quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

Abelardo e Berilo



de Bosco Brasil




Personagens:


Coveiro
Super


(Tudo se passa frente ao Túmulo da Santinha, de elegância arquitetônica deslocada, colado ao muro de entrada de um cemitério público. O lugar é pobre e os outros jazigos são humildes e muitos  quase não há espaço entre eles. Sobre a lápide está uma porção de placas e outros objetos, buscando uma graça ou ex-votos. O Coveiro trabalha na limpeza doTúmulo da Santinha, cantando diversas vezes o primeiro estribilho de “Vida de bailarina”, de Chocolate e Américo Seixas, sucesso na voz de Ângela Maria em início de carreira)


COVEIRO  “Quem descerrar (Respira) ‘ar-ar-ar’ a cortina/ da vida da bailarina (Respira) ‘ar-ar-ar’/ Há de ver (Respira) ‘er-er-er’/ cheio de horrorrrr” (Chega o Superintendente, com uma papelada de baixo do braço. O Coveiro demora ainda um instante até perceber a sua presença) Pois não?


SUPER  Diferente esta tumba.


COVEIRO  O senhor está falando comigo?


SUPER  Diferente das outras, quero dizer.


COVEIRO  O senhor acha?


SUPER  Acho.


COVEIRO  Não conheço o senhor de algum lugar?


SUPER  Tenho certeza de que nunca fomos apresentados.


COVEIRO  Fragosão!


SUPER  Perdão?


COVEIRO  O senhor não é o pai do Fragosinha, do lote 3618?


SUPER  Quem é esse Fragosinha?


COVEIRO Não? É tão parecido. Quer dizer, pela fotografia da lápide.


SUPER  Esse Fragosinha é um defunto?!


COVEIRO  Um finado, sim senhor.


SUPER  E que intimidades são essas: Fragosinha...


COVEIRO  Está lá: saudades eternas de Fragosinha, parará, parará. Sempre quis


conhecer o Fragosão. Como não está no mesmo jazigo...


SUPER  Estou vivo, posso dar garantias.


COVEIRO  Não é preciso, trato todos do mesmo jeito.


SUPER Mesmo?


COVEIRO  À minha maneira.


SUPER  E qual é a sua maneira? Especial?


COVEIRO  O senhor não veio pagar promessa?


SUPER  Promessa? Que promessa?


COVEIRO  Como é que eu posso saber? É do senhor a promessa.


SUPER  Não fiz promessa alguma.


COVEIRO  E como é que espera alcançar a graça?


SUPER  Que graça?


COVEIRO  O senhor tem razão. Não tem graça nenhuma. (E volta a trabalhar)


Com licença, amanhã é segunda e eu estou atrasado.


SUPER  Atrasado com o quê?


COVEIRO  No domingo à tarde todo mundo está atrasado com alguma coisa.


SUPER  O que acontece de especial por aqui, na segunda?


COVEIRO  O senhor não sabe que toda segunda é dia de romaria à Tumba da Santinha Milagrosa?


SUPER  Romaria? Mas isto não é um cemitério? (O Coveiro pára repentinamente e olha em volta)


COVEIRO  O senhor acha mesmo? (E volta a trabalhar). Por que o senhor não aproveita que está tudo tranqüilo, sem aquela baderna de amanhã, pra fazer sua oração sossegado?


SUPER  E para quem eu vou rezar? (Pausa. O Coveiro olha bem para o Supervisor)


COVEIRO  Será que quem tem que rezar sou eu?


SUPER  Então é aqui a famosa Tumba da Santinha.


COVEIRO  Famosa pra quem, dá pra saber?


SUPER O senhor não sabe com quem está falando? (O Coveiro responde sem parar de fazer o que está fazendo)


COVEIRO  O senhor não sabe o que é um vício profissional.


SUPER  O senhor sabe quem eu sou?


COVEIRO  Se a mulher chora muito não deve ser a viúva. Viúvas estão secas.


SUPER  O senhor sabe quem eu sou?


COVEIRO  Se todos os cravos estão bem apertados, o caixão leva um professor de matemática. São meticulosos in extremis.


SUPER  O senhor sabe quem eu sou?


