresa patrocinadora em todos os materiais de promoção e divulgação do projeto. Além disso, intermediamos a relação de forças muitas vezes opostas, como a política de ocupação de teatros e espaços culturais.


           Finalmente, mais uma culpa. Vemos instâncias que têm em suas estruturas representações da classe que estão hoje distantes, como a CniC e o Conselho Nacional de Cultura, órgãos que não têm nenhuma interlocução prática com os produtores. Não estamos nos fazendo representar.


          Pois então, discutimos o desenvolvimento do setor cultural ao mesmo tempo em que esse sentimento de culpa nos persegue: não podemos ser sustentáveis? A sociedade pode tolerar pagar muito por itens como saúde, transporte e educação, todos com suas respectivas cargas de subsídio/ benefícios fiscais, mas bens culturais brasileiros têm que ser baratos ou gratuitos.


          Para que preparar uma política para regular preços de ingressos, quando sabemos que o problema não é do produto ou serviço cultural, mas sim da educação incipiente, da falta de equipamentos culturais e da concentração de renda na região Sudeste? Estamos desperdiçando uma energia vital para resolver problemas que são de ordem burocratica e política e não estruturais.


          Uma das metas mais importantes do Plano Nacional de Cultura para o nosso setor é primordial para que possamos discutir o futuro da produção cultural no país: “100% dos segmentos culturais com cadeias produtivas da economia criativa mapeadas”. E define economia criativa: “A economia criativa é um setor estratégico e dinâmico, tanto do ponto de vista econômico quanto social. Suas diversas atividades geram trabalho, emprego, renda e são capazes de propiciar oportunidades de inclusão social.”


          Acreditamos na força do nosso trabalho e sabemos que temos grande responsabilidade como um dos elos dessa cadeia produtiva. O MinC precisa repensar seu discurso, retomar o diálogo com esse elo urgentemente e, principalmente a Ministra Ana de Holanda, precisa olhar de perto seus pares do teatro.


          Encerrando com Nelson Rodrigues: “a ficção para ser purificadora precisa ser atroz. O personagem é vil, para que não sejamos. Ele realiza a miséria inconfessa de cada um de nós.(....). E no teatro, que é mais plástico, direto, e de um impacto tão mais puro, esse fenômeno de transferência torna-se mais válido. Para salvar a platéia é preciso encher o palco de assassinos, adúlteros, de insanos e, em suma de uma salada de monstros. São os nossos monstros, dos quais eventualmente nos libertamos, para depois recriá-los.”(Nelson Rodrigues, O Anjo Pornográfico)


APTR
ASSOCIAÇÃO DOS PRODUTORES DE TEATRO DO RIO DE JANEIRO
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