quinta-feira, 6 de agosto de 2009

Tire as mãos da máscara!

Dario Fo


Nas paredes das cavernas Des Frères, nos Pirineus, encontramos os primeiros indícios referentes ao uso da máscara. O desenho, executado com traços precisos, retrata um rebanho de bodes selvagens no pasto. Um deles, entretanto, tem pernas e pés, ao invés de patas. As mãos que aparecem parcialmente através de sua couraça empunham um arco e flecha. Trata-se, evidentemente, de um caçador disfarçado. Supõe-se até que ele se besuntou com estrume de bode para dissimular o próprio cheiro. Esta tentativa exacerbada de metamorfose revela uma certa técnica.

O ritual de disfarces através do uso de peles e máscaras de animais faz parte das tradições da maioria das culturas. Essa prática foi, aos poucos, dando origem à figura do ator: uma pessoa que dominava o uso de máscaras, embora de forma bem diferente do caçador.

Casualmente assisti a um documentário sobre a Sarabanda dos Mammutones na Sardenha. Trata-se de um ritual teatral antigo que até hoje se realiza no centro-norte da ilha. O Mammutone é um personagem mitológico que veste a pele de bode. Na cintura estão pendurados cincerros que ressoam ruidosamente a cada movimento do personagem. Ele usa uma máscara que se assemelha ao focinho de um bode.

Os Mammutones nunca representam sozinhos, mas em grupos de cinco ou dez. Entre eles, encontra-se o bode-chefe, que estabelece o passo e o ritmo da dança. Com o aviso suficiente fornecido pelos sinos, o rebanho "invade" a cidade. Os habitantes fogem fingindo muito medo. Subitamente eles param e olham para as portas e janelas das lojas e casas. As crianças continuam a seguir os Mammutones até a praça principal, onde dançarinos usando várias máscaras em forma de animais estão à espera. Todos dançam juntos, batendo com o pé no chão e emitindo gritos assustadores.

A história, ou melhor, o mito que é recontado representa pouco mais que um relato tornado incoerente com o passar do tempo. Isto é compreensível. O antropólogo nos lembra que estas eram representações sagradas de dezoito séculos atrás. Em outra ocasião, perguntei ao administrador do Museu de Antropologia de Sassari por quê, entre aquele grupo de animais selvagens, eu havia observado uma máscara que se assemelhava a um rosto humano, com pele clara e feições aristocráticas. Ele respondeu que, pelo que sabia, aquele personagem fora acrescentado mais tarde pelos fenícios ou gregos áticos e representava um deus fenício, talvez até mesmo Dionísio. Estas representações estão claramente ligadas aos ritos de fertilidade realizados por todas as tribos, como aquelas das culturas eleusianas.

Sabemos que as máscaras da commedia dell'arte encontram suas raízes na Grécia Antiga e no romano. E é sabido que o teatro grego tomou emprestado muitas características das tradições teatrais do Oriente e do extremo-oriente: por exemplo, uma máscara de Bali lembra muito o personagem Pantaleão de Bisognos; uma máscara de um homem velho que traz estampada a mesma coragem, o mesmo sorriso zombeteiro, olhos fundos e feições estilizadas.

Além disso, muitas máscaras, desde a usada pelos Zanni (servos) até a de Arlecchino (Arlequim), levam um sinal vermelho na testa: este é um símbolo análogo ao que é encontrado nas máscaras orientais. Geralmente esta "verruga", este "terceiro olho", representa o lado diabólico das máscaras que originalmente tinham um objetivo duplo - proteger o caçador do tabu e garantir-lhe um disfarce ao se aproximar da presa.

O próprio Pã, o protetor Deus-fauno do rebanho, é um personagem que se encontra entre o diabólico e o animalesco. Até o Arlequim é um fauno-demônio de diversas qualidades; um estudioso insiste em identificar, nesta máscara, um chifre quebrado. E não nos esqueçamos da divindade egípcia da morte, Osíris, que usa na testa um disco de ouro envolto por dois ramos de palmeira, produzindo assim a mesma flexibilidade de movimento encontrada na máscara de Arlequim.

O estudo de imagens encontradas nas pinturas de vasos gregos revela muitas pistas em relação à história e às finalidades da máscara. Consideremos uma máscara singular que foi reconstituída, o Boccalone. Constitui um exemplo extraordinário, tanto por sua estrutura como por seus criadores, a melhor família de fabricantes de máscaras na tradição italiana, os Sartoris de Pádua. O grotesco sorriso de escárnio é o mesmo encontrado nas máscaras dos personagens da ateliane, uma forma de farsa dramática popular na era romana. Entretanto, tais imagens já haviam sido observadas muito antes, nos áticos do século quarto A.C, retratando cenas da época de Aristófanes.

Diante da máscara de Boccalone, o orador prolixo, um observador curioso pode ser levado a perguntar por que esta forma determinada foi escolhida ou por que a boca lembra um megafone. É importante levar em consideração as dimensões amplas do teatro grego, que algumas vezes comportava até 20 mil espectadores. O ator projetava e amplificava sua voz falando por este instrumento em formato de funil. Na verdade, todas as máscaras eram feitas de forma tal que cada detalhe intrínseco prestava-se à criação de vibrações sonoras não apenas singulares como também de tonalidades variadas.

Em termos de volume, a voz se duplicava, especialmente os tons baixos, permitindo ao personagem-herói possuir a voz mais profunda, a mais cheia. Cada máscara é um instrumento musical que possui uma ressonância única. Empregando vários mecanismos, é possível alcançar uma variedade ampla de tonalidades, indo do falsete a ruídos sibilantes, permitindo assim que um ator interprete vários personagens diferentes.