COVEIRO  O senhor não sabe o que é vício profissional. Se o senhor pergunta se eu sei


quem é o senhor, o senhor é o superintendente  o novo superintendente dos Coveiros.


SUPER  Certeza?


COVEIRO  Muito justo: certeza.


SUPER  Como é? Se o senhor não foi à apresentação do novo superintendente, como é que o senhor sabe se eu sou o novo superintendente? É, é isso que eu quero saber. Como é?


COVEIRO  Não é?


SUPER  O senhor sabe o rosto do novo superintendente?


COVEIRO  Não sabia.


SUPER  Como ele anda, como ele fala?


COVEIRO  Não sabia...


SUPER  Como é?


COVEIRO  O senhor não é o novo superintendente?


SUPER  Como é que vai saber? O senhor foi o único Coveiro, o único, que não foi à apresentação do novo superintendente.


COVEIRO  Vício profissional.


SUPER  De novo.


COVEIRO  O senhor não acredita. Este é um cemitério pobre. Os restos são pobres. Quem deixa os defuntos sai correndo porque fica um pouco menos pobre. Quando não fica mais pobre que os restos, e precisa ganhar a vida logo. Ninguém dura aqui, nenhum superintendente.


SUPER  As coisas vão mudar por aqui.


COVEIRO  Do pó ao pó. Tudo é passageiro. Todos os superintendentes são passageiros.


SUPER  Acontece, meu senhor, que este novo superintendente quer implantar neste cemitério um novo ambiente de trabalho. Diálogo, dinamismo, salubridade, companheirismo, empenho, diálogo, respeito, decência, eficiência, experiência... diálogo, qualidade total, atitude qualificada, rapidez comprovada...


COVEIRO  Diálogo...


SUPER  Perfeitamente! O senhor já está pegando o espírito.


COVEIRO  Sou craque nisso. Com a minha pá e sete palmos de terra.


SUPER  A nova gestão precisa da união de todos.


COVEIRO  Todos, quem?


SUPER  Coveiros, porteiros, vigias, zeladores... defuntos...


COVEIRO  Defuntos?


SUPER  Num certo sentido.


COVEIRO  Como é que vai ser isso?


SUPER  Em clima de troca de idéias e...


COVEIRO ...diálogo.


SUPER Perfeitamente! Quem viver verá.


COVEIRO  E quem não estiver vivo?


SUPER  Acima de tudo, a nova gestão precisa conhecer detidamente cada Coveiro deste campo santo. Por isso e por...


COVEIRO  Abelardo A. Nogueiras.


SUPER  Ah...


COVEIRO  A.? Antenor.


SUPER  Não, não! Eu disse: ah...


COVEIRO  Pois então: A., muito justo. Antenor, como meu avô.


SUPER  O senhor não entendeu: Ah... Ah... Ah!


COVEIRO  O senhor está se sentindo bem?


SUPER  Perfeitamente. Estou apenas tentando me explicar.


COVEIRO  Ah.


SUPER  Isso: o senhor disse!


COVEIR  Não senhor, não disse nada.


SUPER  Acabei de ouvir.


COVEIRO  Eu só soltei um “ah”. O senhor está dizendo que eu disse o que eu não disse que disse.


SUPER  Eu não disse nada disso.


COVEIRO  Foi o que disse meu finado pai: eu não disse nada disso. Mas o elemento do registro não estava muito bem no dia. Não entendeu bem da primeira vez o que meu pai disse que não disse e escreveu Abelardo  que o meu pai queria Antenor. Só que não podia começar outro registro. Acabei ficando com Abelardo e Antenor. Como é o segundo, Antenor virou A. Não é engraçado que as pessoas me conheçam pelo nome errado?


SUPER  Muito bem, senhor Nogueira.


COVEIRO  Nogueirasss. Eu disse, o elemento do registro não estava muito bem no dia.


No dia que meu pai nasceu, também, quero dizer. Porque esse Nogueiras vem mesmo do


meu pai. Meu avô nem reclamou. O elemento do registro, do registro do meu avô, não


do meu pai, convenceu meu avô a deixar assim. Disse que se não era uma família


muito antiga, os Nogueiras, quer dizer os Nogueirasss, podia ser uma família que


tinha começado com ele. E meu avô ficou muito contente com isso. O senhor está


vendo como é a vida? (O Coveiro estende a mão para o Superintendente)


COVEIRO  Abelardo A. Nogueiras.


