sexta-feira, 22 de maio de 2009

Teatro, Humor & Amor

José Octávio Naves

Algumas considerações tecidas sobre estes fascinantes e importantes temas (não necessariamente nessa ordem), escritas a partir de um debate realizado após uma apresentação da peça "Do amor", de Domingos Oliveira, no Teatro Planetário da Gávea, 1985.
O autor é psicanalista, professor da PUC-RJ e fez seus estudos de pós-graduação na Universidade Católica de Louvain, Bélgica.

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Debater o amor ou debater-se no amor, é um jogo de palavras que um amigo meu me propunha ontem e que serviu de semente ao que eu lhes digo agora. De qualquer maneira, é do prazer que se fala. Do prazer, do amor e do cômico, da relação da dor e do prazer, procura e perda. O teatro, arte total, corpo e fala, é o mundo privilegiado para aquilo que é espirituoso. Tanto o corpo como a palavra se apresentam na multidão de suas ambigüidades. O que se passa no palco é uma condensação de propósitos e sentidos, o deslocamento e o deslize constante de uma verdade à outra verdade, de um não sentido inicial a um aprofundamento de sentido, de um lúdico amoroso a um instante apaixonado e intensamente pleno de espírito.

Comicidade

O Cômico é profundamente estudado pela psicanálise. Ela busca encontrar nele a razão de seu prazer, sua fonte e sua formação, junto à dinâmica do seu poder de descarga. Freud escreve uma de suas obras mais interessantes tendo como tema o cômico, obra infelizmente pouco lida e comentada no Brasil. É essencial dizer que Freud redige o seu livro sobre o chiste e suas relações com o inconsciente, ao mesmo tempo que trabalha "Três ensaios sobre a sexualidade".

Aproximação

Nós poderíamos dizer que, assim fazendo, ele aproxima intensamente as duas obras, ou seja, a progressão no desenvolviento da sexualidade e a produção do riso. Assim, nós poderíamos dizer que se trata de unificar, de sintetizar o aspecto teórico e as tendências destas duas produções de prazer.

Criança

A criança retira um grande gozo jogando ou brincando com as palavras. Como ela brinca com as coisas e com o corpo ela joga, mesmos nos exercícios pré-verbais, com os sons. Neste momento, o material é sem significado, o prazer é do significante. O adulto, porém, volta sempre a esta criança que ele era nesta inusitada produção do cômico e do gozo que dela resulta.

Homem

Mas para o homem tirar satisfação do jogo é preciso que lhe dê significado. O jogo das palavras que nós chamaríamos espirituoso, quase insensato, absurdo somatório que ri das críticas da razão e que goza diante delas, impõe silêncio a esta mesma razão, silêncio sem o qual o prazer se sufocaria.

Ápice

Mas é somente numa última etapa que o prazer do riso atinge o seu mais extremado ápice e seus mais deliciosos abismos. Apesar das inibições, o cômico, que anteriormente vence e mata a razão, assassina e derrota agora a censura interna e através de uma fachada de aparente simplicidade permite a passagem da verdade e do desejo. É através desse caminho que Freud relaciona o cômico ao sonho e ao inconsciente, afirmando que eles são regidos pelos mesmos processos. Também no cômico, como no sonho, algo de sutil e de involuntário acontece. Nós poderíamos dizer que o cômico e o sonho se fazem dentro de nós e ultrapassam o nosso próprio poder de fazê-lo surgir.

Humor

Mas no domínio do riso aparece ainda uma outra situação, situada na ordem do afeto e do sentimento, situação esta que chamaríamos de "humor". Ele parece ser uma conquista do homem diante da dor, aspecto imensamente poderoso dentro do aparelho psíquico. O humor parece permitir que quase tudo se diga, quase tudo se sinta, quase tudo se faça ou se desnude. Parece que com ele, a vida e a morte se conjugam para tornar possível a palavra mais próxima da verdade e do desejo Permitir-se sentir não importa o quê, com humor, é uma característica dos sábios. O humor ama enquanto o julgamento rivaliza. Na medida que o humor ri do que diz, uma ordem simbólica se apresenta, uma terceira coisa toma lugar, e algo da ordem da vida se torna possível. O sonho então é irmão do humor, na medida que eles propiciam a expressão deste material escondido. Pensemos, então, na estranha riqueza do texto denominado "Noite feliz" (O. Henry)

