Abelardo e Berilo
de Bosco Brasil
Personagens:
Coveiro
Super
(Tudo se passa frente ao Túmulo da Santinha, de elegância arquitetônica deslocada, colado ao muro de entrada de um cemitério público. O lugar é pobre e os outros jazigos são humildes e muitos quase não há espaço entre eles. Sobre a lápide está uma porção de placas e outros objetos, buscando uma graça ou ex-votos. O Coveiro trabalha na limpeza doTúmulo da Santinha, cantando diversas vezes o primeiro estribilho de “Vida de bailarina”, de Chocolate e Américo Seixas, sucesso na voz de Ângela Maria em início de carreira)
COVEIRO “Quem descerrar (Respira) ‘ar-ar-ar’ a cortina/ da vida da bailarina (Respira) ‘ar-ar-ar’/ Há de ver (Respira) ‘er-er-er’/ cheio de horrorrrr” (Chega o Superintendente, com uma papelada de baixo do braço. O Coveiro demora ainda um instante até perceber a sua presença) Pois não?
SUPER Diferente esta tumba.
COVEIRO O senhor está falando comigo?
SUPER Diferente das outras, quero dizer.
COVEIRO O senhor acha?
SUPER Acho.
COVEIRO Não conheço o senhor de algum lugar?
SUPER Tenho certeza de que nunca fomos apresentados.
COVEIRO Fragosão!
SUPER Perdão?
COVEIRO O senhor não é o pai do Fragosinha, do lote 3618?
SUPER Quem é esse Fragosinha?
COVEIRO Não? É tão parecido. Quer dizer, pela fotografia da lápide.
SUPER Esse Fragosinha é um defunto?!
COVEIRO Um finado, sim senhor.
SUPER E que intimidades são essas: Fragosinha...
COVEIRO Está lá: saudades eternas de Fragosinha, parará, parará. Sempre quis
conhecer o Fragosão. Como não está no mesmo jazigo...
SUPER Estou vivo, posso dar garantias.
COVEIRO Não é preciso, trato todos do mesmo jeito.
SUPER Mesmo?
COVEIRO À minha maneira.
SUPER E qual é a sua maneira? Especial?
COVEIRO O senhor não veio pagar promessa?
SUPER Promessa? Que promessa?
COVEIRO Como é que eu posso saber? É do senhor a promessa.
SUPER Não fiz promessa alguma.
COVEIRO E como é que espera alcançar a graça?
SUPER Que graça?
COVEIRO O senhor tem razão. Não tem graça nenhuma. (E volta a trabalhar)
Com licença, amanhã é segunda e eu estou atrasado.
SUPER Atrasado com o quê?
COVEIRO No domingo à tarde todo mundo está atrasado com alguma coisa.
SUPER O que acontece de especial por aqui, na segunda?
COVEIRO O senhor não sabe que toda segunda é dia de romaria à Tumba da Santinha Milagrosa?
SUPER Romaria? Mas isto não é um cemitério? (O Coveiro pára repentinamente e olha em volta)
COVEIRO O senhor acha mesmo? (E volta a trabalhar). Por que o senhor não aproveita que está tudo tranqüilo, sem aquela baderna de amanhã, pra fazer sua oração sossegado?
SUPER E para quem eu vou rezar? (Pausa. O Coveiro olha bem para o Supervisor)
COVEIRO Será que quem tem que rezar sou eu?
SUPER Então é aqui a famosa Tumba da Santinha.
COVEIRO Famosa pra quem, dá pra saber?
SUPER O senhor não sabe com quem está falando? (O Coveiro responde sem parar de fazer o que está fazendo)
COVEIRO O senhor não sabe o que é um vício profissional.
SUPER O senhor sabe quem eu sou?
COVEIRO Se a mulher chora muito não deve ser a viúva. Viúvas estão secas.
SUPER O senhor sabe quem eu sou?
COVEIRO Se todos os cravos estão bem apertados, o caixão leva um professor de matemática. São meticulosos in extremis.
SUPER O senhor sabe quem eu sou?
COVEIRO O senhor não sabe o que é vício profissional. Se o senhor pergunta se eu sei
quem é o senhor, o senhor é o superintendente o novo superintendente dos Coveiros.
SUPER Certeza?
COVEIRO Muito justo: certeza.
SUPER Como é? Se o senhor não foi à apresentação do novo superintendente, como é que o senhor sabe se eu sou o novo superintendente? É, é isso que eu quero saber. Como é?
COVEIRO Não é?
SUPER O senhor sabe o rosto do novo superintendente?
COVEIRO Não sabia.
SUPER Como ele anda, como ele fala?
COVEIRO Não sabia...
SUPER Como é?
COVEIRO O senhor não é o novo superintendente?
SUPER Como é que vai saber? O senhor foi o único Coveiro, o único, que não foi à apresentação do novo superintendente.
COVEIRO Vício profissional.
SUPER De novo.
COVEIRO O senhor não acredita. Este é um cemitério pobre. Os restos são pobres. Quem deixa os defuntos sai correndo porque fica um pouco menos pobre. Quando não fica mais pobre que os restos, e precisa ganhar a vida logo. Ninguém dura aqui, nenhum superintendente.
SUPER As coisas vão mudar por aqui.
COVEIRO Do pó ao pó. Tudo é passageiro. Todos os superintendentes são passageiros.
SUPER Acontece, meu senhor, que este novo superintendente quer implantar neste cemitério um novo ambiente de trabalho. Diálogo, dinamismo, salubridade, companheirismo, empenho, diálogo, respeito, decência, eficiência, experiência... diálogo, qualidade total, atitude qualificada, rapidez comprovada...
COVEIRO Diálogo...
SUPER Perfeitamente! O senhor já está pegando o espírito.
COVEIRO Sou craque nisso. Com a minha pá e sete palmos de terra.
SUPER A nova gestão precisa da união de todos.
COVEIRO Todos, quem?
SUPER Coveiros, porteiros, vigias, zeladores... defuntos...
COVEIRO Defuntos?
SUPER Num certo sentido.
COVEIRO Como é que vai ser isso?
SUPER Em clima de troca de idéias e...
COVEIRO ...diálogo.
SUPER Perfeitamente! Quem viver verá.
COVEIRO E quem não estiver vivo?
SUPER Acima de tudo, a nova gestão precisa conhecer detidamente cada Coveiro deste campo santo. Por isso e por...
COVEIRO Abelardo A. Nogueiras.
SUPER Ah...
COVEIRO A.? Antenor.
SUPER Não, não! Eu disse: ah...
COVEIRO Pois então: A., muito justo. Antenor, como meu avô.
SUPER O senhor não entendeu: Ah... Ah... Ah!
COVEIRO O senhor está se sentindo bem?
SUPER Perfeitamente. Estou apenas tentando me explicar.
COVEIRO Ah.
SUPER Isso: o senhor disse!
COVEIR Não senhor, não disse nada.
SUPER Acabei de ouvir.
COVEIRO Eu só soltei um “ah”. O senhor está dizendo que eu disse o que eu não disse que disse.
SUPER Eu não disse nada disso.
COVEIRO Foi o que disse meu finado pai: eu não disse nada disso. Mas o elemento do registro não estava muito bem no dia. Não entendeu bem da primeira vez o que meu pai disse que não disse e escreveu Abelardo que o meu pai queria Antenor. Só que não podia começar outro registro. Acabei ficando com Abelardo e Antenor. Como é o segundo, Antenor virou A. Não é engraçado que as pessoas me conheçam pelo nome errado?
SUPER Muito bem, senhor Nogueira.
COVEIRO Nogueirasss. Eu disse, o elemento do registro não estava muito bem no dia.