SUPER  Ah...


COVEIRO  Como é?


SUPER  Nada, nada... (E se apressa em apertar-lhe a mão) O que precisa ficar claro, se é que não ficou ainda... (Interrompe-se. O Coveiro permanece com a mão estendida. Tempo)


COVEIRO  Abelardo A. Nogueiras.


SUPER  Mmm?


COVEIRO  Abelardo A. Nogueiras.


SUPER  Já sei!


COVEIRO  Muito justo. (O Coveiro continua com a mão estendida. Tempo. Até o Superintendente entender que o Coveiro quer que ele se apresente. Vai soltar um “ah”, mas, ao perceber que a pronta resposta do interlocutor se prepara, desiste, e..).


SUPER  Não! Não. Não se preocupe, eu não ia dizer nada. Ao seu perpétuo dispor:


dr. Berilo Conzet (pronuncia-se “conzê”).


COVEIRO  Não precisa explicar. Não vou mesmo escrever.


SUPER  Escrever? Escrever o quê?


COVEIRO  Seu nome: Berilo. Se tem ou não “z”...


SUPER  Berilo não leva “z”.


COVEIR  O senhor acabou de dizer que tem.


SUPER  Eu?


COVEIRO  Com todas as letras: doutor Berilo “com ‘z’”.


SUPER  Meu sobrenome, está acompanhando? Meu sobrenome: Conzet.


COVEIRO Mmm.


SUPER  Minha avó, por lado de pai, era casada em segundas núpcias com um francês.


COVEIRO  Sei. Veio de fora.


SUPER  Perfeitamente.


COVEIRO  Se eles falam enrolado, imagine como escrevem: Berilo com “z”, sem “z”.


SUPER  Mas Conzet tem “z”!


COVEIRO  Claro que sim! É o que eu estou dizendo desde o começo...


SUPER  O senhor não pode entender: vem do francês.


COVEIRO  Lingua assombrante. Muito prazer. (E, imediatamente, volta a trabalhar, sem dar pelota para o Superintendente, que fica ali, fumegando. Tempo. Quando o Coveiro percebe que o Berilo continua por ali, pergunta, cândidamente...


COVEIRO  O senhor ia dizer mais alguma coisa?


SUPER  O senhor está ciente de que a minha paciência já não é tão espaçosa quanto no momento em que começamos o nosso...


COVEIRO  ...diálogo?


SUPER  Por favor, senhor Nogueira, eu detesto, quando...


COVEIRO  Nogueiras.


SUPER  Como é? O que é, mmm?!


COVEIRO  Nogueiras.


SUPER  Nogueiras?


COVEIRO  Nogueirasssss.


SUPER  Nogueiras, isso, o senhor queira...


COVEIRA  Não precisa se desculpar.


SUPER  Por favor, senhor Nogueiras, eu detesto...


COVEIRO  ... “quando alguém se adianta ao que eu ia dizer”.


SUPER  O senhor ia dizer alguma coisa?


COVEIRO  Eu, não senhor. O senhor ia.


SUPER  Perfeitamente. (Tempo) O que é mesmo que ia dizer?


COVEIRO  Que o senhor detesta quando alguém se adianta ao que o senhor ia dizer.


SUPER  Como é? Como é, mmm? Como é que o senhor pode dizer que eu ia dizer o que


o senhor disse que eu ia dizer? Como é? Como é, mmm?


COVEIRO  Todo superintendente antes do senhor dizia a mesma coisa. (Silêncio)


SUPER  Eu sou o novo, novo superintendente. De agora em diante tudo aqui é novo.


Novos tempos, está acompanhando? Nova a superintendência, novas as palavras, novas as


relações. Estou aqui para discutir os problemas do nosso cemitério, as dificuldades que o...


COVEIRO  Nenhuma.


SUPER  Nenhuma? Nenhuma o quê?


COVEIRO  O senhor não ia dizer que veio para discutir as dificuldades que eu tenho no meu trabalho?


