Teatro para crianças
Maria Clara Machado
Um espetáculo de teatro bem feito é um estímulo inesgotável para a sensibilidade da criança. A emoção artística leva a criança a um mundo de fantasia e de sonho que corresponde ao que busca sua alma em desenvolvimento. Num espetáculo bem feito há perfeito entendimento entre os anseios, ainda desconhecidos, da criança e a realidade inexplicável do mundo misterioso que a rodeia. O mistério teatral é justamente esta identificação profunda de cores, ritmos, música, movimento e palavra com a alma do espectador.
Poesia
Antonin Artaud diz que teatro é poesia em movimento no espaço. O público espera este momento de poesia. E que público mais capaz, mais pronto a captar esta poesia solta no espaço que a criança? É difícil, nesta década de computadores, provar a importância do espetáculo teatral bem feito na alma da criança. Não há estatística que mostre o maior ou menor grau de sensibilidade captado numa sala de teatro. Mas, para o observador sensível, a transformação que sofre o pequeno público durante um espetáculo é inesquecível. Qual o segredo do encontro entre os autores de livros e peças para crianças e o menino? Quando uma obra escrita por um adulto, para a criança, é boa, em que é que ela toca a criança? Quem julga a obra para a criança? É o adulto?
Símbolos
O teatro dirigido para a criança é um teatro muito especial. Enquanto o público adulto pode "pensar" sobre o que viu, tem a capacidade, ou pelo menos deve ter, de criticar, de selecionar seus sentimentos para julgar o que está vendo, a criança só poderá captar o espírito da obra pelos seus símbolos. Ela adere totalmente ao que vê identificando-se com os personagens, não fazendo, ou não podendo fazer mais a divisão entre o que é ficção e o que é realidade. Enquanto a percepção do adulto é sempre vigiada pela compreensão, a criança é pura afetividade. Ela se engaja na história e passa a viver os personagens como se eles fossem reais. Para o espectador infantil, a inteligência conta muito pouco. O que está solta no espaço, como diria Artaud, é sua sensação, captando cores, sons, movimento, ação.
Magia
A magia teatral pode ser um fator de grande importância na educação emocional da criança. Se ela se identifica com os personagens, ela está também transferindo seus medos, suas ansiedades para estes personagens. Está pois aliviando suas tensões. Os personagens passam então a agir como símbolos. Daí a importância, por exemplo, da adaptação teatral das histórias de fadas para a formação psicológica da criança. Ela vê seus medos interiores exteriorizados e resolvidos através da ficção teatral. Quando ela entra no mundo do faz-de-conta, ela deixa o mundo concreto e hostil, para se transportar a um país longínquo, cheio de cavernas, de castelos, na pele de animais ou de fadas.
Influência
Ultimamente, foi publicado um livro do psicólogo Bruno Bettelheim, "A psicanálise nos contos de fada", onde ele faz, justamente, um estudo profundo da influência benéfica dos contos de fada no desenvolvimento emocional da criança. Este livro muito me ajudou a comprender o porquê dos fascínio que sempre exerceu sobre mim as histórias de fadas. Muita gente pensa, e eu mesmo fiquei muito tempo em dúvida sobre a importância de se transmitir à criança uma visão realista do mundo. O dever, o amor, a pátria, a família, até a luta pela sobrevivência, o combate aos preconceitos etc. Claro que esta realidade pode ser mostrada, mas de uma maneira mágica, transfigurada. A criança não está preparada para a realidade externa, porque ela ainda está mais ligada à sua realidade interna, ao esforço para crescer, vencendo medos e ansiedades. Os obstáculos a vencer ainda não são tão concretos (estes ainda estão nas mãos dos pais), ainda não preocupam a criança a injustiça social ou a bondade universal. Ela está mais perto das verdades essenciais, longe da lógica e da razão - a rejeição, a competição, o medo, a fome de amor.
Alimento
No reino da fantasia, ela vê os dragões serem vencidos, os castelos conquistados, o bem vencendo, o esforço do herói coroado. Tudo isto é o cotidiano da criança transfigurado pelo poder mágico do teatro. Apesar de saber que dragões não existem, e que animais não falam, a fantasia é alimento que marca profundamente o espírito da criança, porque representa símbolos eternos da luta pelo crescimento psicológico do homem. E os símbolos aliviam a criança de seus medos e ansiedades concretas, porque antes de abordar a realidade adulta, ela tem que aprender a controlar seu mundo emocional, para poder então crescer. Mas por que são necessários símbolos, para se chegar à realidade emocional da criança? Por que não abordar diretamente os problemas concretos, o relacionamento pai, filho, irmãos? Porque é mais fácil vencer um dragão de mentira, ser um herói corajoso num palco, ou entrar na pele de um animal do que ser ameaçado a se ver no palco na pele de um menino de verdade. Enfrentar o mundo lógico e materialista dos adultos é muito mais difícil do que envolver-se no mundo da fantasia.