No dia que meu pai nasceu, também, quero dizer. Porque esse Nogueiras vem mesmo do
meu pai. Meu avô nem reclamou. O elemento do registro, do registro do meu avô, não
do meu pai, convenceu meu avô a deixar assim. Disse que se não era uma família
muito antiga, os Nogueiras, quer dizer os Nogueirasss, podia ser uma família que
tinha começado com ele. E meu avô ficou muito contente com isso. O senhor está
vendo como é a vida? (O Coveiro estende a mão para o Superintendente)
COVEIRO Abelardo A. Nogueiras.
SUPER Ah...
COVEIRO Como é?
SUPER Nada, nada... (E se apressa em apertar-lhe a mão) O que precisa ficar claro, se é que não ficou ainda... (Interrompe-se. O Coveiro permanece com a mão estendida. Tempo)
COVEIRO Abelardo A. Nogueiras.
SUPER Mmm?
COVEIRO Abelardo A. Nogueiras.
SUPER Já sei!
COVEIRO Muito justo. (O Coveiro continua com a mão estendida. Tempo. Até o Superintendente entender que o Coveiro quer que ele se apresente. Vai soltar um “ah”, mas, ao perceber que a pronta resposta do interlocutor se prepara, desiste, e..).
SUPER Não! Não. Não se preocupe, eu não ia dizer nada. Ao seu perpétuo dispor:
dr. Berilo Conzet (pronuncia-se “conzê”).
COVEIRO Não precisa explicar. Não vou mesmo escrever.
SUPER Escrever? Escrever o quê?
COVEIRO Seu nome: Berilo. Se tem ou não “z”...
SUPER Berilo não leva “z”.
COVEIR O senhor acabou de dizer que tem.
SUPER Eu?
COVEIRO Com todas as letras: doutor Berilo “com ‘z’”.
SUPER Meu sobrenome, está acompanhando? Meu sobrenome: Conzet.
COVEIRO Mmm.
SUPER Minha avó, por lado de pai, era casada em segundas núpcias com um francês.
COVEIRO Sei. Veio de fora.
SUPER Perfeitamente.
COVEIRO Se eles falam enrolado, imagine como escrevem: Berilo com “z”, sem “z”.
SUPER Mas Conzet tem “z”!
COVEIRO Claro que sim! É o que eu estou dizendo desde o começo...
SUPER O senhor não pode entender: vem do francês.
COVEIRO Lingua assombrante. Muito prazer. (E, imediatamente, volta a trabalhar, sem dar pelota para o Superintendente, que fica ali, fumegando. Tempo. Quando o Coveiro percebe que o Berilo continua por ali, pergunta, cândidamente...
COVEIRO O senhor ia dizer mais alguma coisa?
SUPER O senhor está ciente de que a minha paciência já não é tão espaçosa quanto no momento em que começamos o nosso...
COVEIRO ...diálogo?
SUPER Por favor, senhor Nogueira, eu detesto, quando...
COVEIRO Nogueiras.
SUPER Como é? O que é, mmm?!
COVEIRO Nogueiras.
SUPER Nogueiras?
COVEIRO Nogueirasssss.
SUPER Nogueiras, isso, o senhor queira...
COVEIRA Não precisa se desculpar.
SUPER Por favor, senhor Nogueiras, eu detesto...
COVEIRO ... “quando alguém se adianta ao que eu ia dizer”.
SUPER O senhor ia dizer alguma coisa?
COVEIRO Eu, não senhor. O senhor ia.
SUPER Perfeitamente. (Tempo) O que é mesmo que ia dizer?
COVEIRO Que o senhor detesta quando alguém se adianta ao que o senhor ia dizer.
SUPER Como é? Como é, mmm? Como é que o senhor pode dizer que eu ia dizer o que
o senhor disse que eu ia dizer? Como é? Como é, mmm?
COVEIRO Todo superintendente antes do senhor dizia a mesma coisa. (Silêncio)
SUPER Eu sou o novo, novo superintendente. De agora em diante tudo aqui é novo.
Novos tempos, está acompanhando? Nova a superintendência, novas as palavras, novas as
relações. Estou aqui para discutir os problemas do nosso cemitério, as dificuldades que o...
COVEIRO Nenhuma.
SUPER Nenhuma? Nenhuma o quê?
COVEIRO O senhor não ia dizer que veio para discutir as dificuldades que eu tenho no meu trabalho?
SUPER O senhor não pode perder a mania de se adiantar ao que eu vou dizer?!
COVEIRO Desculpe.
SUPER Não por isso.
COVEIRO Pelo que, então?
SUPER Mmm?..
COVEIRO O senhor acabou de me conhecer!
SUPER Seu Abelardo e Antenor, por favor.
COVEIRO O que é que eu já fiz pro senhor?
SUPER Nada! Nada... Nada. Posso continuar?
COVEIRO Pode.
SUPER Obrigado. (Tempo) O que eu estava dizendo antes do senhor se adiantar ao que eu ia dizer?
COVEIRO Que o senhor detesta que alguém se adiante ao que vai dizer.
SUPER Não! Antes disso.
COVEIRO Nenhuma.
SUPER Nenhuma?.. O senhor quer dizer nada.
COVEIRO O senhor não ia dizer nada?!
SUPER Claro que ia.
COVEIRO Até pensei que alguma coisa ia mudar por aqui...
SUPER Uma pessoa não diz que não diz nenhuma, está acompanhando? Uma pessoa não diz nada.
COVEIRO Foi o que eu disse. Nada. Desde o começo. Não tenho nenhuma dificuldade no meu trabalho. Nenhuma.
SUPER Certeza?
COVEIRO Meus colegas reclamaram de alguma coisa?
SUPER Não... Nada.
COVEIRO Pois então. As minhas dificuldades são as mesmas dos meus colegas.
(E volta imediatamente a trabalhar)
SUPER Mas as minhas dificuldades são grandes, senhor Nogueira.
COVEIRO Nogueirasssss.
SUPER E o senhor sabe por quê?
COVEIRO Nem imagino.
SUPER Exatamente por isso. Por que o senhor nem imagina. Não imagina tudo que é preciso fazer para as coisas entrarem nos eixos por aqui. Ou para entrarem nos gaveteiros, para ficarmos em nosso elemento.
COVEIRO Calma. Não se apresse.
SUPER Estive fazendo uma investigação pessoal e sigilosa, está acompanhando? Aqui no nosso cemitério.
COVEIRO O senhor andou vigiando.
SUPER Verificando.
COVEIRO Daí eu conhecia o senhor! Sabe, eu estava ainda em dúvida se eu tinha enterrado o senhor. Nem um, nem outro. Esta aí: o novo supervisor verificando. Isso é novidade...
SUPER Mesmo?
COVEIRO Muito justo: mesmo.
SUPER Inovei de verdade, não foi?
COVEIRO Mas eu ainda acho que conheço o senhor de outro lugar.
SUPER Não param por aí as inovações.
COVEIRO Não?..
SUPER Não.
COVEIRO Pra que mais? Pode estragar a boa impressão do começo.
SUPER Mas é exatamente esse o problema em nosso cemitério: a falta de boa impressão do começo. Ou do fim.
COVEIRO Se o fim é por aqui, a impressão não pode ser boa mesmo.
SUPER O senhor tem razão. Muito lúcido, muito lúcido. Bem que me disseram para conversar com o senhor.
COVEIRO Quem disse?
SUPER Todo mundo.
COVEIRO Os outros Coveiros?
SUPER Também os outros Coveiros.
COVEIRO De fato, o último todo mundo de todos nós.
SUPER O senhor é mesmo como eu esperava.
COVEIRO Mmm. Falaram tudo isso de mim, é?
SUPER Sim, sim, sim... Alguém com os pés, as mãos e as pás no chão. Rigoroso, dedicado, abnegado, pertinente, penitente. Um funcionário que faz de qualquer serviço um serviço... especial...
COVEIRO Eu sabia. Quem foi que contou essa também?
SUPER Todo mundo.
COVEIRO Se eu pego todo mundo...
SUPER Me garantiram: problemas aqui no nosso cemitério? Seu Abelardo dá um jeito.
COVEIRO Todo mundo disse isso tudo para o senhor?