SUPER  O senhor não pode perder a mania de se adiantar ao que eu vou dizer?!


COVEIRO  Desculpe.


SUPER  Não por isso.


COVEIRO  Pelo que, então?


SUPER  Mmm?..


COVEIRO  O senhor acabou de me conhecer!


SUPER  Seu Abelardo e Antenor, por favor.


COVEIRO  O que é que eu já fiz pro senhor?


SUPER  Nada! Nada... Nada. Posso continuar?


COVEIRO  Pode.


SUPER  Obrigado. (Tempo) O que eu estava dizendo antes do senhor se adiantar ao que eu ia dizer?


COVEIRO  Que o senhor detesta que alguém se adiante ao que vai dizer.


SUPER  Não! Antes disso.


COVEIRO  Nenhuma.


SUPER  Nenhuma?.. O senhor quer dizer nada.


COVEIRO  O senhor não ia dizer nada?!


SUPER  Claro que ia.


COVEIRO  Até pensei que alguma coisa ia mudar por aqui...


SUPER  Uma pessoa não diz que não diz nenhuma, está acompanhando? Uma pessoa não diz nada.


COVEIRO  Foi o que eu disse. Nada. Desde o começo. Não tenho nenhuma dificuldade no meu trabalho. Nenhuma.


SUPER  Certeza?


COVEIRO  Meus colegas reclamaram de alguma coisa?


SUPER  Não... Nada.


COVEIRO  Pois então. As minhas dificuldades são as mesmas dos meus colegas.


(E volta imediatamente a trabalhar)


SUPER  Mas as minhas dificuldades são grandes, senhor Nogueira.


COVEIRO  Nogueirasssss.


SUPER  E o senhor sabe por quê?


COVEIRO  Nem imagino.


SUPER  Exatamente por isso. Por que o senhor nem imagina. Não imagina tudo que é preciso fazer para as coisas entrarem nos eixos por aqui. Ou para entrarem nos gaveteiros, para ficarmos em nosso elemento.


COVEIRO  Calma. Não se apresse.


SUPER  Estive fazendo uma investigação pessoal e sigilosa, está acompanhando? Aqui no nosso cemitério.


COVEIRO  O senhor andou vigiando.


SUPER  Verificando.


COVEIRO  Daí eu conhecia o senhor! Sabe, eu estava ainda em dúvida se eu tinha enterrado o senhor. Nem um, nem outro. Esta aí: o novo supervisor verificando. Isso é novidade...


SUPER  Mesmo?


COVEIRO  Muito justo: mesmo.


SUPER  Inovei de verdade, não foi?


COVEIRO  Mas eu ainda acho que conheço o senhor de outro lugar.


SUPER  Não param por aí as inovações.


COVEIRO  Não?..


SUPER  Não.


COVEIRO  Pra que mais? Pode estragar a boa impressão do começo.


SUPER  Mas é exatamente esse o problema em nosso cemitério: a falta de boa impressão do começo. Ou do fim.


COVEIRO  Se o fim é por aqui, a impressão não pode ser boa mesmo.


SUPER  O senhor tem razão. Muito lúcido, muito lúcido. Bem que me disseram para conversar com o senhor.


COVEIRO  Quem disse?


SUPER  Todo mundo.


COVEIRO  Os outros Coveiros?


SUPER  Também os outros Coveiros.


COVEIRO  De fato, o último todo mundo de todos nós.


SUPER  O senhor é mesmo como eu esperava.


COVEIRO  Mmm. Falaram tudo isso de mim, é?


SUPER  Sim, sim, sim... Alguém com os pés, as mãos e as pás no chão. Rigoroso, dedicado, abnegado, pertinente, penitente. Um funcionário que faz de qualquer serviço um serviço... especial...


COVEIRO  Eu sabia. Quem foi que contou essa também?


SUPER  Todo mundo.


COVEIRO  Se eu pego todo mundo...


SUPER  Me garantiram: problemas aqui no nosso cemitério? Seu Abelardo dá um jeito.


COVEIRO  Todo mundo disse isso tudo para o senhor?


SUPER  Hoje de manhã.


