A expressão corporal
na Arte e na Vida
Nelly Laport
A Expressão Corporal não foi inventada por ninguém. Ela nem mesmo é privilégio exclusivo do ser humano. O arreganho furioso do gato diante do cão que o enfrenta; o sacudir alegre da cauda do cachorro diante da chegada do dono, são formas animaios de Expressão Corporal. É que, como um computador programado inteligentemente, cada indivíduo em cada espécie animal carrega, desde o nascimento, as informações básicas que lhe permitem "reagir", comportar-se de maneira a garantir a sobrevivência.
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A Expressão Corporal é uma dessas formas de reação, de comportamento do ser vivo em sua relação com os outros seres, na intercomunicação não verbal e, portanto, anterior à própria existência da palavra. E, portanto, uma forma de comunicação. Entre os seres humanos, algumas atitudes, algumas expressões denotam claramente o estado de ânimo do indivíduo. Assim é que ombros caídos, cabeça pendente são sinais de desânimo, tanto quanto olhos brilhantes e faces coloridas costumam denotar vivacidade e disposição alegre. A prática da observação adquirida na própria vida de relação nos ensina a distinguir e interpretar cada uma dessas expressões. Mas há também as várias formas de andar, de estar de pé e de sentar-se. De falar, de gesticular, de olhar, de tonalidade da voz. Tudo que o ser humano realiza na realidade de todo o dia exige uma Expressão Corporal que pode denotar um especial estado de espírito.
Distinções
Através da Expressão Corporal consegue-se, a maioria das vezes, distinguir o sexo do indivíduo. Muitas vezes sua idade e, com alguma prática, a sua classe social. Tudo isto, é claro, não em suas nuances e minúcias, mas de uma forma bastante significativa e suficiente para nos ajudar a orientar a nossa própria conduta. A Expressão Corporal transcende os simples objetivos práticos da nossa vida de relação. Ela é resultado de toda uma interação, de um conjunto de ações e reações, do crescimento, do amadurecimento e da conscientização gradativa da pessoa em torno de seus objetivos, de sua forma de encarar a vida, da construção do seu caráter.
Significado
Estudá-la é, porém, uma forma de tomar conhecimento do seu significado, da sua importância, do lugar que ocupa no relacionamento de todo o dia. E se cada indivíduo, cada pessoa, assume no mundo um papel que lhe é deseignado pelos acontecimentos, pela posição do seu nascimento, pela própria adoção consciente, então, a Expressão Corporal é muito para que cada um assuma a sua própria personalidade. É por isso que, quando procuramos nos conscientizar do papel da Expressão Corporal, temos que primeiramente saber quem somos, o que somos, o que desejamos ser.
Desempenho
Em geral, não devemos nos preocupar em desempenhar um papel, a não ser que a nossa profissão seja justamente a de ator. O que precisamos é desempenhar o nosso papel, aquele que nos cabe por herança familiar, por escolha e pelo esforço que realizamos para ser ou para nos transformarmos em algo melhor. A partir da consciência de si mesmo, do papel que temos a desempenhar na vida e do desejo constante de aperfeiçoamento é que se pode tirar real proveito da Expressão Corporal.
Origem
No que diz respeito à Expressão Corporal no teatro, a sua função é importante e enriquecedora. Sua origem pode ser situada no proto-teatro, nas danças e representações rituais dos selvagens. A bem dizer, a Expressão Corporal no teatro precede mesmo à própria palavra, ao próprio diálogo. Os rituais dos quais nasceu o teatro, em muitos casos, dispensava a palavra. Mas, ao que sabemos, desde as primeiras manifestações do que hoje se chama teatro e que, de acordo com a tradição, tearia aparecido na Grécia, a Expressão Corporal sempre esteve presente na atuação dos atores, embora no teatro grego os personagens usassem máscaras, vestimentas características e coturnos destinados a aumentar a estatura dos atores. Além disso, utilizavam-se de instrumentos próprios para aumentar o volume da voz, sabendo-se que as representações eram feitas em recinto amplo e aberto. Essas práticas para facilitar a visão e a audição da platéia não podiam deixar de prejudicar as nuances da Expressão Corporal do ator, que teria de recorrer aos gestos largos e às expressões mais óbvias.
