segunda-feira, 9 de maio de 2011

Cenas para Estudo


Quando as máguinas param

Plínio Marcos


Nina - Você sempre gostou de criança, Zé. Se for homem, vai ter o nome de seu pai.

Zé - Mané é nome feio.

Nina - Então vai ser Zezinho.

Zé - Zé já tem eu.

Nina - Se for homem, você escolhe o nome. Se for mulher, eu escolho, tá? Se for homem, que nome você vai escolher?

Zé - Nenhum, Nina! Você não percebeu que eu não quero filho?

Nina - Mas eu quero!

Zé - Mas não vai ter!

Nina - Vou ter, custe o que custar!

Zé - Vai tirar!

Nina - Nunca!

Zé - Só que vai!

Nina - Isso estraga a mulher.

Zé - Quando a parteira é boa, não estraga.

Nina - Isso é pecado.

Zé - Pecado uma ova.

Nina - Deus castiga a gente.

Zé - Quero que se dane.

Nina - Mas eu não. É meu filho. Gosto deste e vou ter.

Zé - Vai ter uma pinóia.

Nina - Eu vou ter esse filho, Zé!

Zé - Não vai!

Nina - Se você é um frouxo, que tem medo de enfrentar as coisas, eu não tenho. Vou ter meu filho.

Zé - Mulher minha faz o que eu mando.

Nina - Já disse que vou ter a criança.

Zé - Já disse que não vai e fim.

Nina - Você não manda em mim.

Zé - Na minha mulher, eu mando.

Nina - Não sou mais sua mulher, então. Não sou mulher de um covarde. Isso é crime e é pecado, antes de tudo.

Zé - Se não é minha mulher, fora daqui.

Nina - Vou agora mesmo.

Zé - Pra onde?

Nina - Não é da sua conta!

Zé - Pra onde você vai?

Nina - Pra casa de minha mãe. Lá eu posso ter meu filho!

Zé - Daqui você não sai!

Nina - Você mesmo me mandou embora!

Zé - Deixa de besteira, Nina!

Nina - Você é que está louco!

Zé - Não fale assim comigo! Já estou cansado de te aturar!

Nina - Já vou embora.

Zé - Fica aí!

Nina - Vamos ter o filho, Zé?

Zé - Não! Não vamos ter porra nenhuma!

Nina - Então eu vou embora!

Zé - Por aqui, você não sai! (Zé segura Nina, que força a passagem)

Nina - Me deixa ir, Zé! Me deixa ir! Agora não sou mais tua mulher! (Zé empurra Nina, ela bate na mesa e fica fora de si) Porco! Nojento! Bruto! Covarde! Sai da frente! (Nina vai sair, Zé impede. Nina insiste, Zé dá um soco na barriga de Nina, que se dobra lentamente e vai caindo com espanto e dor na expressão, sempre olhando para Zé)

*     *     *

A serpente

Nelson Rodrigues


Guida - Deixa eu te dizer uma coisa.

Lígia - Quem fala sou eu. Você se lembra do nosso casamento? Na mesma igreja, na mesma hora, no mesmo dia, mesmo padre. Quando te olhei na igreja, senti que a mais feliz eras tu. E senti que amavas mais do que eu, e que eras mais amada do que eu.

Guida - Mas escuta! Escuta!

Lígia - É esta a verdade. Você saiu da igreja com essa felicidade nojenta.

Guida - Você está me odiando?

Lígia - Quantas vezes, você me disse: "Eu sou a mulher mais feliz do mundo". Só você podia ser a mulher mais feliz do mundo. Eu, não.

Guida - Mas eu não tive nenhuma intenção de. Lígia, você me conhece e sabe. Eu só quero te ajudar, Lígia.

Lígia - Você só me daria a vida, a morte, no dia em que eu pedisse para morrer contigo? Ou foi você que pediu para morrer comigo?

Guida - Lígia, deixa eu te dizer uma palavra?

Lígia - Fica com tua felicidade e me deixa morrer.

Guida - Quer me ouvir?

Lígia - Como você é hipócrita!

Guida - Lígia, nunca duas irmãs se amaram tanto. (Lígia corre para a janela) Não, Lígia! Volta!

