terça-feira, 23 de junho de 2009

Drama:
definições e delimitações

Martin Esslin

Muitos milhares de volumes têm sido escritos a respeito do drama e, no entanto, parece não existir uma definição do termo que seja universalmente aceita. "Uma composição em prosa e verso", diz minha edição do Dicionário Oxford, "adaptável à representação em um palco, no qual uma história é relatada por meio de diálogo e ação, e que é representada com acompanhamento de gestos, figurinos e cenários, como na vida real; uma peça".

Esta definição não é só prolixa e canhestra; é também positivamente incorreta. "Uma composição em prosa e verso" parece implicar um texto previamente composto, de modo que tal definição não possa ser aplicada ao espetáculo dramático improvisado; "...na qual uma história é relatada por meio de diálogo...": o que serão, então, aqueles fascinantes dramas em pantomima com os quais eram entretidas multidões parisienses no século XIX, ou que artistas como Marcel Marceau continuam a oferecer-nos hoje em dia? "...adaptável à representação em um palco": o que dizer do drama na televisão, no rádio ou no cinema? "...representada com acompanhamento de gestos, figurinos e cenários!": gestos, sim; porém já tenho visto muito drama bom sem figurinos e sem cenários! "...como na vida real...": bem, isto já ir um pouco longe demais. Parece pressupor que todo drama tem de ser realista. Será que "Esperando Godot" ou, nesse caso, "A viúva alegre" são como na vida real? E, no entanto, ambos são dramas, sem sombra de dúvida.

Enganos

Outras definições de dicionário que consultei resultaram igualmente enganosas e incorretas. Pois o fato é que a arte - atividade, anseio humano ou instinto - que se corporifica no drama é tão profundamente entranhada na própria natureza humana, e em tal multiplicidade de inquietações humanas, que é praticamente impossível traçar uma linha divisória precisa no ponto em que termina uma espécie de atividade mais geral e começa o drama propriamente dito.

Instinto

Pode-se, por exemplo, encarar o drama como manifestação do instinto de jogo: as crianças que brincam de Papai e Mamãe ou de Mocinho e Bandido estão, de certa forma, improvisando um drama. Ou podemos ver o drama como manifestação de uma das primeiras necessidades sociais da humanidade, a do ritual: danças tribais, ofícios religiosos, grandes cerimônias de Estado, tudo isso contém fortes elementos dramáticos. Ou podemos encarar o drama como algo que se vai ver, que está sendo representado e organizado como algo que deve ser visto, um espetáculo: em grego, teatro (theatron) significa um lugar onde se vai ver alguma coisa: a entrada triunfal de um imperador vitorioso em Roma continha elementos dramáticos, assim como os combates de gladiadores ou entre cristãos e leões, ou as execuções públicas, bem como todos os esportes que atraem espectadores.

Sentido

Nenhuma dessas atividades pode ser considerada como drama em seu sentido adequado, porém as linhas divisórias entre elas são, na verdade, extremamente fluidas: será que deveríamos considerar um circo no qual acrobatas exibem sua proeza física como uma atividade esportiva? E o que dizer, então, dos palhaços que realizam acrobacias em conjunto com suas pequenas cenas farsescas? Ou dos cavaleiros que deixam evidente sua destreza em assaltos simulados a diligências?

Protesto

Goethe, o príncipe dos poetas alemães, demitiu-se de seu cargo de diretor artístico do Teatro da Corte de Weimar em protesto contra uma peça na qual eram apresentadas as proezas de um cão amestrado. É possível que ele tenha tido toda razão ao fazê-lo; porém, não seria sua definição de drama um tanto estreita? Será que o drama deixa de ser drama no momento em que nem todos os seus atores são seres humanos? O que será, então, do teatro de bonecos ou de sombras (como os de Java), o que será dos desenhos animados nos quais os atores são meros desenhos?

