terça-feira, 26 de junho de 2012

Para o Ator

Michael Chekhov


          É inevitável que se pergunte, a quem quer que tente organizar e coordenar uma série de conceitos histriônicos, por que um ator talentoso necessita realmente de um método. É uma daquelas perguntas que só podem ser respondidas com outras. Por que um homem civilizado necessita de uma cultura? Por que uma criança inteligente precisa de uma educação?

           Com o risco de redundância, atrevo-me a reiterar que toda arte, mesmo a do ator, deve possuir seus princípios e aspirações, suas técnicas profissionais.

          Como refutação, ouviremos frequentemente os atores protestarem: "Mas eu tenho minha própria técnica". A afirmação seria mais correta se formulada nestes termos: "Eu tenho minha própria interpretação, minha própria aplicação da técnica teatral".

          Mas seria desnecessário dizer que músicos, arquitetos, pintores, poetas ou quaisquer outros artífices não podem ter somente suas próprias técnicas sem estudar primeiro as leis básicas de suas respectivas artes. Inevitáveis são as regras em que eles devem, em última instância, basear a construção de suas técnicas "próprias", as quais os individualizam, se é que não os notabilizam em suas profissões.

          Por mais naturalmente talentoso que o ator possa ser, ele nunca criará grande coisa para a sua arte ou legará seus próprios dons à posteridade teatral se se isolar nessa pequena parcela de sua "própria técnica" e de seus estratagemas. A arte de interpretação teatral só pode crescer e desenvolver-se baseada num método objetivo, com princípios fundamentais.

          O grande número de preciosas memórias e obervações que nos foram legadas pelos "nomes" de ontem na arte de representar não estão sendo aqui minimizadas como valioso material para a criação de um método. São, porém, subjetivas, e, por conseguinte, limitadas em seu âmbito. O método ideal de qualquer arte deve ser um todo bem integrado, completo em si mesmo; e, sobretudo, deve ser objetivo.

          Aqueles colegas nossos que resolutamente se recusam a reconhecer qualquer método apenas porque são talentosos talvez necessitem de um mais do que ninguém. Porque, talentosos, a chamada "inspiração" é o mais caprichoso de nossos dotes. O ator talentoso é a mais provável vítima de todas as espécies de infortúnios profissionais. Ele não tem um terreno sólido sob os pés. A menor irritação psicológica de um momento, um estado de ânimo infeliz ou qualquer perturbação física podem tornar seu talento inacessível e bloquear o canal para verdadeira inspiração.

          Um método com uma técnica bem fundamentada é a melhor garantia contra tais percalços. O método, quando suficientemente exercitado e adequadamente assimilado, torna-se a "segunda natureza" do ator talentoso e, como tal, fornece-lhe pleno controle sobre suas capacidades criativas, aconteça o que acontecer. A técnica é seu meio infalível de instigar seu talento e fazê-lo
trabalhar sempre que deseje invocá-lo; é o "Ábra-te, Sésamo!" para a verdadeira inspiração, independente de barreiras físicas ou psicológicas.

          Em diferentes momentos, a inspiração, quando chega e se chega, mostra distintos graus de força. Pode estar presente mas ser fraca e ineficaz. Também nesse caso a técnica pode robustecer a força de vontade do ator, despertar suas emoções e instigar sua imaginação em tal grau que a centelha quase apagada da inspiração subitamente se alteie numa labareda e fique ardendo fulgurantemente por tanto tempo quanto o ator desejar.

          Suponhamos que, por alguma razão, um ator sente que seu talento se tolda à medida que a performance se avizinha. Ele não precisa ter semelhante receio se sua técnica for perfeitamente dominada. Em primeiro lugar, um papel é preparado e elaborado em todos os detalhes de acordo com o método, e o ator sempre o interpretará corretamente, mesmo que não se sinta tão "inspirado" quanto gostaria de estar. Pois ele terá sempre a seu dispor uma espécie de blueprint de seu papel e, assim, não ficará cambaleando sem rumo nem será compelido a recorrer a chavões e maus hábitos teatrais.