Lígia - Não dê um passo que eu me atiro. Você está pensando: "Essa fracassada não se mata". Você se julga a mais feliz do mundo e a mim a mais infeliz. Tão infeliz, que tive de me deflorar com um lápis. Quantas vezes, te vi entrando no quarto com teu marido.

Guida - Não precisa contar o que eu faço com o meu marido.

Lígia - Sai do meu quarto, anda! Ou fazes questão de me ver atirando daqui? Queres ver, é isso?

Guida - Lígia, faça o que você quiser, mas escuta um minuto. Você quer ser feliz como eu, quer? Por uma noite? Olhe para mim, Lígia. Quer ser feliz por uma noite?

Lígia - Você não sabe o que diz.

Guida - Te dou uma noite, minha noite. E você nunca mais, nunca mais terá vontade de morrer.

Lígia - É impossível que. Fale claro. O que é que você está querendo dizer?

Guida - É o que você está pensando, sim.

Lígia - Paulo?

Guida - Paulo.

*     *     *

Álbum de Família

Nelson Rodrigues


Glória - Eu nunca disse a ninguém, sempre escondi, mas agora vou dizer: não gosto de mamãe. Não está em mim - ela é má, sinto que ela é capaz de matar uma pessoa. Sempre tive medo de ficar sozinha com ela! Medo que ela me matasse!

Guiherme - Papai é pior!

Glória - Papai, não. Quando eu era menina, não gostava de estudar catecismo...Só comecei a gostar - me lembro perfeitamente -
quando vi, pela primeira vez, um retrato de Nosso Senhor...Aquele que está ali, só que menor - claro! Fiquei tão impressionada com a semelhança!

Guilherme - Onde é que você viu semelhança?

Glória - Colecionava estampas...O dia mais feliz da minha vida foi quando fiz a primeira comunhão - até tirei retrato!

Guilherme - Se a irmã soubesse! Se visse você falando assim...Ia ver que o caso da menina não tinha a menor importância junto desse!

Glória - É uma coisa tão pura, tão bonita, o que eu sinto por papai, que a irmã nunca compreenderia. Nem você, nem mamãe, nem ninguém!

Guilherme - Tem certeza?

Glória - Não, não tenho certeza. Mas pode ser o que for, não faz mal. Não me interessa nem a opinião dos outros, nem a minha própria!

Guilherme - Eu tenho que salvar você - de qualquer maneira!

Glória - E mesmo que tudo seja verdade...Que papai tenha pisado a mulher...Que faça isso ou aquilo com mamãe...Que seja o demônio em pessoa...Mesmo assim, eu gosto dele, adoro!

Guilherme - Só de uma coisa você não sabe!

Glória - Onde está papai?

Guilherme - Você sabe por que eu fui ser padre? Porque resolvi renunciar ao mundo?

Glória - Não interessa!

Guilherme - Por sua causa!

Glória - Mentira!

Guilherme - Por sua causa, sim! Você era garota naquele tempo...Mas eu não podia ver você, só pensava em você...Não agüentava, não podia mais!

Glória - Agora estou vendo por que é que você me mandou entrar ali...por que quis que eu secasse a roupa e desse depois para você espremer...

Guilherme - Não foi por isso - juro!

Glória - Pensa que eu não notei a expressão do seu rosto. Os seus olhos, quando você disse que Nonô andava por aí - despido?

Guilherme - Juro! Você diz isso porque não sabe que eu tive um acidente...voluntário! Já não sou como antes...

Glória - Que ódio, meu Deus!

Guilherme - Não quero que ele te veja! Vem comigo! Eu te levo para um lugar bonito - lindo! Ou, então, se você quiser, nós podemos fazer aquilo que tua amiga queria, a gente se atira entre dois vagões, abraçados!

Glória - Papai não tem nenhum cabelo no peito, nenhum!

Guilherme - Pela última vez - queres vir comigo? Vem, sim, vem!

Glória - Não.

Guilherme - Você não será dele, nunca! (Puxa o revólver e atira duas vezes. Glória cai de joelhos com as duas mãos amparando o ventre)

Glória - Quando eu era menina...pensava que mamãe podia morrer...Ou, então, que papai podia fugir comigo...Que dor aqui!

