sexta-feira, 7 de agosto de 2009

Teatro/CRÍTICA

"A música segunda"

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Amarga partitura amorosa

Lionel Fischer


Como todos sabemos, são infinitas as razões que levam um casal a se separar. E uma delas, sem dúvida, é a falta de amor, ou seja, a dolorosa constatação de que o sentimento que unira duas pessoas no passado já não existe no presente. Mas o inverso é bastante raro: pessoas se separarem por excesso de amor. E é justamente o que acontece no presente caso: os protagonistas de "A música segunda" foram casados e se amaram loucamente, mas a mútua paixão trazia embutidas características por demais destrutivas, às quais ambos finalmente sucumbiram. Três anos após a separação, os dois se reencontram em um hotel de província onde viveram um tempo, e então torna-se evidente que apesar da paixão ainda existir, não há a menor possibilidade de voltarem a viver juntos, já que estariam condenados a repetir os mesmos e doentios sintomas do passado.

Eis, em resumo, o enredo de "A música segunda", de Marguerite Duras, em cartaz no Teatro Maison de France. O espetáculo chega à cena com tradução de Aline Meyer, direção de José Possi Neto e elenco formado por Leonardo Medeiros e Helena Ranaldi, que dividem o palco com um casal de bailarinos, Charles Fernandes e Adriana Bonfati.

Dentre os muitos temas abordados, dois deles se sobressaem: a traição e o desejo. E de forma bastante singular. De uma maneira geral, podemos supor que traição e desejo têm muito em comum, pois aquele que trai só o faz - a menos que padeça de grave patologia - por ausência de desejo, que então seria canalizado para outra pessoa. No entanto, aqui não ocorre este esquema tão corriqueiro: os personagens sentiam enorme desejo um pelo outro e assim mesmo viviam se traindo. Mas por quê? Bem, aqui caberiam muitas especulações. Mas nossa opção recai sobre a permanente dificuldade dos personagens de se abrirem inteiramente um com o outro, pela progressiva incomunicabilidade que foi se estabelecendo entre eles. E o não-dito, a incapacidade do casal de não conseguir converter em texto os sub-textos de sua relação, talvez tenha sido o fator determinante para o fim da relação que parecia fadada a se perpetuar.

Contendo ótimos personagens, diálogos brilhantes e pertinentes reflexões sobre a vida e as questões amorosas, o ótimo texto de Marguerite Duras recebeu excelente versão cênica de José Possi Neto. Com sua classe habitual, Possi conduz o espetáclo valorizando de forma irrepreensível justamente todos os sub-textos, as entrelinhas, os dilacerados impulsos que a todo momento dão a ilusória sensação de que vão se materializar. Além disso, e também como de hábito, Possi revela-se um maravilhoso diretor de atores.

Leonardo Medeiros (Michel) e Helena Ranaldi (Anne-Marie) exibem performances de altíssima qualidade, dentre outras razões por conseguirem trabalhar seus personagens numa chave que, desprovida de maiores arroubos, traduz com precisão o que foi dito no parágrafo anterior, ou seja, o embate íntimo e torturante entre o impulso de se expor completamente e o receio de fazê-lo, quem sabe fruto da consciência de ambos de sua inutilidade. Sob todos os pontos de vista, estamos diante de duas atuações das mais brilhantes da atual temporada.

Quanto ao casal de bailarinos (por sinal excelentes), estes podem ser encarados como duplos dos personagens, já que em alguns momentos assumem atitutes parecidas com as deles. Mas também podemos olhá-los como a materialização, convertida em dança, dos conteúdos propostos pela autora, uma dança quase sempre lenta e um tanto irreal, eventualmente permeada de impulsos apaixonados e de outros tantos impregnados de dolorosa resignação.

Na equipe técnica, Aline Meyer assina uma tradução irrepreensível, com Jean Pierre Tortil respondendo pela bela e sombria cenografia. O diretor também obtém pleno êxito como autor da luz, figurinos e direção de arte, cabendo ainda destacar a sensível e expressiva trilha sonora, feita por Tunica Teixeira e Aline Meyer.

A MÚSICA SEGUNDA - Texto de Marguerite Duras. Direção de José Possi Neto. Com Leonardo Medeiros e Helena Ranaldi. Teatro Maison de France. Quinta a sábado, 20h. Domingo, 19h

2 comentários:

  1. Não apenas uma, mas algumas vezes Charles Fernandes e Adriana Bonfati me fizeram esquecer dos protagonistas em cena e entrar no mundo mágico da dança que apresentavam.

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  2. Divino, a peça traduz a dificuldade de expressar sentimentos profundos, inclusive ao proprio entendimento do espectador, que ao final de longos e interminaveis minutos, consegue sair sem o entendimento do que se pretendia dizer. Realmente há de se aplaudir, pois o que nos sobrou foi uma enorme incompreensão e comentários desastrosos. Superou tudo que já vi.

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