segunda-feira, 18 de maio de 2009

O assassinato do diretor

Jean Vilar

Jean Vilar (1912-1971), juntamente com Jean Louis Barrault, liderou o teatro francês do pós-guerra, e foi designado diretor do Théâtre National Populaire em 1951. Abandonou o cargo em 1963 após estabelecer uma sólida reputação como diretor que respeitava o texto e privilegiava o ator. Atenção estreita aos detalhes e a tentativa de atingir grandes audiências, podem ser consideradas sua marca registrada.

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1. As notas seguintes referem-se apenas a uma técnica particular do teatro, qual seja a de transpor um trabahlho escrito do reino imaginário da leitura para o reino concreto do palco. Procurar qualquer coisa além de "meios de interpretação" nessas deliberadamente críticas linhas será trabalho perdido. Quando tanta teoria, ars poetica e metafísica, é escrita sobre o teatro, talvez seja necessário ouvir um pouco as considerações de um artesão.

2. Nunca se lê uma peça suficientemente. Atores nunca lêem uma peça o suficiente. Eles pensam que entendem uma peça após saberem a trama ou o seu enredo - o que é um erro grave. Arriscando-me um pouco, eu diria que de um modo geral os diretores substimam a inteligência profissional dos atores. Deles são pedidos somente os seus corpos, como se fossem peões animados no tabuleiro de um diretor. A peça é lida uma, duas vezes e depois os atores são lançados no palco. Qual o resultado?
Sujeitos cedo demais às demandas da ação, da atuação física, os atores acabam recorrendo às suas reações convencionais, habituais, e desenvolvem seus personagens arbitrária e convencionalmente, bem antes que sua inteligência profissional e sensibilidade possam captar as intenções do diretor. Daí, as más representações! Mesmo o ator mais sensível se sairá mal, caso tenha que se apressar. Quantos atores, inclusive alguns dos melhores, representaram para nós nos últimos 20 anos com a mesma voz, a mesma postura, os mesmos maneirismos e colorido emocional, por vezes, em papéis diametralmente opostos! Por isso se fazem necessárias tantas leituras de mesa: um terço do total de ensaios. Pelo menos. Texto na mão, bem sentado na cadeira, o corpo em repouso. Assim, a sensibilidade poderá aflorar e captar a nota almejada, o ator entendendo, sentindo o personagem no qual se transformará.

3. Todos os personagens devem ser compostos. Todos os bons atores são necessariamente criadores de tipos. Todos os papéis são produto de uma composição.

4. A criação de um personagem é a obra de criação que aproxima o ator da arte, pois a composição de um papel implica em escolha, observação, pesquisa, inspiração e disciplina.

5. O ator capta o que lhe é caro de dentro e de fora de si. Ao seu redor, porque a natureza oferece aos seus olhos os modelos mais distintos e diversos de observação - eu quase poderia dizer, para sua contemplação. De dentro de si, porque o ator não consegue observar suficientemente a vida palpitante à sua volta, e nem pode expor sua sensibilidade o suficiente para um pleno contato com a realidade.
Em resumo, o ator deve ser capaz de reter em sua memória visual os tipos humanos que chamam a sua atenção, bem como as memórias sensoriais (ou compassivas) provenientes de suas próprias feridas e de seu sofrimento moral. Ele deve aprender a usar essa memória, ou melhor, aprender a cultivá-la.

6. Na marcação, o propósito deve ser o de simplificar e reduzir. Contrariamente às idéias em voga, a questão não deve ser a de explorar o espaço e sim de esquecê-lo ou ignorá-lo. Para um espetáculo reter o máximo de seu poder de sugestão, não é absolutamente necessário que uma dita cena de ação seja totalmente "ocupada" (com acrobacias, murros, brigas e outras atividades "realistas" ou "simbólicas"). Um ou dois gestos, somados ao texto, bastam, desde que sejam "certos".

7. O trabalho de marcação e composição física devem ser levados a cabo por bons atores profissionais em um tempo relativamente curto: digamos, em 15 ensaios para um total de 40.

8. O talento de um ator - ou de um diretor - não está necessariamente apoiado na variedade e na força de seus poderes (que são uma dádiva realmente pouco importante da Providência), mas, acima de tudo, no aprimoramento de seus poderes, no rigor de sua seletividade e no seu voluntário auto-despojamento.

9. O musical: um grande ator, um figurino esplêndido, um cenário impressionante, música transbordante de genialidade, iluminação de cores vivas e fortes.

10. Nenhum ator digno desse nome se impõe ao texto; ele o serve. Humildemente. E que o iluminador, o músico, o cenógrafo e ofigurinista sejam ainda mais humildes.

