A moratória
O ensaio que se segue, aqui um pouco reduzido, é de autoria de Décio de Almeida Prado - um dos maiores críticos teatrais da história do teatro brasileiro - e constitui o prefácio da edição do texto, em 1959, pela Livraria AGIR Editora/Rio de Janeiro. A moratória foi apresentada pela primeira vez no dia 06 de maio de 1955, no Teatro Maria Della Costa, em São Paulo, com a seguinte equipe:
Direção e cenografia - Gianni Ratto
Assistente de direção - Fernando Tôrres
Figurinos - Luciana Petrucelli
ELENCO:
Joaquim - Elísio de Albuquerque
Helena - Moná Delacy
Lucília - Fernanda Montenegro
Marcelo - Mílton Morais
Olímpio - Sérgio Britto
Elvira - Wanda Kosmos
* * *
A moratória relaciona-se com um determinado Brasil. Uma zona de São Paulo, povoada por famílias do sul de Minas, que por lá se instalaram, em sucessivas migrações, a partir do início do século XIX. As terras não tinham dono e foram apossadas em grandes, imensas extensões. Com a dificuldade de transporte, a riqueza era menos produção, dinheiro, luxo, do que um certo desafogo e largueza de viver. Ao fazendeiro cabia principalmente ser econômico e manter um olho meio atento sobre a propriedade, para evitar abusos maiores.
O traballho era concebido como uma atividade física, cansativa mas excitante, sem obedecer, contudo, a disciplinas rígidas, a planos e horários pré-estabelecidos, a demoradas operações financeiras. O divertimento masculino por excelência, nesta região tênuemente povoada, era a caça, tornada possível pela criação dos dois animais considerados nobres - o cachorro e o cavalo - e praticada através de gerações, com fervor já próximo ao fanatismo. A sabedoria era a dos avós - os antigos - de preferência à dos pais, mito de uma idade de ouro familiar a que Jorge Andrade procurou dar existência e credibilidade artística em Pedreira das almas.
A moratória evoca o fim, frequentemente melancólico, desse processo social: a divisão e perda das fazendas, com a ascensão de novas classes, facilitada por dois violentos choques: a crise do café e a revolução de 30 (ambos, não é preciso acrescentar, extremamente benéficos à democratização do País). Não compreenderá nada do alcance da peça quem não pressentir, por detrás dos indivíduos e dos episódios particulares que ela narra, a agonia de uma sociedade em vias de transição - aquela dolorosa passagem do Brasil dos fazendeiros para o Brasil urbano tão bem descrita por Gilberto Freire.
A sensibilidade de Jorge Andrade pertence a um tipo muito comum, embora pouco estudado, na moderna literatura brasileira, aparendo, sob outras formas, em autores tão diversos como José Lins do Rego e Carlos Drummond de Andrade: a sensibilidade do filho do fazendeiro, do homem que se conserva sentimentalmente preso, pela memória, a um passado patriarcalista que sabe já não ter qualquer significação atual.
A moratória, entretanto, não desce a pormenores, não faz obra descritiva, nem se importa com o pitoresco. Os seus valores sociais ela por assim dizer os assume, percebendo-os por dentro, exprimindo-os não nesta ou aquela frase que se possa citar fora do contexto, mas na própria maneira de ser de cada personagem. Quim é Quim como Lucília é Lucília, mas sendo apenas eles mesmos, com todas as peculiaridades e maneirismos pessoais, são também, sem o saber - e quase diríamos sem o desejar expressa e conscientemente o autor - padrões exemplares de sua classe social.
Jorge Andrade a bem dizer não observou este drama: intuiu-o, sentiu-o na própria pele, testemunha ou protagonista que foi, na infância, de tantas e tantas histórias semelhantes a esta. O admirável, a este respeito, é que não haja na peça nenhum ressentimento. Jorge Andrade ama o velho Quim - sobre isso não há a menor dúvida. Mas o impulso que o levou a descrevê-lo foi o de entender em que medida o seu castigo é justo, não o de pôr a culpa nos outros. A falha - como mandava a tragédia clássica - está dentro, não fora dos personagens.
Qualidades e defeitos de toda uma classe são retratados com igual comoção e igual lucidez: lá estão o sentimento exaltado da dignidade individual, a honestidade e confiança nos negócios com os outros, a solidariedade familiar, mas, igualmente, os preconceitos e o orgulho da casta, a teimosia baseada no hábito incontestado do mando, e, sobretudo, a incapacidade de educar os filhos, de compreender e aceitar as novas condições de existência.
As mulheres, mais realistas, afeitas ao trabalho caseiro que virá afinal salvá-las economicamente, ainda resistem: entre mãe e filha, de Helena a Lucília, não haverá mais, talvez, do que um acréscimo de amargura, de dureza em relação aos outros e a si mesma. Para os homens, todavia, a mudança revela-se fatal. Sempre restará neles, fortíssimo, o sentimento de uma inconcebível diminuição - não só no sentido da degradação social, mas, inclusive, no de vida limitada, apagada, rasteira, medíocre, sem a liberdade de movimentos, a ampla expansão da personalidade permitida pelos horizontes dilatados das fazendas.