Tentativa

Talvez devêssemos tentar chegar à definição do drama por esse ângulo: não há drama sem atores, estejam eles presentes em carne e osso ou sejam apenas sombras projetadas em uma tela, ou bonecos. "Ficção representada" poderia ser uma definição breve e percuniente de drama, se não excluísse o drama documentário, que é uma realidade representada. Será que "uma forma de arte baseada em ação mimética" seria mais satisfatório? Mas temos de lembrar-nos de que existem balés abstratos e, na verdade, filmes de animação que, muito embora permaneçam ação, não são, estritamente falando, miméticos. Será que ainda são drama? De certo modo, sim; de outro, não.

Obstáculos

As definições - e o pensar a respeito de definições - são coisas valiosas e essenciais, porém jamais devem ser transformadas em valores absolutos; quando o são, transformam-se em obstáculos ao desenvolvimento orgânico de novas formas, à experimentação e à invenção. É precisamente porque uma atividade como odrama tem delimitações fluidas que ela pode renovar-se continuamente a partir de fontes que, até aquele momento, haviam sido consideradas como residindo para além de seus limites. Não importa realmente se o circo ou o teatro de variedades, o desfile cívico ou o concerto pop ainda podem ser ou não estritamente definidos como formas de drama. O que é certo é que a arte do drama tem recebido, dessas manifestações, inspirações e impulsos importantes e, por vezes, de avassaladora significação.

Desdobramentos

E, de modo semelhante, das formas mais estritamente definidas do drama podem aparecer novos desdobramentos, como o happening ou os shows de multimídia. Haverá muita discussão sobre se estes últimos ainda poderão, ou não, ser chamados de drama; tais discussões serão valiosas no processo do esclarecimento de idéias e métodos, porém seu resultado propriamente dito - serão eles drama ou não - terá relativamente pouca importância.

Importância

Existe, no entanto, um ponto básico, de importância fundamental, que precisa ser salientado porque, embora óbvio, continua a ser pesistentemente ignorado, particularmente por aqueles que, como críticos e professores em cursos regulares de drama, são os guardiães de sua história e tradição: e esse ponto é que o teatro - drama para palco - é, na segunda metade do século XX, apenas uma das formas -e forma relativamente menor - da expressão dramática, e que o drama mecanicamente reproduzido dos veículos de comunicação de massa (o cinema, a televisão e o rádio), muito embora possam diferir consideravelmente em função de suas técnicas, também é fundamentalmente drama, obedecendo aos mesmos princípios da psicologia da percepção e da compreensão das quais se originam todas as técnicas da comunicação dramática.

Técnica

O drama como técnica de comunicação entre seres humanos partiu para uma fase completamente nova de desenvolvimento, de significação realmente secular em uma era que o grande crítico alemão Walter Benjamin caracterizou como sendo a da "reprodutividade técnica da obra de arte. Aqueles que ainda consideram o teatro como a única forma verdadeira do drama podem ser comparados aos contemporâneos de Gutenberg que só admitiam como livro verdadeiro aquele que era manuscrito". Através dos veículos de comunicação de massa, o drama transformou-se em um dos mais poderosos meios de comunicação entre os seres humanos, muito mais poderoso do que a mera palavra impressa que constitui a base da revolução de Gutenberg.

Conhecimento

É por isso que um certo conhecimento da natureza do drama, uma certa compreensão de seus princípios fundamentais e suas técnicas, bem como a necessidade de se pensar e falar a respeito dele criticamente, tornaram-se, em verdade, exigências do nosso mundo. E isso não se aplica apenas a obras grandiosas do espírito humano, tais como as peças de Sófocles ou de Shakespeare, mas também à comédia de situações da televisão ou até mesmo à mais leve de todas as formas dramáticas, o comercial de rádio ou televisão. Vivemos cercados pela comunicação dramática em todos os países industrializados de hoje em dia; deveríamos ser capazes de compreender e analisar seu impacto sobre nós mesmos - e sobre nossos filhos. A explosão das formas dramáticas de expressão confronta-nos a todos com riscos consideráveis de sermos escravizados por formas insidiosas de manipulação subliminar de nossos conscientes; mas, também, com imensas oportunidades criativas.
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Capítulo primeiro do livro "Uma anatomia do drama", de Martin Esslin. Tradução de Barbara Heliodora

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