COVEIRO  Entendi. Durante a sua apresentação como novo supervisor dos Coveiros.


SUPER  Superintendente. Perfeitamente. Uma pena que o senhor não pôde comparecer. Todo mundo falou tanta coisa do senhor.


COVEIRO  Vou ter mesmo uma conversinha com todo mundo.


SUPER  Foi o que me disseram: um líder entre os Coveiros!


COVEIRO  Mas foi o senhor quem acabou de cavar as covas de todo mundo...


SUPER  Estamos quase chegando onde eu quero chegar.


COVEIRO  E aonde o senhor quer chegar?


SUPER  Às dificuldades que estamos enfrentando no nosso cemitério.


COVEIRO  Dificuldades? O senhor estava quase me deixando assustado. Dificuldades...


(E volta a trabalhar) Nenhuma! Nenhuma...


SUPER  Infelizmente...(O Coveiro estaca)


COVEIRO  Infelizmente, o quê?


SUPER  Como é? Como é, mmm? Como é que eu posso trabalhar nessas condições?


COVEIRO  Condições?!


SUPER  É o que eu tenho me perguntado.


COVEIRO  Quais são as condições, não é? (Mais baixo) Quais são as condições?!


SUPER  Poucas.


COVEIRO  Quanto?


SUPER  Com a dispersão no trabalho entre os Coveiros do nosso cemitério, no nível em que se encontra?


COVEIRO  Muito justo.


SUPER  Não falo pelo senhor, um líder entre os Coveiros. Exemplo disso é o zelo com


que se dedica a ... É mesmo diferente esta tumba, não é?


COVEIRO  Nem percebi.


SUPER  Essas plaquinhas todas.


COVEIRO  O senhor estava falando das suas dificuldades...


SUPER  Nossas.


COVEIRO  Muito justo: nossas.


SUPER  Nossas dificuldades. Os funcionários com esses jalecos descosturados fazendo as vezes de uniformes.


COVEIRO  É. Às vezes.


SUPER  Incomodar as famílias enlutadas com essa mania de falar alto.


COVEIRO  Verdade.


SUPER  E cantar, então?


COVEIRO  Tem Coveiro que canta?!


SUPER  Acredite se quiser.


COVEIRO  Mas canta por quê?


SUPER  O senhor já imaginou se o prefeito aparece para fazer uma visita surpresa?


COVEIRO  O prefeito não faz nem visita marcada.


SUPER  Ele mudou...


COVEIRO  Não...


SUPER  Estamos esperando uma visita surpresa para qualquer momento. Só não sabemos quando.


COVEIRO  Mmm.


SUPER  E se ele aparece na segunda?


COVEIRO  Melhor. Depois de um domingo, bem descansado, de bom humor.


SUPER  Me referia à baderna.


COVEIRO  Baderna? Aqui no nosso cemitério?


SUPER  O senhor disse para eu aproveitar e rezar hoje sem aquela baderna de segunda, lembra?.


COVEIRO  Uma baguncinha, um pouco mais de movimento.


SUPER  Os romeiros da Tumba da Santinha Milagrosa.


COVEIRO  Uma meia dúzia.


SUPER  Meia dúzia?


COVEIRO  Uma meia dúzia de meias dúzias.


SUPER  Pisam sobre os túmulos, esmagam as hortências da entrada principal.


COVEIRO  Essas hortências só atrapalham a passagem das pessoas.


SUPER  As hortências estão lá obedecendo determinação do prefeito!


COVEIRO  Verdade, são muito obedientes.


SUPER  De qualquer maneira, isso vai acabar logo.


COVEIRO  Finalmente vão arrancar aquelas hortências enjoadoras dali?


SUPER  Não. As hortências ficam.


COVEIRO  Ficam? E quem sai?


SUPER  Acho que as hortências estão entre as poucas coisas que ficam no mesmo lugar neste cemitério, a partir de hoje. (Silêncio) O senhor não vai dizer nada?


COVEIRO  Depende. Eu sou... coisa?


SUPER  Claro que não. O senhor é Coveiro. Vamos precisar muito dos Coveiros.


COVEIRO  E o que seria do mundo sem os Coveiros, não é?