Demônio
Mais tarde, com os mimos e as pantomimas, que obtiveram enorme popularidade em Roma, a Expressão Corporal atingiu grandes virtualidades. A queda do Império Romano e o advento do cristianismo provocou a perseguição aos atores, principalmente os mímicos, que eram considerados instrumentos do demônio. A Expressão Corporal voltou à cena com os funâmbulos, saltimbancos e histriões, reaparecidos na Idade Média e atingiu novo auge com a Commedia dell' Arte. Goldoni e Molière foram os continuadores mais importantes das conquistas cênicas da Commedia dell' Arte. O ator tornara-se novamente um profissional, tolerado mas ainda não muito benquisto pela sociedade. O próprio Molière, quando de sua morte, teve seu sepultamento impedido em cemitério cristão.
Evolução
A Expressão Corporal continuava sua evolução através do modo de atuação dos atores, com suas características próprias no Classicismo de Racine, requinte para aristocratas; no teatro de Shakespeare, ecumênico socialmente, pois tanto era levado na corte para a própria rainha, quanto para a plebe no Teatro Globo. Mas na Inglaterra da época ainda não se aceitava a mulher como atriz. Assim, as Julietas, as Desdêmonas e as Ladies Macbeth eram interpretadas por homens.
Conquista
Depois a lenta conquista de um status para a profissão e a evolução dos gêneros com Beaumarchais, Schiller, Victor Hugo e o Romantismo, e a teorização do desempenho em "Paradoxos sobre o ator", de Diderot. Em 1837, o ator brasileiro João Caetano, em suas "Lições Dramáticas", chama a atenção para a importância da Expressão Corporal: "Ninguém poderá dizer bem o papel que estudou sem que de antemão tenha aprendido todas as dificuldades do gesto". E continua com uma série de observações sobre o uso do corpo como auxiliar da expressão dramática que, até certo ponto, podem ser consideradas surpreendentes na data em que foram feitas. Pois, André Antoine, ainda em 1903, queixava-se da inexpressividade, da pomposidade, do uso de padrões estereotipados na gesticulação dos atores daquela época, na França. Dizia mesmo que tais atores apenas usavam dois instrumentos na atuação: a voz e a fisionomia. O resto dos seus corpos não participava da ação.
Pioneirismo
Para Antoine, sem dúvida o fundador do teatro moderno, a movimentação do ator é o seu mais intenso meio de expressão. Foi o primeiro a enfatizar a conscientização da Expressão Corporal como um dos meios mais poderosos e intensos da linguagem interpretativa. Com Stanislavski foi salientado o trabalho de dependência do corpo com respeito à alma. Na criação de um papel o ator deveria trabalhar principalmente o seu fluxo interior que criaria a vida do personagem. Isto, é certo, sem esquecer a configuração física externa, que deveria, entretanto, reproduzir o resultado do trabalho criador de suas emoções.
Discordância
Por fim Meyerhold, anteriormente associado a Stanislavski no Teatro de Arte de Moscou, discordou do método psicológico deste e preconizou um outro que denominou de Bio-Mecânica, que tem como objetivo a suprema formação física e social do ator. A missão mais importante do ator seria o domínio absoluto e o uso correto de todos os movimentos do seu corpo. Das experiências de Meyerhold e seus discípulos derivam praticamente todas as correntes avançadas do teatro contemporâneo, bastanto citar, entre as principais, a de Erwin Piscator - que preparou o advento do Teatro Épico, de Bertolt Brecht; o Teatro Total americano e inglês, que tem em Peter Brook sua figura exponencial e, até mesmo, o Teatro do Absurdo descendente das teorizações de Antonin Artaud. Ultimamente o nome de Jerzy Grotowski e seu Teatro Pobre ganhou enorme dimensão. Suas teorizações têm conquistado o apaluso de importantes personalidades do teatro de todo o mundo. Entretanto, a prática do seu método de exercícios físicos, destinados a conquistar o extremo domínio da Expressão Corporal, é, ao nosso ver, excessivamente complexa e extenuante.
Laboratório
Não podemos deixar de nos referir, também, a certos tipos de trabalhos preparatórios, de experiências de grupos de atores, denominados de Laboratórios e destinados a criar o clima propício a integração de cada um nos respectivos papéis. Em alguns casos esses trabalhos tendem a assumir o aspecto de psicodramas, realizados, entretanto, sem a assistência do terapeuta psicodramatista. Esses tipos de experiência podem, em certos casos, desencadear processos neuróticos e, até mesmo, psicóticos em personalidades mais suscetíveis. O psicodrama é um processo de terapia grupal que envolve problemas pertencentes a áreas complexas que somente um especialista com extenso período de treinamento está apto a enfrentar e resolver.