SUPER Hoje de manhã.
COVEIRO Entendi. Durante a sua apresentação como novo supervisor dos Coveiros.
SUPER Superintendente. Perfeitamente. Uma pena que o senhor não pôde comparecer. Todo mundo falou tanta coisa do senhor.
COVEIRO Vou ter mesmo uma conversinha com todo mundo.
SUPER Foi o que me disseram: um líder entre os Coveiros!
COVEIRO Mas foi o senhor quem acabou de cavar as covas de todo mundo...
SUPER Estamos quase chegando onde eu quero chegar.
COVEIRO E aonde o senhor quer chegar?
SUPER Às dificuldades que estamos enfrentando no nosso cemitério.
COVEIRO Dificuldades? O senhor estava quase me deixando assustado. Dificuldades...
(E volta a trabalhar) Nenhuma! Nenhuma...
SUPER Infelizmente...(O Coveiro estaca)
COVEIRO Infelizmente, o quê?
SUPER Como é? Como é, mmm? Como é que eu posso trabalhar nessas condições?
COVEIRO Condições?!
SUPER É o que eu tenho me perguntado.
COVEIRO Quais são as condições, não é? (Mais baixo) Quais são as condições?!
SUPER Poucas.
COVEIRO Quanto?
SUPER Com a dispersão no trabalho entre os Coveiros do nosso cemitério, no nível em que se encontra?
COVEIRO Muito justo.
SUPER Não falo pelo senhor, um líder entre os Coveiros. Exemplo disso é o zelo com
que se dedica a ... É mesmo diferente esta tumba, não é?
COVEIRO Nem percebi.
SUPER Essas plaquinhas todas.
COVEIRO O senhor estava falando das suas dificuldades...
SUPER Nossas.
COVEIRO Muito justo: nossas.
SUPER Nossas dificuldades. Os funcionários com esses jalecos descosturados fazendo as vezes de uniformes.
COVEIRO É. Às vezes.
SUPER Incomodar as famílias enlutadas com essa mania de falar alto.
COVEIRO Verdade.
SUPER E cantar, então?
COVEIRO Tem Coveiro que canta?!
SUPER Acredite se quiser.
COVEIRO Mas canta por quê?
SUPER O senhor já imaginou se o prefeito aparece para fazer uma visita surpresa?
COVEIRO O prefeito não faz nem visita marcada.
SUPER Ele mudou...
COVEIRO Não...
SUPER Estamos esperando uma visita surpresa para qualquer momento. Só não sabemos quando.
COVEIRO Mmm.
SUPER E se ele aparece na segunda?
COVEIRO Melhor. Depois de um domingo, bem descansado, de bom humor.
SUPER Me referia à baderna.
COVEIRO Baderna? Aqui no nosso cemitério?
SUPER O senhor disse para eu aproveitar e rezar hoje sem aquela baderna de segunda, lembra?.
COVEIRO Uma baguncinha, um pouco mais de movimento.
SUPER Os romeiros da Tumba da Santinha Milagrosa.
COVEIRO Uma meia dúzia.
SUPER Meia dúzia?
COVEIRO Uma meia dúzia de meias dúzias.
SUPER Pisam sobre os túmulos, esmagam as hortências da entrada principal.
COVEIRO Essas hortências só atrapalham a passagem das pessoas.
SUPER As hortências estão lá obedecendo determinação do prefeito!
COVEIRO Verdade, são muito obedientes.
SUPER De qualquer maneira, isso vai acabar logo.
COVEIRO Finalmente vão arrancar aquelas hortências enjoadoras dali?
SUPER Não. As hortências ficam.
COVEIRO Ficam? E quem sai?
SUPER Acho que as hortências estão entre as poucas coisas que ficam no mesmo lugar neste cemitério, a partir de hoje. (Silêncio) O senhor não vai dizer nada?
COVEIRO Depende. Eu sou... coisa?
SUPER Claro que não. O senhor é Coveiro. Vamos precisar muito dos Coveiros.
COVEIRO E o que seria do mundo sem os Coveiros, não é?
SUPER Nem posso imaginar.
COVEIRO Pode, sim.
SUPER Às vezes a gente esquece dos Coveiros.
COVEIRO Às vezes sempre.
SUPER Perfeitamente. Ainda mais agora que não se vê muito o trabalho dos Coveiros do nosso cemitério.
COVEIRO Bom... Os jazigos neste cemitério ficam todos em cima da terra. Não tem mesmo muito o que cavar.
SUPER Não deveríamos nem chamá-los de Coveiros, não é verdade?
COVEIRO Eu nunca aceitaria outro designamento.
SUPER Claro... Claro. Mas não era disso que eu estava falando.
COVEIRO Não?
SUPER Com todas as tumbas tomadas? Enterrar o quê? Pior: onde?
COVEIRO Nem reparei. Muito justo.
SUPER Essa é a minha principal dificuldade. Precisamos... abrir espaço. Está me acompanhando?
COVEIRO E...e como é que nós vamos fazer isso?
SUPER O senhor não sabe?
COVEIRO Não.
SUPER Se tivesse comparecido à minha apresentação hoje de manhã...
COVEIRO Muito justo: o senhor está certo. Devo de pedir desculpas.
SUPER Ah!
COVEIRO Abelardo, ao seu dispor.
SUPER Não, não. Eu disse...
COVEIRO Eu estava brincando. Pra quebrar o gelo, soltar a língua, embatucar uma
conversa, levar um lero, nada demais, assunto à toa, vamos dizer, por exemplo, no caso...
como é que a nova superintendência dos Coveiros entende o problema do espaço no...
nosso cemitério?
SUPER Nem se trata de segredo, todo mundo sabe: a nova portaria.
COVEIRO Eu sempre achei que deviam de abrir um novo portão neste cemitério! Assim desafoga os...
SUPER Portaria do prefeito, seu Abeleardo: novas determinações, está acompanhando?
COVEIRO Acho que não...
SUPER O senhor sabe que este é o único cemitério público da cidade? Claro, o número de cemitérios particulares cresceu, mas também não é interessante? o números de pessoas digo, finados que não têm onde ser enterradas. Este é o problema. Onde enterrar estes finados todos? Como é? Como é, mmm? Como é que nós vamos conseguir mais espaço?
COVEIRO E quando as pessoas entram num cemitério pensam como é que vão conseguir mais tempo, vejam só que coisa...
SUPER A portaria é clara.
COVEIRO O prefeito está regulando o tempo, também?
SUPER Claro! Artigo primeiro: acabaram-se o jazigos perpétuos.
COVEIRO Como é que é?!..
SUPER Os jazigos serão emprestados, apenas e tão somente.
COVEIRO E quem devolve?
SUPER Aí entram os senhores Coveiros.
COVEIRO Entram bem, não é?
SUPER O restos restam apenas três anos. Depois vão para o ossário. Se não forem reclamados.
COVEIRO Isso vale a partir de quando?
SUPER De sempre. A portaria é retroativa.
COVEIRO Retroativa?! Minha Santinha da Tumba!
SUPER Já imaginava que o senhor tivesse essa reação.
COVEIRO Vocês querem acabar com este cemitério?
SUPER Pelo contrário.
COVEIRO Pelo contrário, sim senhor: vão botar as coisas do avesso por aqui. Uma portaria retroativa! O senhor imagina o que vai fazer pra saúde das pessoas essa portaria retroativa?
SUPER Pra saúde?!..
COVEIRO O cabelo cai, o elemento vai morrendo aos poucos, é uma maldade.
SUPER Nunca ouvi falar que uma portaria retroativa fizesse cair o cabelo...
COVEIRO O senhor está fora do mundo?! Nunca ouviu falar de bomba atômica.
SUPER Ah! Não, não...Eu disse retroativa, não radiativa.
COVEIRO Coisas esquisitas acontecem por causa da retroatividade. Chove de baixo pra cima, peixe sobe em árvore.