SUPER  Nem posso imaginar.


COVEIRO  Pode, sim.


SUPER  Às vezes a gente esquece dos Coveiros.


COVEIRO  Às vezes sempre.


SUPER  Perfeitamente. Ainda mais agora que não se vê muito o trabalho dos Coveiros do nosso cemitério.


COVEIRO  Bom... Os jazigos neste cemitério ficam todos em cima da terra. Não tem mesmo muito o que cavar.


SUPER  Não deveríamos nem chamá-los de Coveiros, não é verdade?


COVEIRO  Eu nunca aceitaria outro designamento.


SUPER  Claro... Claro. Mas não era disso que eu estava falando.


COVEIRO  Não?


SUPER  Com todas as tumbas tomadas? Enterrar o quê? Pior: onde?


COVEIRO  Nem reparei. Muito justo.


SUPER  Essa é a minha principal dificuldade. Precisamos... abrir espaço. Está me acompanhando?


COVEIRO  E...e como é que nós vamos fazer isso?


SUPER  O senhor não sabe?


COVEIRO  Não.


SUPER  Se tivesse comparecido à minha apresentação hoje de manhã...


COVEIRO  Muito justo: o senhor está certo. Devo de pedir desculpas.


SUPER  Ah!


COVEIRO  Abelardo, ao seu dispor.


SUPER  Não, não. Eu disse...


COVEIRO  Eu estava brincando. Pra quebrar o gelo, soltar a língua, embatucar uma


conversa, levar um lero, nada demais, assunto à toa, vamos dizer, por exemplo, no caso...


como é que a nova superintendência dos Coveiros entende o problema do espaço no...


nosso cemitério?


SUPER  Nem se trata de segredo, todo mundo sabe: a nova portaria.


COVEIRO  Eu sempre achei que deviam de abrir um novo portão neste cemitério! Assim desafoga os...


SUPER  Portaria do prefeito, seu Abeleardo: novas determinações, está acompanhando?


COVEIRO  Acho que não...


SUPER  O senhor sabe que este é o único cemitério público da cidade? Claro, o número de cemitérios particulares cresceu, mas também  não é interessante?  o números de pessoas  digo, finados  que não têm onde ser enterradas. Este é o problema. Onde enterrar estes finados todos? Como é? Como é, mmm? Como é que nós vamos conseguir mais espaço?


COVEIRO  E quando as pessoas entram num cemitério pensam como é que vão conseguir mais tempo, vejam só que coisa...


SUPER  A portaria é clara.


COVEIRO  O prefeito está regulando o tempo, também?


SUPER  Claro! Artigo primeiro: acabaram-se o jazigos perpétuos.


COVEIRO  Como é que é?!..


SUPER  Os jazigos serão emprestados, apenas e tão somente.


COVEIRO  E quem devolve?


SUPER  Aí entram os senhores Coveiros.


COVEIRO  Entram bem, não é?


SUPER  O restos restam apenas três anos. Depois vão para o ossário. Se não forem reclamados.


COVEIRO  Isso vale a partir de quando?


SUPER  De sempre. A portaria é retroativa.


COVEIRO  Retroativa?! Minha Santinha da Tumba!


SUPER  Já imaginava que o senhor tivesse essa reação.


COVEIRO  Vocês querem acabar com este cemitério?


SUPER  Pelo contrário.


COVEIRO  Pelo contrário, sim senhor: vão botar as coisas do avesso por aqui. Uma portaria retroativa! O senhor imagina o que vai fazer pra saúde das pessoas essa portaria retroativa?


SUPER  Pra saúde?!..


COVEIRO  O cabelo cai, o elemento vai morrendo aos poucos, é uma maldade.


SUPER  Nunca ouvi falar que uma portaria retroativa fizesse cair o cabelo...


COVEIRO  O senhor está fora do mundo?! Nunca ouviu falar de bomba atômica.


SUPER  Ah! Não, não...Eu disse retroativa, não radiativa.


COVEIRO  Coisas esquisitas acontecem por causa da retroatividade. Chove de baixo pra cima, peixe sobe em árvore.


SUPER  Nada disso, o prefeito só quer que os defuntos antigos cedam lugar aos novos.