*     *     *

O Jardim da Cerejeiras

Antron Tchecov


Anya - Estou muito agradecida ao viandante! Ele assustou Varya e assim conseguimos ficar sozinhos!

Trofimov - Varya tem medo de que nós nos apaixonemos e não nos larga, o dia inteiro. Com seu cerebrozinho estreitinho, ela não percebe que nós estamos acima do amor. Eliminar o que é menor, o transitório, que nos impede de sermos livres e felizes - esse é o objetivo e o sentido de nossa vida! Para frente! Caminharemos irresistivelmente para a frente, na direção da brilhante estrela que cintila na distância. Para a frente! Não fiquem atrás, amigos!

Anya - Como você fala bem! Hoje aqui está divino!

Trofimov - É, está um tempo deslumbrante.

Anya - O que é que você me fez, Petya? Por que é que eu não amo mais o cerejal como o amava? Eu o amava tanto! Costumava pensar que não havia lugar no mundo que se comparasse a esse nosso imenso jardim.

Trofimov - A Rússia inteira é o nosso jardim. A terra é grande e bela - e há lugares lindos em toda parte. Pense nisso, Anya: seu avô e seu bisavô, e todos os seus antepassados, eram donos de servos - donos de seres vivos. E de cada cereja, de cada folha, de cada tronco, criaturas humanas estão olhando para você.

Anya - A lua está nascendo.

Voz de Varya - Anya, onde é que você está?

Trofimov - É, a lua está subindo. Eis a felicidade - aí vem ela! Está chegando cada vez mais próximo; já consigo ver seus passos. E se nós nunca chegarmos a vê-la - se jamais chegarmos a conhecê-la - será que importa? Outros a verão depois de nós.

Voz de Varya - Anya, onde é que você está?

Trofimov - Lá está Varya de novo! É revoltante!

Anya - Pois então vamos para o rio. Lá é lindo.

Trofimov - Vamos sim.

Voz de Varya - Anya, Anya!

*     *     *

O Beijo no Asfalto

Nelson Rodrigues


Arandir - Selminha não veio?

Dália - Arandir, olha.

Arandir - Não vem?

Dália - Eu acho que.

Arandir - Minha mulher não vem? Não quer vir? Fala! Olha para mim. Ela não vem? Diz pra mim? Não vem?

Dália - Espera.

Arandir - Dália, eu preciso de minha mulher. Preciso. O jornal me chama de assassino. Assassino, Dália! Você acha que eu sou assassino?

Dália - Arandir, eu só acredito em você.

Arandir - Mas eu preciso de Selminha! Vai, Dália, e diz à Selminha. Pede. Traz Selminha. Não tenho ninguém. Estou só.

Dália - E eu?

Arandir - Ninguém! Olha o que o jornal diz. Está aqui.

Dália - Joga fora esse jornal!

Arandir - Diz lá que eu empurrei o rapaz. Como se eu. Eu não entendo a viúva. Será que esbarrei no rapaz: sem querer, claro. Mas, nem isso. Tenho certeza, Dália. Não toquei no rapaz. Uma senhora vinha em sentido contrário. O rapaz estava em cima do meio-fio. Aqui. Eu me desviei da senhora. Mas não cheguei a tocar no rapaz. Dália, vai chamar Selminha! É minha mulher! Quero Selminha aqui!

Dália - Não vem.

Arandir - Quem?

Dália - Selminha.

Arandir - Não vem.

Dália - Arandir, Selminha mandou dizer. Não vem.

Arandir - Nunca mais?

Dália - Arandir, olha.

Arandir - Responde! Nunca mais?

Dália - Nunca mais.

Arandir - Nunca mais. Quer dizer que. Me chamam de assassino e. Eu sei o que "eles" querem, esses cretinos! Querem que eu duvide de mim mesmo! Querem que duvidem de um beijo que. Eu não dormi, Dália, não dormi. Passei a noite em claro! Vi amanhecer. Só pensando no beijo no asfalto! Perguntei a mim mesmo, a mim, mil vezes: se entrasse aqui, agora, um homem. Um homem. E. Não! Nunca! Eu não beijaria na boca de um homem que. Eu não beijaria um homem que não estivesse morrendo! Morrendo aos meus pés! Beijei porque! Alguém morria! "Eles" não percebem que alguém morria?

Dália - Eu vim para.