SUPER Nada disso, o prefeito só quer que os defuntos antigos cedam lugar aos novos.
COVEIRO Não disse? Coisas esquisitas vão acontecer.
SUPER Tudo muito normal. Os jazigos que já estavam ocupados antes da portaria
ou seja, todos também serão atingidos pela portaria do prefeito. Perfeitamente. Vamos
começar desalojando os restos, dos mais antigos para os mais recentes.
COVEIRO Por quê?
SUPER Vamos começar tudo de novo, seu Abelardo!
COVEIRO Eu explico. O que é isso de baixo do braço do senhor? A planta do cemitério?
SUPER Do nosso cemitério, sim senhor.
COVEIRO Vamos dar uma olhada. (O Coveiro puxa a planta antes que o Superintendente possa reagir, e a abre sobre aTumba da Santinha) Vamos ver, vamos ver...
SUPER Seu Abelardo e Antenor! Não tenho tempo para...
COVEIRO O senhor me empresta um minuto, e eu vou lhe devolver em dias. Veja bem, que história é essa de “mais antigo para o mais recente”? Com os mais recentes não se pode mesmo fazer nada. Quanto aos mais antigos... bem, ninguém fica mais antigo. Só estou falando porque o senhor disse que os tempos são novos, são tempos de diálogo. Estou errado?
SUPER Pode seguir, pode seguir...
COVEIRO Muito justo. O senhor entende, os restos, os restos estão espalhados por aí. Os mais antigos, os menos antigos. Misturados. Misturados, o senhor entende?
SUPER Concluíndo, seu Abelardo...
COVEIRO Só estou querendo poupar tempo. Só estou querendo poupar tempo...(Estende a mão) Uma caneta. (Um pouco contrariado, o Superintendente passa sua caneta para o Coveiro, que aponta para a planta sobre a tumba) Acompanhe a ciência das coisas. O senhor divide o... nosso cemitério em, vamos dizer, duas partes: pra lá, e pra cá, o senhor entende? (O Coveiro traça um traço no meio da planta do Superintendente)
SUPER O conceito está claro.
COVEIRO Vamos ganhar espaço, mas vamos por partes. Fica mais rápido. O senhor pode também dividir o nosso cemitério em quatro partes. (E traça mais um traço)
Ou oito partes. (E traça mais dois traços) Assim... Ou...
SUPER Está bem! Já entendi. (Olhando para o mapa) Parece uma pizza!
COVEIRO Metade de uma pizza, vai... (Sem perder tempo, volta-se para o cemitério e, sempre de costas para a Tumba da Santinha, começa a apontar à sua frente, em diversas direções) E o senhor pode começar por esta fatia, ou por esta, ou por esta, ou por esta... e passar para aquela, ou para aquela, ou para aquela...
SUPER É. Mas acho que vou começar pela azeitona.
COVEIRO Azeitona? Azeitona?!
SUPER O jazigo mais antigo do cemitério. (O Coveiro começa a procurar na planta sobre a tumba da Santinha)
COVEIRO Qual? Qual?!
SUPER Com licença. (O Superintendente afasta o Coveiro e levanta a planta, apontando a tumba que estava “por baixo”)
SUPER A azeitona aqui.
COVEIRO Mmm. Muito justo.
SUPER Foi boa a tentativa, seu Abelardo e Antenor. Agora vamos falar de trabalho.
COVEIRO O senhor quer mesmo desalojar a Santinha daqui?
SUPER Perfeitamente.
COVEIRO Mas...por que começar com ela?
SUPER Por que não?
COVEIRO É um paraplégio fazer isso!
SUPER Que é isso: paraplégio?..
COVEIRO O senhor não sabe?
SUPER Nunca ouvi falar disso.
COVEIRO É o que o senhor vai fazer, um paraplégio, tirar a Santinha Milagrosa do lugar!
SUPER O senhor está inventando, não existe paraplégio.
COVEIRO Existe.
SUPER Não existe.
COVEIRO Existe.
SUPER Não existe.
COVEIRO Existe, sim senhor. Os tempos mudaram: bomba atômica, retroatividade, mas essas coisas continuam as mesmas. Já vi muita gente ficar paraplégia, depois de cometer um paraplégio.
SUPER Ah...sacrilégio! É um sacrilégio desenterrar os restos da Santinha Milagrosa!
COVEIRO Então o senhor também acha a mesma coisa?!
SUPER Não acho nada.
COVEIRO O senhor disse que achava.
SUPER Não disse.
COVEIRO Disse...
SUPER É. Está bem. Disse, mas não disse... Disse o que o senhor disse, mas não disse, porque disse de outro jeito que (interompe-se, irritado)... Isso não tem importância alguma: paraplégio, sacrilégio, sortilégio, estratégio, a ordem é exumar os restos da Santinha e levar para o ossário municipal. Tal e qual.
COVEIRO Mas...
SUPER Não tem mais discussão, está acompanhando? Não tem mais discussão.
COVEIRO Está bem. Está bem... O senhor é quem manda: o senhor quer diálogo, e eu
faço diálogo, o senhor quer espaço, e eu faço espaço. Estou aqui para fazer o que o senhor
manda. Só não entendo por que não começa com o...doutor Rosálio, por exemplo, do lote
1622. Eu sempre quis saber porque o “doutor” na frente. Quem sabe, abrindo o caixão...
Nascido em doze do dois de 19, falecido em...
SUPER Não, não...
COVEIRO E Râmada de Oliveira Neves, do 2843. O senhor já ouviu falar de alguém
chamado Râmada?
SUPER Não adianta, seu Abelardo.
COVEIRO Tem o indigente do 2345. Com um número desses, devia ser um elemento de
sorte. Pra depois da morte, quero dizer.
SUPER O senhor não pode entender?
COVEIRO Francelino Espírito Santo, “saudade de noras, filhos e netos”! Foi enterrado
em 1936!
SUPER Tem de ser a Santinha. (Silêncio. O Coveiro olha para o Superintendente de modo estranho por um tempo)
COVEIRO Não conheço o senhor de algum lugar?
SUPER A Santinha está enterrada aqui desde 1927...
COVEIRO ...foi uma desbravadora.
SUPER ...não tem parentes que reclamem seus restos.
COVEIRO Muito justo.
SUPER Além disso, essa baderna de toda segunda, essa estória de milagres...
COVEIRO Estória, não senhor. É tudo verdade. O senhor não acredita nos poderes da
Santinha?
SUPER Claro que não! Eu sou um homem religioso. O senhor não é?!
COVEIRO Não. Por isso mesmo eu acredito.
SUPER Como é? Como isso é possível?
COVEIRO Eu vi.
SUPER Viu?!
COVEIRO Bom... Eu estou vendo.
SUPER Vendo? Vendo o quê?..
COVEIRO Na sua frente. As placas de ex-votos. São as graças atingidas: “grata à
Santinha da Tumba por graça recebida marido que toda a vida sonhei por isso...”
SUPER Conseguir um marido nem sempre é uma graça.
COVEIRO E este aqui? “Graças pelo emprego conseguido...”
SUPER Conseguir um emprego não é um milagre!
COVEIRO Não?!
SUPER É isto que as pessoas vem pedir aqui?
COVEIRO Este é um cemitério público, da massa; reparou no pessoal que anda por aqui? Dona Romana! Olhe só, dona Romana; muito justo. Tem 62 anos. Vem toda segunda-feira pedir para sua mãe voltar a falar com ela. As duas brigaram há 22 anos e...
SUPER Que santa milagreira é esta que atende este tipo de pedido, casamentos, trabalho, mãe que não fala com filha?
COVEIRO O senhor esperava o quê? Gente voando, aparecendo e sumindo, cego
voltando a ver, lágrimas de sangue? Isso qualquer mágico de cartola faz. Mas essas
coisinhas, essas encrenquinhas de meio-dia à meia-noite, de meia-noite ao meio-dia...
SUPER Eu queria que ela fizesse coisas... impossíveis.
