Teatro/CRÍTICA
"Malentendido"
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Obra-prima em ótima versão
Lionel Fischer
Tendo abandonado muito jovem sua aldeia natal, na Tchecoslováquia, um homem regressa à sua casa vinte anos mais tarde, já possuidor de razoável fortuna. A fim de surpreender a mãe e a irmã, que dirigem uma pousada, aluga-lhes um quarto, sem se dar a reconhecer. Durante a noite as duas mulheres assassinam-no para o roubar, hábito que já cultivam há algum tempo com hóspedes que aparentam ter dinheiro. Na manhã seguinte, ao descobrirem a identidade da vítima, ambas se matam.
Eis, em resumo, o enredo de "Malentendido", de Albert Camus, em cartaz no Mezanino do Espaço Sesc. Marco André Nunes assina a direção e Pedro Kosovski a co-direção, estando o elenco formado por Alexandre Dantas (Yan), Carolina Virgües (Marta), Ludmila Wischansky (Maria), Maria Esmeralda Forte (Mãe) e Pedro Farah (Criado).
Em geral recebendo como título "O equívoco", quando isto não ocorre o texto é nomeado "O malentendido" - a supressão do "o" nos leva a crer que talvez os responsáveis pelo projeto tenham pretendido sugerir a possibilidade do "mal" ser entendido. No entanto, trata-se apenas de uma hipótese e, como tal, sujeita a todos os enganos.
Seja como for, estamos diante de um texto em que o autor aborda alguns de seus temas habituais, como a solidão, a falta de comunicação entre os homens, o absurdo da condição humana etc. Mas mesmo que a presente obra já tenha merecido alentados ensaios dos mais renomados críticos do planeta - todos da maior pertinência e invariavelmente centrados em múltiplos símbolos- ainda assim vamos arriscar um novo olhar sobre a peça, mais humano e menos metafísico.
Em nossa opinião, Marta e sua mãe também podem ser vistas não apenas como habitantes de um lugar "fechado e espesso onde o céu não tem horizontes", mas de um país igualmente fechado, espesso e também carente de horizontes: o da loucura. A premissa de que matam para roubar a fim de terem condições financeiras de um dia sair dali nos parece no mínimo questionável, assim como questionável se nos afigura o fato de não haverem reconhecido o irmão e o filho - afinal, um ser tão próximo não muda tanto em vinte anos a ponto de não ser identificado. Ousamos supor que o reconheceram, sim, mas sua psicopatia as impediu de pôr um fim à abominável compulsão de matar. E Yan acaba sendo assassinado porque, como todo bom neurótico, teve a ingenuidade de acreditar que na manhã seguinte tudo chegaria a bom termo, mesmo tendo percebido a sinistra estranheza de sua mãe e de sua irmã e, em dado momento, tendo tomado a decisão de partir, decisão que acaba protelando e que acarreta sua morte.
Olhares à parte, trata-se de um texto extraordinário e que recebeu uma montagem à sua altura - ao menos em grande parte dele. As únicas ressalvas que fazemos ao espetáculo de Marco André Nunes resume-se à utilização, por parte do iluminador Renato Machado, da cor vermelha sempre - ou quase sempre - que o Criado aparece, opção que não entendemos. E também acreditamos que a montagem, em sua parte inicial, investe em demasia num clima que mescla suspense e mistério, como se estivéssemos na iminência de assistir a uma peça policial. Mas logo essa atmosfera um tanto ou quanto artificial e forçada é substituída por outra em total consonância com o texto, pois o que de fato importa são as idéias, posturas e sentimentos dos personagens. E neste quesito o diretor se sai de forma irretocável, pois consegue extrair ótimas atuações do elenco e assim materializar na cena todos os conteúdos propostos pelo autor.
Um tanto insegura em sua primeira participação na pele de Maria, esposa de Yan, Ludmila Wischansky faz muito bem a cena final, quando toma conhecimento da tragédia que vitimara seu marido. Alexandre Dantas encarna com sobriedade e segurança o papel do protagonista, abstendo-se de indesejáveis arroubos. Maria Esmeralda Forte exibe notável atuação vivendo a Mãe, transmitindo todo o seu cansaço e desesperança, enquanto Carolina Virgües atinge aqui sua melhor performance, pelo menos ao longo dos últimos vinte anos em que exercemos o ofício de crítico teatral - sua Marta é assustadora, crispada e tensa ao extremo, em dados momentos exibindo a dureza da pedra e em outros a apaixonada violência do que se sentem injustiçados e, fartos do universo claustrofóbico em que vivem, almejam conhecer o sol. Maravilhosa no que concerne ao texto articulado e igualmente irrepreensível em seu trabalho corporal, Carolina Virgüês exibe uma das atuações mais marcantes da atual temporada. Na pele do Criado, Pedro Farah extrai do mudo personagem tudo que ele permite.
Com relação à equipe técnica, Renato Machado - excetuando-se a já mencionada luz vermelha - ilumina a cena com sugestões expressionistas, a ela conferindo grande dramaticidade. Marcelo Marques responde por figurinos corretos e uma cenografia altamente expressiva e surpreendente, sendo de excelente nível a trilha sonora e direção musical de Diogo Ahmed, cabendo ainda destacar a ótima direção de movimento de Nívea Magno e a precisa tradução de Pierre Astrié.
MALENTENDIDO - Texto de Albert Camus. Direção de Marco André Nunes. Com Alexandre Dantas, Carolina Virgüês, Ludmila Wischansky, Maria Esmeralda Forte e Pedro Farah. Espaço Sesc. Quinta e domingo, 20h. Sexta e sábado, 21h30.
segunda-feira, 8 de junho de 2009
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