terça-feira, 26 de maio de 2009

Qual é o lugar do teatro?

Ricardo Kosovski

De que modo podemos equacionar os relacionamentos do teatro com determinados ramos sociais? Vivemos a afirmação de uma cultura preponderantemente ligada à imagem; como situar o teatro, que tem em um de seus centros constitutivos a palavra, forma comunicacional em desprestígio? Qual o espaço de representatividade cultural e artística que este meio ocupa na contemporaneidade? Será que o advento de formas comunicacionais tecnologicamente mais evoluídas contribuiu para o enfraquecimento do teatro como forma de expressão? Que tipo de cumplicidade serviria à arte dramática em termos de uma parceria com a televisão e o cinema? Como as artes cênicas sobreviverão aos desafios das novas linguagens que surgem? O que o teatro pode realizar mais eficazmente que os outros meios de comunicação?

Partimos de indagações para questionar o instante presente e propor não especificamente alternativas, mas sim a possibilidade de refletir um pouco acerca daquilo que designamos como teatro.

Ruptura

Aqueles que falam continuamente em crise do teatro esquecem-se que crise é ponto de ruptura de uma falsa estabilidade. Crise pressupõe que alguma modificação vai operar-se no status quo. Crise é, portanto, fonte de movimento. O que se passou com o teatro? Baixou o público? Este diminuiu por diversos motivos, que vão desde a criação de novos hábitos até o desenvolvimento do senso crítico para selecionar espetáculos que correspondam a seus anseios.

Não cremos que o teatro esteja perdendo terreno em relação às outras artes. O público não abanbdona o teatro por preferir outras formas de espetáculo. A tela gigantesca do cinema ou a pequena tela da TV não substituem a sugestão da cena. Mas o público exige do teatro muito mais do que antes, na medida em que seu gosto transformou-se justamente através das experiências do cinema e da televisão. Que o profissional de teatro pense acima de tudo no espectador, pois é à platéia que ele serve. Captar as demandas do presente, eis a questão.

É preciso reconhecer a situação existente e reivindicar para o teatro aquilo que outros veículos de comunicação não podem oferecer. O estrito realismo contemporâneo, por exemplo, é mais bem servido pelo cinema; mas nem este nem a televisão são capazes de realizar, tão satisfatoriamente quanto o palco, uma farsa de estilo; ou a economia dramática que o teatro, por sua própria convenção, pode criar, abrindo mão da ambientação fotográfica. Parece-nos que a expressão daquilo que é essencialmente teatral insere as artes cênicas em um contexto de posturas críticas relevantes para a sociedade.

Vigia

Hoje em dia, a televisão instalou-se no centro de nossa intimidade como um olho que vigia, informa, promete. Este olho atrai com seu poder hipnótico, e ao mesmo tempo cria a ilusão de respeitar a liberdade e a integridade. Basta um movimento suave, uma leve pressão no comutador e o olho fecha sua pálpebra. De que regiões emerge esse retângulo fosforescente tão poderoso que nos fascina? Será a televisão apenas um aparelho eletrodoméstico indispensável ao conforto de civilizados, dócil ao comando, apto a povoar nosso universo de imagens, aventuras, fantasias e notícias? Sim; também. Mas sem dúvida a televisão ocupa um espaço criado em parte por ela mesma, pela necessidade de consagrar todo um sistema sociocultural. A televisão modificou hábitos, criando uma nova sociologia do gosto. E é a partir desta que o teatro deve repensar-se enquanto meio de comunicação e arte, buscando encontrar sua especificidade e, conseqüentemente, seu lugar.

A nosso ver, com toda a imparcialidade que cabe a uma reflexão desta ordem, o teatro é um veículo sofisticadíssimo, exatamente por sua funcionalidade, simplicidade e utilidade como instrumento social, político e psicológico. O renomado encenador inglês Peter Brook, em seu livro "O ponto de mudança", afirma que Deus criou o teatro exatamente no instante em que tudo estava perfeito na Terra, mas algo faltava: "A possibilidade da realidade imitar-se a si mesma".