Arandir - Mas eu acredito em mim! Por que Selminha não vem?

Dália - Não gosta de você!

Arandir - Gosta! Ama! É um amor de infância! De infância! Eu era menino, menino. E ela garotinha. Já gostava de mim. E eu dela. Dália, você não entende, ninguém entende.Selminha só teve um namorado, que fui eu. Só, Dália. E eu nunca, nunca. Deus me cegue se. Nunca tive outra namorada. Só gostei de Selminha.

Dália - Selminha não quer mais ser tua mulher!

Arandir - Não quer?

Dália - Arandir, escuta. Selminha me disse. Ouve, meu bem.

Arandir - Selminha tem que!

Dália - Selminha disse que você e o rapaz eram amantes. Amantes!

Arandir - Dália, faz o seguinte. Olha o seguinte: diz à Selminha. Diz que, em toda a minha vida, a única coisa que se salva é o beijo no asfalto. Pela primeira vez. Dália, escuta! Pela primeira vez na vida! Por um momento, eu me senti bom! Eu me senti quase, nem sei! Escuta, escuta! Quando eu te vi no banheiro, eu não fui bom, entende? Desejei você. Naquele momento, você devia ser a minha irmã nua. E eu desejei. Saí logo, mas desejei a cunhada. Na Praça da Bandeira, não. Lá, eu fui bom. É lindo! É lindo, eles não entendem. Lindo beijar quem está morrendo! Eu não me arrependo! Eu não me arrependo!

Dália - Selminha te odeia!

Arandir - Odeia. Por isso é que recusou. Recusou o meu beijo. Eu quis beijar e ela negou. Negou a boca. Não quis o meu beijo.

Dália - Eu quero!

Arandir - Você?

Dália - Selminha não te beija, mas eu.

Arandir - Você é uma criança, Dália.

Dália - Te beijei.

Arandir - Menina!

Dália - Agora me beija. Você. Beija.

Arandir - Eu amo Selminha!

Dália - Eu me ofereço e. Selminha não veio e eu vim.

*     *     *

Dois perdidos numa noite suja

Plínio Marcos


Paco - Pra que serve esse revólver, que você tem aí? Usa essa porcaria, ou se mata ou aponta para o focinho de alguém e toma o sapato. Mas eu não quero mais escutar essa choradeira.

Tonho - Você tem razão. Você nunca mais vai escutar eu chorar. Nem você nem ninguém. Pra mim não tem escolha. O que tem que ser é.

Paco - Esse revólver não tem bala.

Tonho - Eu sei. Mas é fácil meter uma bala no tambor.

Paco - Que vai fazer?

Tonho - Estou pensando.

Paco - Você vai me matar? Você vai se matar? Vai acabar com você mesmo.

Tonho - Vou acabar com você, Paco.

Paco - Comigo? Poxa, comigo? Mas eu não te fiz nada!

Tonho - Você disse que eu era bicha.

Paco - Eu estava brincando.

Tonho - Pois é. Mas seu brinquedo me enchia o saco.

Paco - Poxa, se você não gosta, mixa a brincadeira e pronto.

Tonho - Você é muito chato, Paco.

Paco - Eu juro por Deus que corto essa onda. Juro.

Tonho - Também preciso de um par de sapatos. O que eu tenho não serve para mim.

Paco - O meu lhe serve. A gente troca os sapatos.

Tonho - Eu não preciso disso, Paco. Basta eu apontar o berro pra algum cara e ele vira o rabo. É só eu querer.

Paco - Poxa, Tonho, nós sempre fomos parceiros. Você sempre foi um cara legal. Não vai fazer um papelão comigo agora.

Tonho - Paco, você é um monte de merda. Você fede. Você é nojento.

Paco - Você quer me gozar.

Tonho - Vou acabar com a sua raça, desgraçado.

Paco - Mas, poxa...poxa...

Tonho - Vou te apagar, canalha.

Paco - Escuta, Tonho...poxa...Eu...Não te fiz nada.

Tonho - Vai se acabar aqui, Paco.

Paco - Tonho, você não pode me sacanear...Não pode...Mas, poxa, Tonho...Nós sempre fomos amigos...

Tonho - Quem tem amigo é puta de zona.

Paco - Tonho, escuta...