COVEIRO Muito justo: o que ela faz é impossível.
SUPER Não interessa. Vamos tirar a Santinha daí. Não estou aqui para discutir minhas ordens.
COVEIRO Pensei que o senhor queria diálogo com os funcionários.
SUPER E quero! Primeiro abrimos o diálogo, depois os senhores acatam o que eu decidi.
COVEIRO Mmm.
SUPER O que nós estamos fazendo aqui, afinal, trocando idéias?..
COVEIRO Não sei.
SUPER Pode começar, pode botar abaixo a lápide da (Interrompendo-se)... Santinha... (Agitado) Santinha, santinha! (Inesperadamente o Superintendenete começa, mal escondendo a irritação, a procurar pela lápide do Túmulo da Santinha alguma inscrição.
Será possível que esses restos não tem nome?! Estou cansado de chamar essa defunta de santinha. Onde é que está o nome dela?
COVEIRO Não tem.
SUPER Como não tem?
COVEIRO Não tem, estou dizendo.
SUPER E que nome vai no ossário?
COVEIRO Santinha?
SUPER Isso é que não! Nem que...Achei! (O Superintendente afasta algumas plaquinhas, ansioso) Aqui... Aqui... Essas plaquinhas, por isso eu não achei daquela vez...
COVEIRO O senhor já tinha procurado o nome da plaquinha antes?..
SUPER (Desconversando, lê) “Dolorosa lembrança...”
COVEIRO Eu não conheço mesmo o senhor de outro lugar?
SUPER “...de uma alma pura que se foi... etecétera, etecétera...” (Tempo) O que é isso?
O que foi que fizeram aqui?
COVEIRO Raparam o nome.
SUPER Isso eu estou vendo! Como é que fazem uma coisa dessas?
COVEIRO Com uma palha de aço, uma...
SUPER Seu Abelardo e Antenor. Eu quero é saber por quê!
COVEIRO Por quê?! Ah, por quê... O senhor quer saber por quê...
SUPER Quero, sim senhor.
COVEIRO Por quê, é o que o senhor quer saber.
SUPER É. Por quê!
COVEIRO Por quê?..
SUPER O senhor vai responder ou não?!
COVEIRO Não sei.
SUPER Como não sabe?
COVEIRO Vou contar o que me contaram. E quem sabe isso seja uma resposta. Quem
sabe não. Quem sabe.
SUPER Pode deixar que eu vou saber.
COVEIRO Bom... Só sei que sei demais. E não sei o que preciso saber.
SUPER Desembucha.
COVEIRO O senhor já parou pra pensar porque a Santinha veio parar neste cemitério?
SUPER Perfeitamente. Por que estava morta.
COVEIRO Muito justo. Mas a com todo o respeito defunta veio para cá em 1927.
Não tinha ninguém por aqui, tinha? Morto, quer dizer.
SUPER O cemitério foi inaugurado em 1923, pelo que me consta.
COVEIRO A cidade era bem menor naquela época. Isto aqui fica muito longe do centro.
SUPER Perfeitamente. Um lugar ermo. Naqueles tempos ninguém queria um campo
Santo por perto.
COVEIRO Mesmo assim. Tem cemitério mais pro lado do centro. Este fica longe
demais.
SUPER Para servir as pessoas mais humildes, que não podiam ser enterradas nas
catacumbas das igrejas, nos cemitérios das irmandades...
COVEIRO Muito justo: quem não tinha onde cair morto. E ficar. Filho de ex-escravo,
mendigo, trabalhador braçal e pernal. Eu conheço a História dos cemitérios da cidade.
Acho que até uns Coveiros vinham parar aqui...
SUPER Concluindo, seu Abelardo e Antenor.
COVEIRO É só olhar a Tumba da Santinha.
SUPER O que tem?
COVEIRO Tem gente-bem, e viva, que ia agradecer morar aí. Bronze, mármore
escarrara..
SUPER Como é?!
COVEIRO Termos técnicos. O senhor não pode entender. Quer que eu explique?
SUPER Não! Melhor não. Pode ir em frente.
COVEIRO Está vendo só esse acabamento? Sou um profissional, sei do que estou
falando.
SUPER Tenho certeza. E daí?
COVEIRO A família que construiu este jazigo tinha dinheiro. Muito dinheiro.
SUPER É... É. Tem razão.
COVEIRO Ia enterrar a mocinha neste fim de mundo? Por que era uma mocinha, olha
só a lápide, de baixo do nome apagado: “30/10/1910 - 12/06/1927”. Eu fiz as contas; idade
é comigo. Vício profissional.
SUPER Aonde o senhor quer chegar com essa digreção?
COVEIRO Que digreção? O senhor não está sendo justo, estou tratando o senhor com o
maior respeito.
SUPER Perfeitamente.
COVEIRO Então. No que foi que eu digredi o senhor, posso saber?
SUPER Lá vamos nós, outra vez.
COVEIRO Eu não digrido as pessoas por aí, não senhor. Eu sou de paz, eu nunca digredi
ninguém na minha vida.
SUPER E a Santinha, seu Abelardo? E a Santinha?!
COVEIRO Principalmente ela. Eu tenho o maior respeito por ela! O senhor acha que eu
ia digredir a pobrezinha? Estava só dizendo que alguma coisa aconteceu para ela vir parar
aqui. Neste fim de mundo. O senhor não pode imaginar: só ela aqui, sozinha, abandonada...
SUPER Eu posso, sim...
COVEIRO ...sem viva ou morta alma por perto.
SUPER E aqui venta muito...
COVEIRO Sabe o que dizem?
SUPER O quê?..
COVEIRO Que ela se matou.
SUPER A Santinha?
COVEIRO Em carne e osso, quando ela ainda tinha.
SUPER Por quê?
COVEIRO Por quê? É o que eu digo: por quê... Ah, por quê...(Silêncio)
SUPER Então?!
COVEIRO Ninguém sabe. (Após um breve e misterioso silêncio, o Superintendente vai dizer alguma coisa, faz menção, mas antes que abra a boca é interrompido pelo Coveiro que se adianta...) Não senhor, ninguém. (O Superintendente se enfeza, vai dizer alguma coisa, faz novamente menção, mas novamente é interrompido pelo Coveiro que se adianta...) Sim, senhor; eu sei que o senhor não gosta que ninguém se adiante ao senhor, mas pense bem: é claro que a família fez de tudo pra esconder o fato; enterrou a mocinha aqui neste lugar tão longe do povo falador e curioso não é engraçado que vem tanta gente visitar a Santinha hoje em dia? (Silêncio. O Superintendente ainda uma vez vai dizer alguma coisa, ainda uma vez faz menção, mas ainda uma vez é interrompido pelo Coveiro que se adianta...) Aqui é um campo santo sim senhor, e, como o próprio nome diz, é
santo. Eu sei que não é lugar pra quem tira a própria vida; um enterro cristão para quem atenta contra a própria salvação? Quer dizer, isso vale pra um elemento religioso como o senhor. Eu não me importo. (E o Coveiro se adianta de novo ao que vai dizer o Superintendente) É verdade. Naquele tempo todo mundo se importava. Disseram que foi acidente, está na cara. (O Coveiro faz um sinal pra que o Superintendente nem faça menção de dizer o que ia dizer. Logo em seguida sinaliza para que ele aproxime o ouvido. O Superintendente hesita, mas obedece) Era família de posses. (Alto, estourando os tímpanos do Superintendente) Família de posses pode tudo. É. Disseram que foi acidente. E acidente ficou. Muito justo. (Breve silêncio. O Coveiro faz um sinal para o Superintendente perguntar aquilo que está louco para perguntar...) Pode fazer...
SUPER Fazer o quê?
COVEIRO A pergunta.
SUPER Como é que foi o acidente?..
COVEIRO Ninguém tem a certeza. A certeza. Diz que a Santinha se atirou do alto de
uma torre de igreja.
