segunda-feira, 24 de agosto de 2009

Teatro/CRÍTICA

"Deus é química"

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E o pior é que é mesmo...


Lionel Fischer


Em um de seus mais impactantes poemas, Bertolt Brecht diz o seguinte: "De que vale, com a lama até o pescoço, manter limpas as unhas nas pontas dos dedos?" - a tradução é de alguém cujo nome me escapa, mas que assim mesmo parabenizo, pois não consigo entender como alguém domina o alemão. E naquela que talvez seja sua canção mais contundente, "Blowin in the win", lá pelas tantas Bob Dylan indaga: "How many times can a man turn his head, pretend that he just dosen't see?" ("Quantas vezes um homem pode virar a cabeça, fingindo que não viu?") - aqui a tradução é minha, pela qual faço questão de me desculpar, já que meu inglês é de boteco. Mas, enfim: o que possuem em comum o poema e a canção?

Absolutamente tudo. No primeiro caso, estamos diante da alienação, da negação de uma amarga realidade, da hipocrisia de simular que tudo continua bem em meio ao caos. No segundo, Dylan fala da indiferença, da falta de solidariedade, do salve-se quem puder, o que não deixa de também constituir um grave sintoma de alienação. E esta é, sem dúvida, a mais sinistra patologia da globalização, que prega justamente a indiferença, a falta de solidariedade, a hipocrisia e, como se tudo isso não bastasse, a imperiosa necessidade de já se ter um milhão de dólares na conta bancária no máximo aos 30 anos.

Mas como aqui o tema é teatro, o que tem a ver o poema, a canção e a peça de estréia - com acento agudo, pois estréia sem acento, para mim, não passa de ensaio geral - da atriz Fernanda Torres? Absolutamente tudo. E esta é uma das razões que me levam a considerá-la de extrema importância no atual cenário dramatúrgico carioca. Em cartaz no Teatro dos Quatro, "Deus é química" foi escrita por Fernanda com a colaboração do conto "A química da ressurreição", de Jorge Mautner, e chega à cena com direção de Hamilton Vaz Pereira, estando o elenco constituído por Luiz Fernando Guimarães, Fernanda Torres, Francisco Cuoco, Jorge Mautner e Fransergio Araújo, que dividem o palco com o coro formado por Cesar Miranda, João Lucas Romero, Lucas Oradovschi e Vicente Coelho, com Saulo Segreto ficando responsável pela leitura das rubricas.

É bem possível que muitos sábios, que se julgam detentores do monopólio da verdade, façam graves ressalvas à dramaturgia em questão. Mas como conceituar dramaturgia me obrigaria a escrever um tratado de no mínimo 800 páginas, deixo de lado a possibilidade imediata de redigí-lo e me contento em afirmar que Fernanda Torres produziu, sim, um texto dramatúrgico, e da maior qualidade. Claro que fora dos padrões convencionais, mas nem por isso isento dos méritos que detalho em seguida.

Para início de conversa, vamos ao tema principal. Numa leitura apressada, pode-se ter a impressão de que a autora situa seu foco no universo das drogas e de todas as suas funestas conseqüências - degradação pessoal, aumento da violência, responsabilidade dos usuários que possibilitam o comércio das ditas drogas etc. E embora isso não deixe de ser verdade, enxergamos algo que nos parece ainda mais apavorante e que Dostoievsky já vaticinara: "Se Deus não existe, então tudo é permitido". Mas o homem não resistiria à idéia de um mundo carente de Deus, seja ele qual for - e aí inluo até mesmo os ateus, pois basta terem um filho doente para que saiam entoando Ave Marias.

E que Deus seria esse, já que vivemos em um tempo em que as ideologias praticamente desapareceram, assim como ideais transformadores e valores éticos? Um Deus químico, naturalmente, quem sabe convertido em mágicas pílulas que teriam o poder de apaziguar corações dilacerados pela angústia e fornecer a ilusória sensação de felicidade. Deus, portanto, é realmente químico. Fernanda Torres está coberta de razão.

Quanto ao enredo da peça, este viaja por países e sensações, valoriza o humor (invariavelmente crítico) e a dramaticidade. E todas as ações - muitas delas precedidas da leitura de rubricas - conferem à montagem uma atmosfera delirante e propositadamente caótica. Mas neste quesito, cumpre ressaltar que o "caos" em questão é apenas aparente, já que a encenação é assinada pelo talentosíssimo Hamilton Vaz Pereira, que consegue o prodígio de simular "desordem" tendo a ordem a sustentá-la. Ou seja: a dinâmica cênica obedece a um planejamento mais do que detalhado, ainda que deixando espaço para eventuais momentos de improviso.

E como poderia ser de outra forma, se a montagem é protagonizada por dois de nossos mais talentosos intérpretes, Luiz Fernando Guimarães e Fernanda Torres? É impressionante a "química" entre eles, seja na televisão ou no teatro, e certamente se manteria a mesma caso resolvessem andar de pedalinho nas plácidas águas da Lagoa Rodrigo de Freitas. E os demais atores - Francisco Cuoco, o poeta e músico Jorge Mauter (estreando como ator) e Fransergio Araújo embarcam de cabeça, e com sucesso, nesta curiosa e mais do que oportuna jornada teatral, que, se por um lado, como já foi dito, viaja por muitos países, sem dúvida tem como porto de chegada os nossos corações, aposta na nossa capacidade de ainda refletir sobre a realidade na esperança de que consigamos transformá-la.

Na equipe técnica, Jorginho de Carvalho assina uma iluminação que reforça todos os climas emocionais em jogo, sendo impecáveis os figurinos de Felipe Veloso, a direção de arte de Gualter Pupo, a trilha sonora de Hamilton e Wallace Cardia, a participação deste último na bateria e na produção de efeitos sonoros e a direção musical de Pedro Luís.

DEUS É QUÍMICA - Texto de Fernanda Torres. Direção de Hamilton Vaz Pereira. Com Luiz Fernando Guimarãos, Fernanda Torres, Francisco Cuoco, Jorge Mautner e Fransergio Araújo. Teatro dos Quatro. Quinta a sábado, 21h. Domingo, 20h.

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