Quase todas as máscaras, incluindo aquelas da commedia dell'arte, referem-se a animais, guardando com frequência feições complexas, o resultado de cruzamentos imaginários. Elas provavelmente são zoomorfas na origem. A máscara de Capitano (Capitão) é o resultado do acasalamento entre um bigle e um mastim napolitano que tem cara de homem. Um personagem muito conhecido da commedia dell'arte, o Capitão, é fundador da família de personagens como os Matamoro, Spaventa, Fracassa, para citar apenas alguns.

Outra máscara famosa, o clássico Arlequim, é meio gato, meio macaco e em alguns casos é identificado como Arlequim-Gato. O ator que usa esta máscara deve ser capaz de saltar graciosamente pelo ar e revelar uma agilidade extrema nas mãos e pernas à medida que passeia pelo palco.

O peru e o galo dão origem ao Pantalone (Pantaleão), sem falar em Brighela, que é meio cachorro e meio gato ou no Dotore (Doutor), que, mas províncias de Ferrara e Bolonha, é derivado de um porco. Estes são todos animais de quintal, da parte mais baixa da corte, onde os servos e outros completavam suas parcas rendas fazendo trabalhos avulsos para a corte.

A corte alta se referia à sociedade dos humanos: na verdade, na tradição da commedia dell'arte, nobres, cavaleiros e damas nunca usavam máscaras. O significado social é claro: a classe politicamente sem porder era zombada (médicos retratados como charlatães, mercadores como trapaceiros), enquanto a nobreza, banqueiros e mercadores importantes nunca eram ridicularizados. Aqueles que se atreviam, arriscavam os ossos. Nesta sociedade cada vez mais capitalista burguessa que determinava, entre outras coisas, preferência culturais, somente as classes sociais mais baixas recebiam o impacto da sátira.

A princípio, atuar com uma márcara torna um ator constrangido e até desajeitado. Com o tempo e a prática, ele se livra dessa limitação e pode até se sentir mais espontâneo do que antes. Existe uma regra para quem usa uma máscara: ela não deve nunca ser tocada. Se tocada, desaparece - se auto-destrói e torna-se repulsiva. Ver um ator tocar em sua máscara enquanto atua me dá arrepios.

A máscara requer um conjunto singular de gestos e estilos. O movimento do corpo vai mais além da habitual alternância de ombros. Por quê? Porque o corpo inteiro deve atuar como uma armação para a máscara, mudando sua estabilidade. Estes gestos, variando em ritmo e dimensão, modificam a importância da máscara em si. É muito cansativo representar com uma máscara porque, entre outras coisas, devemos mover o pescoço contínua e rapidamente - esquerda, direita, para baixo, para cima - até que se consiga uma agressividade que toque as raias do animalesco.

O ator que escolhe trabalhar com uma máscara deve passar por um regime específico de exercícios para alcançar uma atuação perfeita - um fluidez de movimento que vem quase naturalmente. Isso me faz lembar de uma anedota. Marcello Moreti, que tanto influenciou os arlequins desses últimos 50 anos, por muitos anos se recusou a atuar com máscaras. Em vez disso, preferia pintar seu rosto de preto com uma maquiagem à base de cera.

Ele se recusava a usar a máscara por duas razões. A primeira e mais importante diz respeito ao fato de que representar com uma máscara é uma experiência dolorosa para o ator, não apenas por causa da complexidade do seu uso, mas devido às limitações acústicas e visuais que impõe ao usuário. A voz do ator ressoa para dentro e se distorce. Enquanto o ator não se acostuma com ela, não consegue respirar adequadamente, o que arruína a sua concentração. A outra razão é de natureza mais mística. Quando se remove a máscara, sente-se como se uma parte de seu rosto permanecesse irrecuperavelmente grudada nela.

Marcello Moreti, entretanto, foi inevitavelmente seduzido pelo "jogo" da máscara, e depois de dez anos atuando com ela, não pôde mais representar sem ela. Ficou desesperado, convencido de que sua verdadeira face tinha perdido a agilidade necessária. Esta é uma situação compreensível. Enquanto atua com uma máscara, os gestos do ator devem ser grandiosos e exagerados. O movimento e a dinâmica do corpo determinam o impacto da máscara: por debaixo da máscara, a face permanece passiva, inexpressiva, uma espécie de contra-reação do corpo superativo.

Esta técnica, empregada durante anos, destrói a mobilidade muscular da face de uma pessoa - ou melhor, as contrações dos músculos faciais tornam-se completamente diferentes daquelas expressadas por um ator fazendo o teatro "padrão". Por isso é necessário esquecer a máscara de vez em quando - jogá-la fora, rejeitá-la.

Eu gostaria de concluir este breve artigo fazendo referências ao meu livro Manuale minimo dell'attore, no qual afirmo que usar a máscara não significa ocultar. O oposto é que é verdadeiro. Este artifício é muito eficaz para possibilitar que se inteprete muitos personagens teatrais com toda a riqueza de nuances. Hoje, quando alguém pensa em máscara, o faz em seu contexto mais natural, o carnaval. E por quê não? As celebrações carnavalescas são realizadas em muitos países. Eu pessoalmente estive em vários deles. Nas origens desses carnavais modernos, reside um ritual antigo que floresce, um jogo que é ao mesmo tempo mágico e religioso. As máscaras sempre estiveram conosco, desde os primórdios da humanidade, trazendo consigo o poder do disfarce.
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Extraído de The New Theatre Quartely, vol. V, nº 19, 1989. Tradução de Magda Arbex de Freitas. Colaboração do Curso de Tradução do Departamento de Letras da PUC-Rio. O presente artigo consta da revista Cadernos de Teatro nº 125/1991, edição já esgotada.

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