SUPER E morreu.
COVEIRO Tomara que sim porque é ela que está enterrada aqui.
SUPER Sei disso. Então pode ser acidente mesmo.
COVEIRO O senhor tem a certeza? A certeza?
SUPER Se desequilibrou, o lugar devia ser alto.
COVEIRO Ou se atirou em defesa própria.
SUPER Mmm. A Santinha se atacou com uma vertigem de altura. (O Coveiro faz outra vez o sinal característico para que o Superintendente aproxime seu ouvido) Pode falar daí mesmo.
COVEIRO O padre. O padre cercava a mocinha.
SUPER O padre matou a Santinha?!..
COVEIRO Não! O chão.
SUPER Chão? Que chão?
COVEIRO Este aqui. Que fica de baixo do cemitério, da rua, das casa da rua, da cidade
toda; da igreja de onde se jogou, de baixo de todo mundo. O senhor precisa aprender a
pensar.
SUPER E o senhor vai me ensinar?
COVEIRO Por que não? Eu aprendi.
SUPER Mesmo? Isso eu quero saber: com quem?
COVEIRO O senhor já ouviu fala de Shylock Holmes?
SUPER Sherlock...
COVEIRO O que foi que eu disse?
SUPER Ele ensinou o senhor a pensar?
COVEIRO Não em carne e osso.
SUPER Tinha coisa mais importante pra fazer?
COVEIRO Ele já morreu. O senhor anda mal informado, hein?..
SUPER E o que foi que o senhor aprendeu com ele?
COVEIRO Shylock Holmes era craque na abdução.
SUPER O que é isso?
COVEIRO É o que eu digo: não sei pra que esse pessoal vai pra escola. Por exemplo: o
senhor chegou aqui; eu não sabia quem era o senhor; mas, pelas coisas que o senhor falou –
e pelas que não falou eu abduzi que o senhor era o novo superintendente dos Coveiros.
SUPER Abduziu certo.
COVEIRO O Shylock usava muitos truques como esse. Às vezes pensava às avessas para
desembaraçar as confusões onde ele se metia. Quer ver? No caso da Santinha, vamos dizer,
só como exemplo, no caso, o que temos de imaginar não é a moça indo na direção do
chão...
SUPER ...mas o chão indo na direção da moça?..
COVEIRO Muito justo.
SUPER Logo, o chão matou a moça.
COVEIRO Elemental.
SUPER Seu Abelardo e Antenor: estou sentindo que a sua cara vai se jogar direto na
minha mão, já já, está acompanhando?
COVEIRO Sem digressões, por favor.
SUPER O senhor está me enrolando desde que eu cheguei.
COVEIRO Sim, senhor.
SUPER Acabou.
COVEIRO Muito justo.
SUPER O senhor vai exumar a Santinha e é agora mesmo.
COVEIRO Não. Eu não vou.
SUPER Como assim, não vai?!
COVEIRO Não vou fazer o que senhor manda.
SUPER E posso saber por quê?
COVEIRO Nós estamos em greve.
SUPER Nós, quem?
COVEIRO O Sincova.
SUPER O que é isso?!
COVEIRO O Sindicato dos Coveiros.
SUPER Não sabia que havia um sindicato só dos Coveiros.
COVEIRO Não tinha.
SUPER E foi criado quando?
COVEIRO Faz pouco tempo.
SUPER Quanto pouco tempo?
COVEIRO Muito pouco tempo. Foi uma vitória nossa.
SUPER Seus vagabundos, vocês querem é...
COVEIRO Nós estamos pensando em levar nossas reivindicações ao prefeito.
SUPER Estou disposto a negociar. O senhor sabe que a minha gestão sempre tem se
pautado pelo diálogo. Sempre!
COVEIRO É verdade; sempre, desde hoje de manhã.
SUPER Quem é o presidente do Sincova?
COVEIRO Eu.
SUPER Tem quantos filiados o Sincova?
COVEIRO Eu.
SUPER Mmm.
COVEIRO Assim a mobilização é mais rápida.
SUPER Quando é que essa greve foi votada?
COVEIRO Faz pouco tempo.
SUPER Muito pouco tempo?
COVEIRO Muito mesmo. Mas a paralizia tem tempo indetermindao para terminar.
SUPER E qual é o motivo da greve, posso saber?
COVEIRO A lista para a negociação é bem grande.
SUPER Me adiante um dos pontos, apenas.
COVEIRO O uniforme.
SUPER Mas eu já disse que quero mudar os uniformes!
COVEIRO Mas nós não.
SUPER Não?
COVEIRO De jeito nenhum.
SUPER E isso é motivo para entrar em greve?
COVEIRO Nós estamos muito bem com os nossos jalecos. Nós sabemos o que o senhor
pretende fazer. Vai ser como foi com os carteiros: roupinhas claras e alegres, como se eles
só viessem com notícias boas. Má notícia faz parte da vida! Não, senhor. Nós temos
orgulho do que somos: somos o fim... da viagem, o fim da picada do pó ao pó.
SUPER Seu Abelardo e Antenor...
COVEIRO Meu pai era Coveiro. E o pai do meu pai (interrompe-se)... Bom, o pai do
meu pai não era, mas cavou muito poço artesiano na vida.
SUPER Quais são suas outras reinvidicações?..
COVEIRO Isso é tradição! Minha profissão vem desde Cain!
SUPER Cain?!
COVEIRO Quem o senhor acha que enterrou Abel?
SUPER Adão?..
COVEIRO Adão perdia o tempo fazendo jardinagem. Coveiro é trabalho de homem!
SUPER Está bem, não precisa se exaltar. Só quero saber quais são as outras
reinvidicações da categoria.
COVEIRO Muitas.
SUPER Quais?
COVEIRO Preciso consultar a categoria.
SUPER Ótimo. Por que o senhor não faz isso?
COVEIRO Nós vamos marcar uma assembléia e...
SUPER Agora.
COVEIRO Agora?
SUPER Agora. Enquanto a superintendência decide se aceita as denúncias a respeito de
um dos seus filiados.
COVEIRO Quem?
SUPER Vão deliberando, vão deliberando...(O Superintendente vasculha suas anotações)
COVEIRO Se um de nós está em perigo, todos nós estamos. Nós vamos suspender a
assembléia até informações mais esclarecentes.
SUPER Não se preocupe, eu forneço já: o senhor Abelardo e Antenor Nogueira.
COVEIRO Nogueirasss.
SUPER Conhece?
COVEIRO Um dos nossos.
SUEPER Esse... elemento... ao que parece, não contente com a tradicional função de
Coveiro, tem oferecido um dito “serviço opcional” às famílias enlutadas...
COVEIRO A saber..?
SUPER (Conferindo sua anotações) Fotos dos defuntos com anjinhos... Eu vi o telão. É
bem feito. Estou com uma foto aqui, também: a última foto entre os familiares não deixa
de ser emocionante. Como é que o senhor faz para deixar o defunto em pé?
COVEIRO Não é difícil. O rigor mortis.
SUPER Mmm?
COVEIRO É latim. Significa que a gente fica duro feito um pau, depois de um tempo morto. Como num casamento, quando o elemento tem de botar terno e gravata; daí rigor mortis. Elemental. Conheço minha profissão.
SUPER (Apontando para a foto) Estava meio passado, hein?
COVEIRO (Confere) O finado é o outro.
SUPER Mesmo?
COVEIRO Nos meus anos de profissão já vi piores. Estou falando dos familiares.
(O Superintendente guarda a fotografia antes que o Coveiro lance mão)
SUPER (De volta a suas anotações) Outro dos serviços opicionais... está
me acompanhando?... Não sei se entendi bem, um alarme, um detector de enterrados-vivos... Como é isso?!
COVEIRO Tecnologia avançada. Hoje em dia, isso é oferecido nos melhores cemitérios.
SUPER E como é nos piores?
COVEIRO Um arame e um sininho. Se estiver vivo puxa.