Função
Em resumo, em nosso entender, a Expressão Corporal no teatro tem a função de denotar todas as peculiaridades físicas do personagem, criando uma realidade teatral adequada aos propósitos do espetáculo, de acordo com a concepção original do diretor. Em caso de espetáculos exclusivamente mímicos a técnica a seguir será, obviamente, outra, obedecendo a critérios próprios desse gênero. Em princípio, porém, o treinamento básico, os exercícios físicos, destinados à conquista de uma virtuosidade necessária à representação, são os mesmos.
Princípios
Agora vamos passar a examinar alguns princípios teóricos e práticos cujo conhecimento é indispensável ao treinamento destinado à obtenção de uma Expressão Corporal mais livre, espontânea e adequada a uma personalidade autêntica.
SENTIDO CINESTÉSICO (Percepção do Movimento)
O senso cinestésico é aquele que lhe informa o que seu corpo está realizando no espaço, através da sensação ou percepção do movimento nos seus músculos, tendões e articulações. Assim é que, se você estica o braço você sabe que ele está estendido porque o seu senso cinestésico lhe transmite essa informação. Por outro lado, a memória desses movimentos realizados, de suas diversas formas, é muito mais sensorial, cinestésica, do que propriamente intelectual. Desenvolvendo-se esse tipo de percepção, facilita-se a memorização dos movimentos porque a lembrança cinestésica é global, enquanto que a memória intelectual é feita por partes, é dividida em momentos.
Quando o estudante consegue perceber todas as informações que o seu senso cinestésico pode lhe proporcionar, o que é resultado de estudo e treinamento adequados, o seu próprio auto-conhecimento é grandemente aumentado. Ele percebe quando está usando mais tensão do que a necessária ou quando, pelo contrário, a que está utilizando é insuficiente. Também tem consciência de que sua postura reflete o estado de espírito que ele deseja representar. Se ele realmente treinou devidamente todos os movimentos de forma correta, relembrará quais aqueles que são adequados a determinada postura e estará apto a recriá-los em sua essência. Isto também o ajudará quando em dificuldade emocional, pois já terá aprendido como se comporta o seu corpo ao experimentar determinadas emoções.
Em todo caso, as seguintes perguntas são fundamentais:
1) Sua respiração foi afetada pela emoção?
2) Qual é o centro de tensão em seu corpo?
3) A emoção o faz sentir-se descontraído e expansivo ou fechado e concentrado?
Se o estudante estiver em condições de responder a estas questões, poderá, provavelmente, recriar essa emoção quando quiser. Em qualquer caso, para o ator ou para o estudante da técnica de Expressão Corporal, é da maior importância saber como a emoção o afeta fisicamente.
POSTURA (Equilíbrio Corporal)
O centro de gravidade ou equilíbrio no corpo humano está localizado na região pélvica. As pernas são a estutura que suporta o centro e os pés vem a ser a base desse suporte. A posição ideal é quando se mantém cada parte móvel uma acima da outra para que a linha central de gravidade e o sentido de gravidade passem pela perna e pelos pés. A manutenção de uma postura adequada pode ser conseguida através de um exercício consciente, da prática constante dessa postura até que ela se transforme num hábito e se incorpore definitivamente à maneira de ser, física, da pessoa. Portanto, a correção da postura depende apenas de um esforço próprio.
Finalidade
Os exercícios físicos são utilizados para a seguinte finalidade:
1) Coordenação, flexibilidade, força e resistência;
2) Aperfeiçoar a percepção cinestésica de forma que a pessoa passe a ter consciência permanente das suas ações e gestos;
3) Os exercícios físicos não devem ser encarados como um divertimento ou uma tarefa. Não se deve iniciar exercícios, executá-los por algum tempo e depois esquecê-los. Os exercícios devem ser considerados sempre como um desafio estimulante. Todo mundo pode sempre esticar-se mais um pouco e saltar um pouco mais alto.
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Artigo publicado na revista Cadernos de Teatro nº 66/1975, edição já esgotada.
quarta-feira, 6 de maio de 2009
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Este texto é seu ou da Nelly Laport?
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