Falsidade
E o que muitas vezes os autores adultos fazem é transformar este mundo difícil num mundo adocicado e falso de muitas histórias infantis, pensando estarem poupando a criança. A violência dos contos de fadas, com seus monstros, não mentem sobre as durezas da vida, apenas são mostrados através de símbolos, que chegam ao espírito da criança envoltos pela magia do faz-de-conta, mas na verdade muito mais perto da realidade mais profunda da criança. Justamente por desconhecer as verdadeiras necessidades da criança, porque a criança não sabe transmitir, à maneira do adulto, suas impressões sobre suas próprias emoções e vivências, é que o adulto comete tantos pequenos crimes contra a infância. Apesar de concordar com as idéias de Bruno Bettelheim sobre o valor dos contos de fadas na educação emocional da criança, penso que tudo que se fala e se analisa sobre a criança não passa de hipóteses, de observações baseadas no comportamento da criança.
Mistério
O encontro do adulto com o menino continua sendo um mistério. O que agrada ao menino nos contos e peças infantis é tão desconhecido como a própria alma do menino. É impossível para qualquer criador explicar sua obra. Em se tratando de obra para criança, então, a tarefa se torna muito mais difícil. Talvez o adulto tenha guardado melhor o seu lado menino e tenha podido, já com odomínio da técnica, passar para outros meninos seu mundo inconsciente, rico de vivência. Jung diz que o momento criador, que mergulha suas raízes na imensidade difusa do inconsciente, permanecerá indubitavelmente para sempre fechado aos assaltos do conhecimento humano. O autor de obras para crianças se pergunta sempre o que escrever para criança, o que é bom para elas. Quais os ingredientes para se fazer uma boa peça infantil?
Inútil
Não adianta diregir um tratado de pedagogia, de psicologia ou mesmo da arte de escrever, que de nada servirá para se escrever bem para a crianças. A arte de escrever para criança, como toda criação verdadeira, continua tão misteriosa como há um século. A criação artística, diz Jung, toma conta do criador como se ele fosse um mero instrumento de alguma coisa que o transcende. O autor pode ser uma pessoa comum como personalidade, ele não tem obrigação de estar à altura de sua obra...Sua biografia pessoal pode ser de um filisteu, de um homem maravilhoso, de um mendigo, de um louco, de um criminoso. Que ele seja interessante ou não é secundário para a essência da poesia. O melhor modo que encontrei para explicar minhas peças foi a maneira usada pelas próprias crianças quando perguntamos a elas porque fizeram um desenho daquele jeito.
- Porque saiu assim.
Problema
Exxiste o problema da qualidade. A obra é boa? Serve para a criança? É realmente uma obra de arte? É tão difícil a resposta quanto é difícil conhecer realmente as necessidades artísticas de uma criança. O crítico de uma obra para criança é um adulto. Quem faz coisas para crianças são os adultos. A frase "a criança gostou" é falsa. Porque ela gosta também dos programas de auditório nas TVs, e muitos adultos acham esses programas medíocres. A verdade é que muito pouca coisa escrita e feita para a criança resiste ao tempo. E nem semque o que resistiu ao tempo é aquilo que os educadores podem chamar de saudável para a criança. Estão aí os irmãos Grimm, Andersen, Perrault e outros, desafiando o tempo...
Nonsense
Lewis Carroll, com sua "Alice no país das maravilhas", Monteiro Lobato e a deliciosa Emília, são personagens onde o nonsense desenfreado faz lembrar aos adultos que é mais saudável não levar a sério demais as coisas tidas como certas e imutáveis. Uma cambalhota, à maneira dos irmãos Marx, está talvez mais perto da verdade das crianças do que uma enxurrada de ensinamentos morais duvidosos...
Buraquinho
Se a criação artística é um imenso mistério que vem das profundezas do inconsciente, a criança é outro mistério maravilhoso. A grande decepção do homem racional deste século é querer saber tudo que se passa no mundo infantil. Escreve livros, inventa teorias, faz congressos, e a criança continua fazendo seu buraquinho na areia para colocar o mar dentro, como na história de Sto. Agostinho. Não tente me desvendar, parece querer dizer a criança. Talvez o segredo daqueles que conseguiram ficar entre as crianças seja o de serem fiéis ao menino que vive dentro deles. De ouvirem a voz de seu próprio inconsciente, e de respeitarem o mistério da infância.
Respeito
Talvez a tão desejada liberdade que se reclama para a educação moderna seja apenas isso: respeitar o mundo misterioso do menino. E ele possui dentro de si mesmo o futuro e cabe ao adulto abrir o caminho apenas, deixando que a vida faça o resto. Quando escrevemos para a criança somos apenas aqueles que estão abrindo o caminho, o caminho que vai do sonho à realidade. Estamos criando, através da arte, e a partir do maravilhoso, a oportunidade do menino sentir que a vida pode ser bonita, feia, misteriosa, clara, escura, feita de sonhos e de realidades.
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Artigo extraído da revista Cadernos de Teatro nº 80/1979, edição já esgotada.
sexta-feira, 8 de maio de 2009
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