Bem sei que este gênero de apreciação não agrada a certa crítica moderna, que tende a não considerar no artista senão o "homo aestheticus" - o grande inocente, aquele que nada vê, nada ouve e nada sabe fora da pura fruição dos valores estéticos, também estes puros e desencarnados. Pessoalmente, não acredito que tirar o escritor de sua condição terrestre, de homem entre homens, convenha à natureza da literatura, pelo menos no romance e no teatro, artes mescladas de reflexão, certamente muito menos formais que a pintura e a música. Mas como, por outro lado, não ignoro que só com idéias não se constroem obras de arte, quero assinalar certos aspectos mais propriamente teatrais de A moratória.
Observemos, para começar, que a linguagem da peça nos engana na sua pretensa simplicidade: parece ser mera transcrição quando é, em verdade, o produto de um feliz esforço de seleção e despojamento. É um estilo, em suma, um diálogo de teatro, sem nada ceder, todavia, aos cacoetes, às imprecisões e repetições da fala mole e desfibrada de todos os dias.
Não menos admirável, tecnicamente, é a solução dada ao problema do tempo, problema central na dramaturgia européia desde que há dois mil anos Sófoclhes demonstrou, com o Rei Édipo, que só se pode escrever uma obra-prima inteiramente voltada para os acontecimentos do passado e nutrida por eles. É provável, conforme observaram alguns críticos, que A moratória deva alguma coisa, neste sentido,à Morte do caixeiro-viajante - mas apenas como inspiração, ponto de partida, não quanto às soluções alcançadas.
Arthur Miller vale-se da memória, da reminiscência involuntária, como de um trampolim encarregado de trazer de volta à cena fragmentos do passado, banhados de subjetivismo. A moratória, ao contrário, contrói-se objetivamente sobre dois planos - o passado e o presente - um pouco como esses romances de Aldous Huxley que apresentam os acontecimentos fora de sua verdadeira ordem cronológica. Somente os espectadores têm acesso simultâneo, ou quase simultâneo, aos dois planos, expediente que permite ao autor indicar os seus comentários, aproximando fatos separados no tempo, sublinhando os pontos sobre os quais deseja chamar a atenção.
Os temas - tanto os mais ou menos impessoais, a chuva, o café, as orações, a costura, quanto as reações psicológicas de cada personagem - como que se chamam e se respondem de plano para plano, atraindo-se ou repelindo-se, dando o ritmo interno, dramático e não simplesmente expositivo, que preside ao desenvolvimento e organização da obra. Às vezes, uma situação prepara, explica ou reforça outra semelhante, que aparecerá em plano diverso: é assim que a expulsão de Olímpio segue-se à de Marcelo, episódios ambos reveladores do gênio arrebatado de Quim.
Outras vezes dá-se o contrário: o confronto entre passado e presente, pela força de contraste, age como recurso de ironia dramática. Nós, espectadores, suspensos magicamente no tempo, tendo a visão global dos acontecimentos, confrangemo-nos com esperanças e otimismos que sabemos destinados ao malogro, ou sorrimos melancolicamente perante certas afirmações cuja gravidade os próprios protagonistas, no momento, estão longe de poder avaliar.
Veja-se a despedida da fazenda. Jorge Andrade só tardiamente a coloca ante nossos olhos, quando já tivemos tempo de perceber em profundidade o que aquelas terras herdadas do pai e do avô significam, do ponto de vista humano, para Quim. Preparados como estamos, Jorge Andrade pode-se dar ao luxo de não manifestar a presença concreta da fazenda, a relação íntima e amorosa estabelecida entre o homem e as coisas, senão por intermédio de minúsculos incidentes que perpassam pela conversa dos dois velhos, o balaústre que se está estragando, os vidros da bandeira da porta que é preciso trocar, as formigas que tornaram a sair, pequenos sinais que nos falam sutilmente da ameaça de morte que paira sobre aquela casa em vias de ser abandonada.
Não há lances eloquentes, despedidas melodramáticas. Não é necessário. O impacto nos vem, em grande parte, da revelação que o autor deixara cair pouco antes, no final do segundo ato: também o processo de recuperação judicial da fazenda seria perdido. Essa contrafeita e tímida despedida, em suma, é a definitiva. Quim ainda pode agarrar-se à ilusão da volta; nós, como espectadores, não temos nem sequer o benefício da dúvida. Sabendo mais que as personagens, dir-se-ia qu sofremos em certos instantes mais do que elas (Thorton Wilder, em Nossa cidade, vale-se abundantemente dessa mesma espécie de emoção).
Toda A moratória é construída assim: cada plano descreve a sua curva própria, indo da esperança ao desespero ou vice-versa - até que sobrevenha a derrocada final. Mas o gráfico, a fisionomia última da peça, é constituída pela habilíssima superposição das duas curvas. A história contada em sequência cronológica não seria a mesma história.
segunda-feira, 17 de agosto de 2009
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