Jogo

O jogo é um jogo de presentes, de oferta, de significado. A intenção é a passagem da confissão de amor, ou dele mesmo e, aparentemente, o que nos traz o texto é um extremo fracasso desta doação. A esposa vende os cabelos onde cabiam as travessas e o marido, o relógio, onde se encaixaria a corrente. Ambos doam exatamente naquilo onde o outro não tem mais. E o que é na aparência um fracasso, uma comédia de erros, se transmuda num momento de encontro. Assim, o tema "Da Ternura" fala mais propriamente do amor e da falta. O que ambos se dão, apesar de uma aparente inutilidade, é exatamente aquilo, e unicamente aquilo, que eles poderiam se doar.

Dialética

E é só neste campo e desta dialética que o amor se faz. A mulher só poderia receber as travessas se houvesse cortado os cabelos e o homem só se prenderia à corrente se houvesse se desfeito do relógio. É neste jogo impossível onde o amor cria uma utilidade específica, maravilhosa e exaltante, é neste jogo de perder no ganho que o gozo se faz e não só o presente, no seu sentido de doação, pode se fazer no seu inteiro significado, mas também o presente, no seu sentido de tempo, se torna gozo, chama e quase eterno. De agora em diante, o que se passa em cena joga entre o amor, a paixão e o ciúme.

Amor

O amor, psicanaliticamente, é obra da criação. E sem a criação, o homem adoece, diz Freud. O jogo da paixão e do amor se torna então um difícil vocabulário. O amor seria obra da diferença, da falta; neste jogo de vida e morte ele permite ao homem recriar-se, fornecendo-lhe a possibilidade de ser "na posse" o que "pensou ser", restituindo no "possuindo", o "não mais sendo". Assim, amando, o homem esvai-se e se esvazia, e este depositário sequioso e em estio só se peencherá na medida que receber amor do outro. Assim pensando, o amor é o extremo da troca. Amar é esvaziar-se para dar lugar ao amor do outro. Como diz o texto, ele é filho da pobreza com o recurso. O amor não é o contrário do ódio, também neste terreno movediço ele floresce e caminha. Só a infiferença, palavra perigosa e sentimento quase impossível, parece que lhe faz antônimo.

Espelho

A paixão parece ser a obra do espelho. O apaixonado pensa se complicar na projeção de si no outro e o momento em que o olhar se faz e se espelha, parece ser o momento da miragem que se esgota no buscar a fonte. "Eu te amo", disse-me uma mulher, numa noite, porque és o arquivo onde eu guardei a lembrança da paixão que tive por ti. Não sei se te amo ou se amo a paixão a que me acendeste e que totemizas. Eu te amo, diria o poeta, mas eu não sei o que você tem a ver com isto.

Ciúme

O ciúme, porém, é obra da História. É o homem histórico que produz e possui o ciúme. É o luto e a perda, a experiência cruel e a partida que, armazenadas no Ego, temem a repetição, império do ciúme. A condição de vida do desligar-se e perder-se inspiram e alimentam. São diferentes as relações do amor e do ciúme com a morte. O amor revitaliza a morte, transformando-a na pequena morte do orgasmo. O ciúme, porém, reforça as colorações da morte, se aproxida dela e se intoxica daquilo que ela emana. O amor é sempre histórico e resgata a história.

Sexo

O ato sexual começa na boca do seio e termina no genital da falta. O homem, como já dissemos, nunca abandonou um prazer que já teve. No amor, ele resgata a criança e é só aí que eu posso compreender por que Eros não pode crescer, pois ele simboliza a criança a ser resgatada.

Caminho

Este espetáculo nos trouxe outra vez o caminho desta criança gososa e sofredora, dona de perdas e ganhos - Cupido. Tornou possível este resgate através da sabedoria do humor e da verdade.
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Artigo extraído da revista Cadernos de Teatro nº 108, edição já esgotada.


















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