Espelho

Esse mecanismo é extraordinariamente requintado, quando pensamos no significado das coisas e em tudo aquilo que o homem-criador faz para aperfeiçoar sua existência, com o fim de obter maior consciência e bem-estar. É possível compreender esta arte milenar como algo que se inscreve no rol das criações mais indispensáveis à humanidade: a recriação, a celebração do instante, o espelho. É a possibilidade sofisticada de produção de pensamento de uma forma rigorosamente particular.

Poder-se-ia supor que qualquer outra expressão artística, ou até mesmo outros meios de registro de imagem (televisão, vídeo, cinema, fotografia, memória), poderiam cumprir essa função de ressignificação da natureza com a mesma potência que o teatro empreende. Engano dos que assim pensam: sua força é única no âmbito de transmitir ao ser humano aquilo que lhe é primordial, e o maior prazer que pode conferir é o de fazer pensar e sentir.

O teatro pode contribuir para a modernização do aparelho conceitual do homem e para a amplificação de sua capacidade de raciocínio; desta forma, instrumentaliza-o mais eficazmente para que depure a própria tecnologia, que se aperfeiçoa a cada dia.

Dialética

Comecemos pela faculdade de raciocínio dialético, sem a qual não é possível compreender o mundo em seus processos e transformações. As mudanças que se operam decorrem das contradições que lhe são inerentes. É possível mostrá-las no teatro? Isso não é só possível, como é necessário. O conflito é a essencialidade do teatro, como o é também da dialética. Mostrar a luta dos contrários e sua tendência à unidade, de onde decorrem as contradições e nascem as oposições, eis uma tarefa apaixonante para o teatro contemporâneo, que assim tem a oportunidade de tornar-se uma 'Escola da Dialética'.

Outra particularidade é a possibilidade de expressar o imaginário dentro deste campo dialético. Também pode tornar-se 'Escola de Imaginação', capaz de estimular a sensibilidade estética e social, de recuar ou avançar os limites da compreensão e de associação de idéias.

Imaginação

Pensando nas possibilidades estilísticas, enquanto que os teatros naturalista e ilusionista encontram fortes concorrentes no cinema e na televisão, sendo inclusive absorvidos por eles, e especulando-se sobre o teatro do futuro, poder-se-ia pensar numa cena aberta à total liberdade de imaginação, aglutinando a relação palco/platéia. O teatro de amanhã deverá responder às questões essenciais de seu tempo. Bastará a sabedoria acoplada à paixão. Quem sabe, um teatro filosófico que nos sugira formas de viver e pensar com o intuito de compreendermos o mundo, encontrando nosso lugar? A arte do efêmero que, tal qual a vida, nasce, morre e ressurge a cada instante. O ciclo da representação teatral se completa em sua última instância no espectador concreto, sem o qual o ato não acontece; esta é uma característica específica que diferencia este veículo/arte dos demais.

Impasse

O impasse atual do teatro talvez reflita o próprio impasse do homem diante da existência. Pode-se dizer que toda época tem o teatro que merece; portanto, se as dificuldades inspiram uma constante transposição de obstáculos, de forma alguma elas destroem nossa confiança no futuro. Não se pode perder determinadas certezas, a não ser que se perca definitivamente a crença no pensamento e na sociedade. O destino do teatro está ligado ao destino da civilização.

Finalizando, gostaríamos de reiterar que o teatro, assim como o homem, é algo condenado à imperfeição. Giovanni Pico della Mirandola, filósofo italiano morto dem 17 de novembro de 1494, afirmava que precisamente por ser "imperfeito", o ser humano tem uma grande vantagem sobre os anjos, que são "perfeitos": poder se aperfeiçoar sempre, infinitamente...
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Artigo extraído da revista Cadernos de Teatro nº 150/1, edição já esgotada.
















































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