COVEIRO  Não disse? Coisas esquisitas vão acontecer.


SUPER  Tudo muito normal. Os jazigos que já estavam ocupados antes da portaria 


ou seja, todos  também serão atingidos pela portaria do prefeito. Perfeitamente. Vamos


começar desalojando os restos, dos mais antigos para os mais recentes.


COVEIRO  Por quê?


SUPER  Vamos começar tudo de novo, seu Abelardo!


COVEIRO  Eu explico. O que é isso de baixo do braço do senhor? A planta do cemitério?


SUPER  Do nosso cemitério, sim senhor.


COVEIRO  Vamos dar uma olhada. (O Coveiro puxa a planta antes que o Superintendente possa reagir, e a abre sobre aTumba da Santinha) Vamos ver, vamos ver...


SUPER  Seu Abelardo e Antenor! Não tenho tempo para...


COVEIRO  O senhor me empresta um minuto, e eu vou lhe devolver em dias. Veja bem, que história é essa de “mais antigo para o mais recente”? Com os mais recentes não se pode mesmo fazer nada. Quanto aos mais antigos... bem, ninguém fica mais antigo. Só estou falando porque o senhor disse que os tempos são novos, são tempos de diálogo. Estou errado?


SUPER  Pode seguir, pode seguir...


COVEIRO  Muito justo. O senhor entende, os restos, os restos estão espalhados por aí. Os mais antigos, os menos antigos. Misturados. Misturados, o senhor entende?


SUPER  Concluíndo, seu Abelardo...


COVEIRO  Só estou querendo poupar tempo. Só estou querendo poupar tempo...(Estende a mão) Uma caneta. (Um pouco contrariado, o Superintendente passa sua caneta para o Coveiro, que aponta para a planta sobre a tumba) Acompanhe a ciência das coisas. O senhor divide o... nosso cemitério em, vamos dizer, duas partes: pra lá, e pra cá, o senhor entende? (O Coveiro traça um traço no meio da planta do Superintendente)


SUPER  O conceito está claro.


COVEIRO  Vamos ganhar espaço, mas vamos por partes. Fica mais rápido. O senhor pode também dividir o nosso cemitério em quatro partes. (E traça mais um traço)


Ou oito partes. (E traça mais dois traços) Assim... Ou...


SUPER  Está bem! Já entendi. (Olhando para o mapa) Parece uma pizza!


COVEIRO  Metade de uma pizza, vai... (Sem perder tempo, volta-se para o cemitério e, sempre de costas para a Tumba da Santinha, começa a apontar à sua frente, em diversas direções) E o senhor pode começar por esta fatia, ou por esta, ou por esta, ou por esta... e passar para aquela, ou para aquela, ou para aquela...


SUPER  É. Mas acho que vou começar pela azeitona.


COVEIRO  Azeitona? Azeitona?!


SUPER  O jazigo mais antigo do cemitério. (O Coveiro começa a procurar na planta sobre a tumba da Santinha)


COVEIRO  Qual? Qual?!


SUPER  Com licença. (O Superintendente afasta o Coveiro e levanta a planta, apontando a tumba que estava “por baixo”)


SUPER  A azeitona aqui.


COVEIRO  Mmm. Muito justo.


SUPER  Foi boa a tentativa, seu Abelardo e Antenor. Agora vamos falar de trabalho.


COVEIRO  O senhor quer mesmo desalojar a Santinha daqui?


SUPER  Perfeitamente.


COVEIRO  Mas...por que começar com ela?


SUPER  Por que não?


COVEIRO  É um paraplégio fazer isso!


SUPER  Que é isso: paraplégio?..


COVEIRO  O senhor não sabe?


SUPER  Nunca ouvi falar disso.


COVEIRO  É o que o senhor vai fazer, um paraplégio, tirar a Santinha Milagrosa do lugar!


SUPER  O senhor está inventando, não existe paraplégio.


COVEIRO  Existe.


SUPER  Não existe.


COVEIRO  Existe.


SUPER  Não existe.


COVEIRO  Existe, sim senhor. Os tempos mudaram: bomba atômica, retroatividade, mas essas coisas continuam as mesmas. Já vi muita gente ficar paraplégia, depois de cometer um paraplégio.