Tonho - Cala a boca. Assim. Agora acabou a tua boca dura. Vamos ver como é que está a sua malandragem. Cadê o dinheiro, a caneta, o isqueiro, o cinto, o anel, o relógio, o broche, a pulseira? Anda, quero tudo. Não escutou? Tira o sapato, vamos.

Paco - Meu...sapato...

Tonho - Passa pra cá. Agora vamos dividir tudo. Meio a meio.

Paco - Claro. Poxa...Assim que tem que ser.

Tonho - Tudo pra mim, brinco pra você. Acabou sua malandragem! Bota essa droga na orelha.

Paco - Poxa, Tonho...Isso é sacanagem.

Tonho - Não conversa e faz o que eu mando. Agora anda pra lá e pra cá. Anda! É surdo, desgraçado? Rebola, rebola, miserável, rebola!

Paco - Escuta, Tonho. Isso não.

Tonho - Rebola. Rebola, filho da puta. Bicha. Bicha sem vergonha. Ri, bicha, ri! Estou gagando de rir de você. Bicha louca.

Paco - Poxa, Tonho, não faz isso comigo. Poxa, Tonho, pelo amor de Deus, não faz isso comigo!

Tonho - Cala a boca, Paco.

Paco - Tonho...Eu...

Tonho - Fecha o bico. Cadê o alicate? Dá o alicate! Vou acabar com você. Mas te dou uma chance. Prefere um tiro nos cornos ou um beliscão? Só que o beliscão vai ser no saco com o aliacate e enquanto eu aperto, você vai ter que tocar gaita. Anda, escolhe logo.

Paco - Pelo amor de Deus, não faz isso comigo. Pelo amor de Deus...juro...juro....eu não te encho mais o saco. Nunca mais...pelo amor de Deus...deixa eu me arrancar. Eu juro...

Tonho - Cala a boca. Você me dá nojo. (Tonho cospe na cara de Paco. Encosta o revórver em Paco e atira) Se acabou, malandro. Se apagou. Foi pras picas. Por que você não ri agora, paspalho? Por que não ri? Eu estou estourando de rir. Até danço de alegria, eu sou mais eu. Sou Tonho maluco, o perigoso, mau pacas.

*     *     *

A lira dos vinte anos

Paulo César Coutinho


Lucas - Diogo, posso te falar uma coisa?

Diogo - Claro, fala!

Lucas - Não, deixa.

Diogo - Ah, fala, eu quero saber. O que é?

Lucas - Você acha que o mar tem a ver com a liberdade?

Diogo - Não era isso que você ia dizer...Você já resolveu o que vai fazer da vida?

Lucas - Sei lá, andar por aí, conhecer gente, fazer a Revolução...

Diogo - Você não tem medo de morrer?

Lucas - Não, tenho medo de não viver!

Diogo - Por que você resolveu estudar História?

Lucas - Pra entender as coisas. Você tembém, não é?

Diogo - É, mas às vezes não sei se é por aí. A História deles é o contrário da vida.

Lucas - Mas pra gente é uma arma. Outro dia perguntaram na prova em que ano caiu o Império Romano do Ocidente. Avaliando que nós, bárbaros, já estamos às portas da universidade, respondi que o Império deve cair agora, em 68.

Diogo - Avaliando que quem corrige as provas é a civilização decadente, você vai é levar pau no vestibular. Cara, você voa durante as aulas, não sei como é que se dá bem. Quando entrei pro curso te achei muito estranho.

Lucas - Eu também te achei diferente, tão sério com 17 anos, meio o menino precoce. Às vezes, o professor estava lá falando e eu ficava te olhando.

Diogo - É, eu notava que você me olhava. Por que, hein?

Lucas - Eu gosto de olhar as pessoas...mas você também me olhava. Por quê?

Diogo - Também gosto de olhar as pessoas...

Lucas - Não era só isso. É que era bonito imaginar Aknaton, Alexandre ou Robespierre com a sua cara.

Diogo - Isso não tem nada a ver.

Lucas - Por quê?

Diogo - Eu preferia não ter a minha cara. Já tive até vontade de me deformar pra ter certeza de que as pessoas me procuravam por mim, não por causa do meu rosto.