SUPER Mmm. E quem estaria por perto para ouvir?..
COVEIRO O preço cobria a taxa para a vigilância dos quinze dias de... estada do finado.
SUPER E depois?
COVEIRO Depois de quinze dias?! Depois de quinze dias debaixo da terra?!?! Como o
senhor é ingênio... Depois de quinze dias... (Rapidinho) Uma pequena taxa semestral de
manutenção.
SUPER Esse seu companheiro de sindicato me parece bem encrencado.
COVEIRO Parece.
SUPER O Sincova está ciente disso?
COVEIRO Muito justo: ciente demais.
SUPER Não, não. Nunca é demais. Essas acusações todas já seriam o suficiente para
mandar qualquer Coveiro para a própria cova. Mas parece que o Coveiro em questão
também tem recebido, por motivos os mais variados, de zeladoria a fornecimento de
informações turísticas, gordas gorjetas que, aliás, não divide com ninguém, segundo me
reclamaram justamente dos romeiros que visitam a tal Tumba da Santinha Milagrosa. O
que, o senhor bem sabe, é completamente contra o regulamento. É claro que podemos
negociar. Ninguém quer um desses eternos inquéritos administrativos aqui.
COVEIRO Ninguém. O Sincova está pronto pra negociar. Qualquer coisa.
SUPER A superintendência só negocia depois da volta ao trabalho. (Silêncio) O senhor não vai dizer nada? (Silêncio. O Coveiro permanece imóvel e impassível) Aconteceu alguma coisa?
COVEIRO Um minuto. A assembléia terminou. Nós voltamos ao trabalho.
SUPER Fico satisfeito.
COVEIRO Eu também. Nada como uma boa paralizia. Me sinto novo, pronto para o
trabalho. Por onde nós começamos?
SUPER Eu não vou gastar mais nenhuma palavra, está acompanhando? Ou o senhor tira
essa tal santinha desse jazigo ou vai pra rua. Junto com a ossada da moça.
COVEIRO O Sincova não admite...
SUPER ... e é pra já!
COVEIRO Está bem... Está bem. (O Coveiro vai até sua maleta de ferramentas e apanha uma marreta) Não estou acostumado a ser digredido assim. Conheço meus direitos e deveres. E é meu dever lembrar que o senhor vai destruir uma obra de arte: o Túmulo da Santinha. Por que o senhor sabe que eu vou ter de acabar com esta lápide milenar...
SUPER Não tem nem cem anos.
COVEIRO Um patrimônio desta cidade. Veio até professor da Universidade para...
SUPER Vai demorar muito com isso?
COVEIRO Não senhor. Conheço meu trabalho. (O Coveiro se apronta para golpear a lápide. Faz suspense. O Superintendente disfarça uma certa tensão. E, de repente...) O senhor tem certeza?
SUPER Seu Abelardo e Antenor!
COVEIRO Olhe só esse mármore escarrara...
SUPER Enfie logo a marreta.
COVEIRO É pra já... É pra já. (Novamente, o Coveiro se apronta para golpear a lápide. Faz suspense. Novamente, o Superintendente disfarça uma certa tensão. E, novamente...)
Olhe lá que o senhor não sabe o que pode encontrar aí dentro.
SUPER Eu adoraria se encontrasse o senhor!
COVEIRO O senhor não está entendendo. A Santinha se matou. O antigos enfiavam uma
estaca no coração de quem fazia isso, sabia? Pode ser uma visão muito forte para o senhor.
SUPER Depois de gastar uma tarde com o senhor eu posso agüentar qualquer coisa. Em
frente!
COVEIRO O senhor arca com as consequências.
SUPER Vai, vai... (Pela terceira vez, o Coveiro se apronta para golpear a lápide. Faz suspense. Pela terceira vez, o Superintendente disfarça uma certa tensão. E, pela terceira vez...) Por que será eles faziam isso?
SUPER Eles quem, seu Abelardo e Antenor...
COVEIRO Os antigos. Enfiar uma estaca no peito de mocinha feito a Santinha.
SUPER Se fosse o senhor eu poderia entender fácil, fácil.
COVEIRO É de atravessar o coração. (Desta vez parece a definitiva: o Coveiro levanta a marreta e... soa a sirene. O cemitério vai fechar) Bom. Acho que fica pra amanhã.
(O Coveiro abandona a marreta, e vai-se preparando para ir embora, sob o olhar perplexo do Superintendente) Muito justo: o cemitério tem de fechar uma hora dessas, não é? Bem verdade que ainda está claro. (Sem que o Coveiro perceba, o Superintendente apanha a marreta. Seu olhar está turvo de raiva) Deve ser o horário de verão. O senhor acha que essas coisas (Interrompe-se ao ver a marreta na mão do Superintendente)...
O que é isso?.. O senhor não tem prática com essa coisas. É melhor... (Interrompendo a fala do Coveiro, o Superintendente solta um verdadeiro grito de guerra e salta sobre a lápide da Tumba da Santinha, marretando-a) Isso é uma doidice. O senhor não pode fazer uma coisa dessas, não é filiado ao Sincova... Está me ouvindo?! (Sem dar atenção ao que diz o Coveiro, o Superintendente começa a destruir a lápide, demonstrando verdadeiro prazer pelos seus atos)
SUPER Agora eu vou mostrar quem manda aqui!
COVEIRO Minha Santinha da Tumba!
SUPER Quem manda aqui!.. (Até que, de repente, estaca).
COVEIRO Ainda bem que o senhor ouviu a voz da razão. Eu já ia...
SUPER Parece... Parece que está vazio...
COVEIRO Me dá essa marreta. (O Coveiro arranca a marreta da mão do Superintendente, que se afasta atônito, e continua a botar a lápide abaixo) Isto não é serviço pra amador. (O ritmo com que o Coveiro vai botando abaixo a lápide cai aos poucos até que o cemitério mergulha em um patético silêncio) Está vazia. Vazia.
SUPER A Tumba da Santinha não tem santinha alguma. (O silêncio continua a pesar. Tanto o Superintendente quanto o Coveiro, cada um em seu tempo, vão arrumando um lugar para sentar, exaustos que estão. Pausa) Perfeitamente. (Aos poucos, o Superintendente vai deixando escapar um sorriso um tanto amargo, enquanto repete...)
Perfeitamente. Perfeitamente. Perfeitamente... (O Coveiro se afasta um pouco, estranhando o estado em que se encontra o Superintendente. Que continua) Perfeitamente... perfeitamente, perfeitamente...
COVEIRO O senhor está passando bem?
SUPER Perfeitamente.
COVEIRO Berilozzz. (O Superintendente tem um sobressalto) Descobri!
SUPER (Recompondo-se de seu transe) Descobriu o quê?..
COVEIRO Seu nome o jeito certo de falar seu nome. Muito justo: Berilozzz. Berilozzz,
como o meu: Nogueirasss.
SUPER Berilo. Meu nome é Berilo. Que invenção é essa agora de Berilozzz?!!
COVEIRO Berilo “com ‘z’”: Berilozzz. Berilozzzzzz. Bonito.
SUPER Tem um pedaço de papel? Você vai entender, vou escrever meu nome.
COVEIRO Pra quê?
SUPER Você não sabe ler?
COVEIRO Sabia. Esqueci. Só sei ler datas. Das lápides.
SUPER E os pedidos das placas?
COVEIRO Os romeiros me contam. Eles precisam de alguém para ouvir a história deles.
SUPER Serviço opcional?
COVEIRO Está incluído na gorjeta padrão. Muito justo. Nós estabelecemos um piso, seu
Berilozzz.
SUPER Acredite em mim: meu Berilo não tem “z”.
COVEIRO Desculpe.
SUPER Não se preocupe, meu nome sempre deu dessas confusões. (Pensa, e deixa
escapar) Será que foi por isso que o meu pedido não foi atendido?
COVEIRO Nem precisa dizer: o senhor não queria ser transferido para este cemitério...