          Será capaz, em qualquer momento, de observar o papel todo e cada um dos detalhes como numa perspectiva aérea e, com calma interior e segurança, passar de uma seção a outra e de um objetivo a outro. Foi Stanislavski quem obervou que um papel corretamente desempenhado tem a melhor oportunidade de recuperar uma inspiração esquiva.

          Há ainda uma outra razão para o um ator talentoso reconhecer o valor de uma técnica objetiva.

          Poderes criativos ou positivos na natureza de um artista devem sempre combater e contrariar aquelas influências negativas que, embora obscuras e, por vezes, inteiramente desconhecidas dele, constantemente embaraçam seus melhores esforços.

          Esses numerosos obstáculos negativos incluíram um complexo de inferioridade ou uma megalomania suprimidos, desejos egoístas inconscientemente misturados com propósitos artísticos, medo de cometer erros, medo irreconhecido do público (e, com freqüência, até aversão a ele), nervosismo, ciúme ou inveja encobertos, exemplos ruins e aparentemente esquecidos e um hábito irrefreável de criticar e pôr culpas nos outros. Essas são apenas algumas das coisas que, com o tempo, podem acumular-se no subconsciente de um ator como "lixo psicológico" até se converterem em males perniciosos que o levam a sua própria destruição.

          Usando o método e a técnica objetivos, o ator reunirá em si mesmo um grande número de qualidades sólidas e libertadoras, as quais certamente deslocarão todas as influências destrutivas que espreitam obscuramente nos mais sombrios recessos do subconsciente. Aquilo que chamamos usualmente
"o desenvolvimento do talento pessoal" nada mais é, com freqüência, do que libertá-lo das influências que o estorvam, obstruem e não raras vezes destroem inteiramente.

          O método, quando entendido e aplicado, inculcará no ator um hábito sumamente gratificante de pensamento profissional, quer esteja avaliando o trabalho criativo de seus colegas, quer o seu próprio. Ele deixará de se dar por satisfeito com termos gerais como "natural", "coloquial", "pretensioso", "bom", "mau"; ou com expressões como "subatuação", "superatuação", etc.

          Em contrapartida, desenvolverá uma linguagem profissional mais significativa e tornar-se-á mais familiarizado com termos mais profissionais, como Unidades, Objetivos, Atmosferas, Irradiar e Receber, Imaginação, Corpo Imaginário, Centro Imaginário, Ritmos Interior e Exterior, Clímax, Acentos, Ondas Rímicas e Repetições, Composição das Personagens, Gestos Psicológicos, Conjunto, Qualidade, Sensações, etc.

          Essa terminologia concreta não só substituirá seu atual vocabulário vago e inadequado mas aguçará a capacidade do ator de captar impressões teatrais, treinará sua mente para penetrar nessas impressões com suficiente profundidade, de modo que saiba imediatamente o que está errado ou certo, por que razão e por que meios aperfeiçoar seus próprios desemprenhos e os de seus colegas.

          A crítica tornar-se-á então verdadeiramente objetiva e construtiva; simpatias ou antipatias pessoais deixarão de desempenhar o papel decisivo que hoje têm na avaliação da arte histriônica, e os atores sentir-se-ão livres para se ajudar mutuamente, em vez de meramente tecerem elogios descoroçoados ou condenações malévolas.

          O ator, sobretudo o talentoso, tampouco deve esquecer o fato de que a técnica profissional sugerida facilitará e apressará, em todos os casos, seu bom trabalho. O tempo consumido em adquiri-la certamente se converterá num investimento lucrativo pelo seu resultado final! Sempre que me perguntam se existem caminhos mais curtos para se aprender o método, não posso deixar de advertir que o mais curto de todos os caminhos curtos é fazer todos os exercícios prescritos com diligência e paciência, até que se tornem a segunda natureza do ator.
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Extraído de Para o Ator, capítulo Notas Finais, aqui um pouco reduzido. O presente livro é imprescindível para todos aqueles que desejam ser atores ou já são atores e pretendem atingir novos patamares em suas atuações. Editora Martins Fontes, São Paulo, tradução de Álvaro Cabral.

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