Lucas - E você não consegue perceber quando alguém te vê além das aparências, pelo que você é?

Diogo - Em geral é difícil, tenho o pé atrás. Mas às vezes a gente sente. Acho que a beleza é algo que não está só numa pessoa, mas que surge quando ela se encontra com outra. A beleza é tão outra coisa, é o que eu sinto com você e isso me dá medo.

Lucas - Por que medo?

Diogo - Porque é novo, não sei definir, não sei aonde vai me levar e de todo jeito eu quero ir.

Lucas - Eu também tinha medo.

Diogo - Você também?

Lucas - Medo de que você não sentisse assim, não tivesse coragem.

Diogo - Uma vez, quando eu era garoto, meu pai me pegou abraçado com outro menino. Botou ele pra fora de casa e me deu uma surra. Nem sabia porque tinha apanhado, e nós nunca mais falamos nisso. Tive namoradas, e gostava delas, mas nunca deixei de achar que o amor acontece com qualquer pessoa, assim...

Lucas - É, o amor existe assim...

Diogo - Eu agora quero correr todos os riscos por você.

*     *     *

O Despertar da Primavera

Frank Wedekind


Melchior - Quer dizer que você vai visitar os pobres porque te dá prazer?

Wendla - Eu vou porque eles são pobres.

Melchior - Se você não tivesse prazer não iria?

Wendla - Que culpa eu tenho se eu gosto de ir?

Melchior - Quando você morrer vai direto pro céu! Então é verdade...Eu fiquei mais de um mês pensando nisso! E eu? Que culpa eu tenho se em mim não existe o menor prazer em visitar crianças sujas?

Wendla - Se você fosse iria sentir!

Melchior - Wendla: sacrifício não existe, caridade não existe. Eu vejo os pobres e vejo os ricos...E eu também te vejo, dona Wendla Bergmann, balaçançando a cabeça e rindo...Na sua frente eu me sinto um bandido! Wendla?

Wendla - Hem?

Melchior - O que você estava sonhando agora pouco?

Wendla - Ah, nada...Esquece...

Melchior - De olhos abertos?

Wendla - Eu sonhei que era uma menina pobre. Muito pobre! Me acordavam cedo todos os dias para pedir esmolas e era obrigada a ficar o dia inteiro na rua. No sol, na chva...Quando chovia eu voltava para casa molhada e tremendo de frio...Ah, quando eu voltava com pouco dinheiro meu pai me batia...Me batia...

Melchior - Já sei! Você anda lendo histórias de contos de fadas! Ridículas! Wendla, hoje não existe mais gente tão louca assim!

Wendla - Você é que pensa! A Martha apanha todas as noites. Apanha tanto que no dia seguinte seu corpo fica todo marcado! Meu Deus! Como ela sofre! Só de ouvir ela contrar você fica louco de ódio! Eu tenho tanta pena! Muitas vezes eu acordo no meio da noite e começo a pensar nela e choro. Eu queria saber o que fazer para poder ajudar. Sei lá, se eu pudesse ficar no lugar dela uma semana eu ficaria feliz!

Melchior - Deviam é dar queixa do pai! Aí, eles lhe tiravam a filha.

Wendla - Melchior, nunca ninguém me bateu. Nunca, nenhuma vez em toda a minha vida. Eu não sei o que é apanhar, nem imagino. Uma vez, eu mesma me bati para saber o que as pessoas sentem. Deve ser horrível!

Melchior - Não se corrige ninguém assim!

Wendla - Assim como?

Melchior - Apanhando.

Wendla - Olha esta varinha, por exemplo! Olha como ela é dura e fininha!

Melchior - Essa tira sangue!

Wendla - Você teria coragem de me bater com ela?

Melchior - Bater em quem?

Wendla - Em mim.

Melchior - Que é isso, Wendla?!

Wendla - O que é que tem?

Melchior - Não!

Weendla - Se eu deixar?

Melchior - Nunca!

Wendla - E se eu te pedir, Melchior?

Melchior - Está ficando maluca?

Wendla - Nunca me bateram em toda a minha vida!

Melchior - Como é que você me pede uma coisa dessas?

Wendla - Por favor...

Melchior - Wendla!

Melchior - Por favor...por favor...

Melchior - Você vai saber o que é pedir!
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