SUPER Eu pedi para vir para cá.
COVEIRO Pediu?!
SUPER Essa desgraça eu alcancei.
COVEIRO E rezou por isso?!
SUPER Não... outra coisa...mais...impossível.
COVEIRO Perdeu a chance: devia ter pedido pra Santinha.
SUPER Foi o que eu fiz.
COVEIRO Eu sabia que conhecia o senhor de outro lugar.
SUPER É, eu andei por aqui muito tempo antes de ser designado superintendente...
COVEIRO Daí também, mas... A menina! A menina do 5629! Aquela foto sempre foi
das minhas preferidas. A menininha... Eu sabia que sua cara me lembrava alguém...
(Tempo) Pai?
SUPER Pai.
COVEIRO Vocês são muito parecidos. Ela era muito bonitinha. Uma pena que não fui eu que cuidei do enterro... Tinha feito serviço caprichado.
SUPER Obrigado assim mesmo.
COVEIRO Acidente?
SUPER Sem sombra de dúvida: o tanque de lavar roupa caiu em cima dela no quintal.
COVEIRO Na hora?
SUPER Ficou uns dias no hospital.
COVEIRO Tinha chance?
SUPER Dei o melhor: hospital particular. Estou pagando até hoje. Minha mulher exigiu. O médico disse que era bobagem, dinheiro jogado fora. Foi muito sincero. E acho que fez o que tinha que fazer. Minha mulher chorou três dias. Três dias não me disse uma palavra. Depois foi embora. Nunca mais voltou. Isso faz dois anos.
COVEIRO É dureza, não é? Deve ser. Faço força pra saber como é, mas não sei. Minha família foi indo aos poucos, enquanto eu ainda era garoto. Os padres que andam aqui pelo cemitério meio que me criaram. Padres... Dizem que são. Eu sei que não, que é só pra ganhar um troco. Às vezes parece que até acreditam. Até que eu queria casar. Mas, Coveiro... Muito justo: Coveiro não consegue nem comprar a prazo. Os romeiros da Santinha eram uma espécie de primos..
SUPER Estamos no mesmo barco. A Santinha deixou os dois na mão.
COVEIRO O que é que a gente faz com a tumba dela?
SUPER Bota abaixo. A vida continua. E as mortes também. O cemitério continua sem
espaço, está acompanhando? O rodízio dos restos mortais precisa começar. Até minha filha
vai entrar na dança, daqui há um ano.
COVEIRO Mas... precisa começar pela Tumba da Santinha?..
SUPER Não tem Santinha alguma, seu Abelardo...
COVEIRO O senhor já pensou nos romeiros, amanhã, quando chegarem?.. O que vai ser?
SUPER Vai ser melhor pra eles. Estava na hora de saberem que estavam sendo
enganados.
COVEIRO Não, seu Berilozzz. A Santinha era mesmo milagreira. O senhor sabe que eu
não acredito em nada, mas... eu vi. Eu vi!
SUPER Viu o quê?..
COVEIRO Solteirona arranjando casamento, vagabundo entrando na faculdade, pé
rapado comprando fusca...
SUPER E a minha filha? E a minha filha, seu Abelardo... e Antenor?..
COVEIRO Muito justo. Acho que... Acho que...(Tempo) Bom, eu acho que...
Não era o departamento dela. Vício profissional. Era uma mocinha, nada de tão ruim tinha
ainda acontecido na vida dela. E, pelo jeito, não aconteceu mesmo: nada. Que fim levou a
Santinha, não é mesmo?
SUPER Bota abaixo.
COVEIRO O que é que os romeiros vão fazer de agora em diante?
SUPER Eles descobrem o que fazer. Como eu.
COVEIRO Seu Berilozzz... Gente que perde um braço, um filho, a vista, a saúde, ganham
uma espécie de... forteza de espírito, uma dignidade esquisita, tem de onde arrumar fôlego
pra continuar na luta. Mas gente como esses romeiros... Eles só estão pedindo um trocado
da vida.
SUPER Bota abaixo...
COVEIRO Está bem, está bem... Amanhã isto aqui vai ser uma loucura. Um tal de ter de
responder pra onde mandaram a Santinha...
SUPER Não existe santinha!
COVEIRO É o senhor que vai dizer isso praquele bando de romeiro?
SUPER Portaria do prefeito.
COVEIRO O pessoal é pobre, mas vem de montão. De montão, sabia? Loucos por uma
atenção especial. (Tempo) Especial, sabia?..
SUPER O senhor deve faturar bem.
COVEIRO Dá pra dois. Se um amigo estou dizendo um amigo desses que é do peito,
pra quem a gente pode contar uma coisa que a gente não conta pra ninguém... Se um amigo
estiver precisando de ajuda às vezes acontece: pensão de mulher que foi embora, conta de
hospital... Se um amigo desses estiver...
SUPER Um amigo aceita.
COVEIRO Aceita? Aceita, o quê?
SUPER Um amigo aceita o que um amigo oferece.
COVEIRO Assim, tão rápido.
SUPER Ou será que um amigo não estava oferecendo de coração?
COVEIRO De coração! De coração...
SUPER De coração, o quê? Uns 50%?
COVEIRO Do bruto?!
SUPER Quais são os gastos, um amigo pode saber?
COVEIRO Um amigo nem pode imaginar.
SUPER Quanto um amigo pode pedir?
COVEIRO Dez por cento.
SUPER Trinta.
COVEIRO Vinte.
SUPER Bota abaixo.
COVEIRO Vinte! Vinte... Para um amigo assim, quem pode negar qualquer coisa? Mas
só até um amigo pagar as dívidas.
SUPER Bom, depois a gente vê. (O Superintendente olha para a tumba)
Olha só o estrago. Como é? Como é que a gente resolve isso? Como é?
COVEIRO Isso não é problema. Eu tenho uma lápide de mármore escarrara guardada.
Era pra uma emergência. Chegou. Vou precisar de ajuda. Sócio.
SUPER Sócio?!
COVEIRO Elemental. Nós vamos virar a noite fazendo o serviço.
SUPER É... É. Perfeitamente. O que eu que tenho pra fazer em casa?
COVEIRO Encontrar um amigo é encontrar um tesouro...(O Coveiro se entretém organizando suas ferramentas. E, distraído, cantarola, feliz) “Quem descerrar (Respira) ‘ar-ar-ar’ a cortina/ da vida da bailarina (Respira) ‘ar-ar-ar’/ Há de ver (Respira) ‘er-er-er’/ cheio de horrorrrr”...(No seu momento mais inspirado, percebe que o Superintendente olha para a Tumba da Santinha, perdido em pensamentos) O que o senhor acha que aconteceu com a Santinha?
SUPER Foi transferida pra outro cemitério.
COVEIRO Ou nem foi enterrada.
SUPER Mmm?
COVEIRO Fugiu com o padre.
SUPER Quem sabe não está viva até hoje?.
COVEIRO Estava pensando: quando for da vez da sua filha, que dizer, no rodízio, essas
coisas... A gente pode trazer a menina pra cá. Ninguém vai nem perceber que o nome
mudou, quer dizer... apareceu.
SUPER Será que os milagres continuam?
COVEIRO Continuam.
SUPER E... e a lápide? Vai ter de quebrar de novo.
COVEIRO Dá pra arrumar outra. Pra dizer a verdade, eu tenho umas lápides de mámore
escarrara guardadas pra umas emergências. Vamos andando. Ainda precisamos botar um
ponto de luz aqui e...
SUPER Seu Abelardo e Antenor... O senhor sabe quem faz casas mais duradouras que
pedreiro, armador ou carpinteiro?
COVEIRO O Coveiro. Porque a casa que o Coveiro constrói dura até o dia do juízo final!
(Os dois caem na gargalhada)
SUPER Essa era mesmo velha, hein?..
COVEIRO Nada como as velhas piadas...
Pano.
São Paulo, setembro de 1996.
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quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012
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