11. O ator e a composição.
Com o texto cuidadosamente estudado e os personagens "sentidos" em todas as suas ramificações aos longo de umas 15 ou 20 leituras trabalhadas, o diretor começa o suave exercício de marcação, termina-o e se vê repentinamente frente a uma renovada batalha contra esses monstros insidiosos, os personagens. Os atores os conhecem bem, de vez que personagem e ator são duas entidades separadas. Durante um longo tempo o primeiro esquiva-se do segundo com uma infernal facilidade. A pior coisa a se fazer nesse momento é tentar lutar contra o demônio, submetê-lo à sua vontade. Se você quer que ele seja absorvido suavemente por seu corpo e sua alma, esqueça-o. O papel do diretor, como um atento observador dessa busca por osmose, é o de inspirar o ator de confiança, convencê-lo de que ele "encontrou" ou "redescobriu" o seu personagem, no sentido mais expressivo que essa frase possa ter. Não é de modo algum ingênuo afirmar que em dado momento da criação de um personagem, confiança é tudo. É pela não-violência, pela confiança na sua vitória final sobre o monstro escorregadio, que o ator acaba por triunfar.

12. O diretor deve conhecer o trabalho do cenógrafo. Da mesma forma, o cenógrafo/figurinista deveria ser o braço direito do diretor, com plenos poderes no palco: um homem de gosto, devotado ao seu trabalho, culto. Uma profissão difícil.

13. No teatro, às vezes, o hábito faz o monge.

14. O trabalho de direção deve incluir uma análise escrita da peça. O diretor deve fazê-lo, apesar de parecer um trabalho ingrato. A feitura dessa análise compele o diretor a um conhecimento claro e exaustivo da peça.

15. Uma pergunta: pode alguém interpretar algo que não entendeu?

16. Quantos escritores seriam capazes de fazer uma análise precisa de suas próprias peças (ou mesmo do próprio enredo?)

17. Um diretor que não consegue se "desligar" de seu trabalho na fase final dos ensaios é apenas um medíocre artesão, embora possa parecer que é essa a fase onde ele estaria mais envolvido. Se falhar nessa "neutralização", o diretor fica cego - o pior erro possível. Os pobres coitados que incorrem nesse erro se esquecem que o teatro é jogo, e no jogo, a inspiração e a criatividade infantil são bem mais importantes que o suor excessivo e os ataques de raiva. É verdade que esse desligamento é tão difícil de ser conseguido no tempo certo que não é de se surprender que apenas muito poucos diretores consigam-no ou mesmo desejem-no.

18. Uma qualidade tão importante para o ator na boa prática de sua arte é - além do instinto e da sensibilidade - o espírito de finesse (delicadeza, sutileza, sagacidade, elegância). Sem essa qualidade, seu trabalho sempre se apresentará como uma confusa exibição de expressões anárquicas.

19. O ator não é uma máquina. Esse é um truísmo que precisa ser gritado nos ouvidos das pessoas. O ator não é nem um peão, nem um robô. O diretor tem de acreditar desde o início que seus atores possuem o talento necessário.

20. Não há uma técnica de interpretação, e sim, práticas, técnicas (plural). Experiência pessoal - empirismo - é tudo.

21. Para o diretor, cada ator é um caso especial. Daí se segue a necessidade de ele conhecer cada membro do elenco muito bem. Conhecer seu trabalho, é claro, mas mais do que isso, conhecer a pessoa, até o limiar de sua vida íntima, e, talvez até mesmo além daí.

22. No que concerne ao ator, a arte do diretor é a da sugestão. Ele não ipõe, sugere. Acima de tudo ele não pode ser rude, estúpido. A "alma do ator" não é só uma figura retórica: é uma necessidade contínua, mais até que a "alma de um poeta". Não se conquista a alma de uma pessoa brutalizando-a, e a alma de um ator é mais necessária ao seu trabalho que a sua própria sensibilidade.

23. Da simplicidade: três referências.

a) Shakespeare - Hamlet: "Diga sua falas, eu te peço, como eu as pronunciei para vocês, com naturalidade" etc., e o resto dessa passagem famosa.

b) Molière: O improiso de Versailles.

c) Talmá: "Lekain se guardava da fome de aplauso que atormenta a maioria dos atores e os conduz frequentemente ao erro; ele queria agradar somente a discriminados membros da platéia. Ele rejeitava toda a falsidade teatral, visando criar um efeito genuíno, despojado dos "efeitos teatrais". Ele praticava uma economia certa de movimentos e gestos, na crença de que isso constituía a parte essencial de sua arte, na medida em que a multiplicação retira a dignidade do comportamento.

24. Uma produção pode ser reduzida à sua mais simples - e mais difícil - expressão: a ação no palco, ou, mais precisamente, a atuação. Consequentemente, o palco não pode se transformar numa encruzilhada de todas as artes, maiores ou menores (pintura, arquitetura, eletromania, musicomania, mecânica etc.). O cenógrafo deve ocupar o seu lugar, que é o de resolver os problemas de visão e proceder de tal forma que cenário e adereços sirvam estritamente à ação no palco. O uso imoderado de projetores, refletores e da luz como um todo devem ser guardados para o circo ou os Musicais. A música deveria ser utilizada apenas no início, nas transsições, ou então quando o texto explicitamente requisitá-lo, como uma canção, um interlúdio musical etc.
Em resumo, todos os efeitos estranhos às puras e espartanas leis do palco deveriam ser eliminados, o espetáculo reduzido à ação física e moral dos atores.
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Artigo extraído de The Director in a Changind Theater, J.R. Wells, Mayfield Pub. Co, 1976. Tradução de Cristina Krause. Este artigo consta da revista Cadernos de Teatro nº 107/1985, edição já esgotada.

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