SUPER  Ah...sacrilégio! É um sacrilégio desenterrar os restos da Santinha Milagrosa!


COVEIRO  Então o senhor também acha a mesma coisa?!


SUPER  Não acho nada.


COVEIRO  O senhor disse que achava.


SUPER  Não disse.


COVEIRO  Disse...


SUPER  É. Está bem. Disse, mas não disse... Disse o que o senhor disse, mas não disse, porque disse de outro jeito que (interompe-se, irritado)... Isso não tem importância alguma: paraplégio, sacrilégio, sortilégio, estratégio, a ordem é exumar os restos da Santinha e levar para o ossário municipal. Tal e qual.


COVEIRO  Mas...


SUPER  Não tem mais discussão, está acompanhando? Não tem mais discussão.


COVEIRO  Está bem. Está bem... O senhor é quem manda: o senhor quer diálogo, e eu


faço diálogo, o senhor quer espaço, e eu faço espaço. Estou aqui para fazer o que o senhor


manda. Só não entendo por que não começa com o...doutor Rosálio, por exemplo, do lote


1622. Eu sempre quis saber porque o “doutor” na frente. Quem sabe, abrindo o caixão...


Nascido em doze do dois de 19, falecido em...


SUPER  Não, não...


COVEIRO  E Râmada de Oliveira Neves, do 2843. O senhor já ouviu falar de alguém


chamado Râmada?


SUPER  Não adianta, seu Abelardo.


COVEIRO  Tem o indigente do 2345. Com um número desses, devia ser um elemento de


sorte. Pra depois da morte, quero dizer.


SUPER  O senhor não pode entender?


COVEIRO  Francelino Espírito Santo, “saudade de noras, filhos e netos”! Foi enterrado


em 1936!


SUPER  Tem de ser a Santinha. (Silêncio. O Coveiro olha para o Superintendente de modo estranho por um tempo)


COVEIRO  Não conheço o senhor de algum lugar?


SUPER  A Santinha está enterrada aqui desde 1927...


COVEIRO ...foi uma desbravadora.


SUPER ...não tem parentes que reclamem seus restos.


COVEIRO  Muito justo.


SUPER  Além disso, essa baderna de toda segunda, essa estória de milagres...


COVEIRO  Estória, não senhor. É tudo verdade. O senhor não acredita nos poderes da


Santinha?


SUPER  Claro que não! Eu sou um homem religioso. O senhor não é?!


COVEIRO  Não. Por isso mesmo eu acredito.


SUPER  Como é? Como isso é possível?


COVEIRO  Eu vi.


SUPER  Viu?!


COVEIRO  Bom... Eu estou vendo.


SUPER  Vendo? Vendo o quê?..


COVEIRO  Na sua frente. As placas de ex-votos. São as graças atingidas: “grata à


Santinha da Tumba por graça recebida  marido que toda a vida sonhei  por isso...”


SUPER  Conseguir um marido nem sempre é uma graça.


COVEIRO  E este aqui? “Graças pelo emprego conseguido...”


SUPER  Conseguir um emprego não é um milagre!


COVEIRO  Não?!


SUPER  É isto que as pessoas vem pedir aqui?


COVEIRO  Este é um cemitério público, da massa; reparou no pessoal que anda por aqui? Dona Romana! Olhe só, dona Romana; muito justo. Tem 62 anos. Vem toda segunda-feira pedir para sua mãe voltar a falar com ela. As duas brigaram há 22 anos e...


SUPER  Que santa milagreira é esta que atende este tipo de pedido, casamentos, trabalho, mãe que não fala com filha?


COVEIRO  O senhor esperava o quê? Gente voando, aparecendo e sumindo, cego


voltando a ver, lágrimas de sangue? Isso qualquer mágico de cartola faz. Mas essas


coisinhas, essas encrenquinhas de meio-dia à meia-noite, de meia-noite ao meio-dia...


SUPER  Eu queria que ela fizesse coisas... impossíveis.


COVEIRO  Muito justo: o que ela faz é impossível.


SUPER  Não interessa. Vamos tirar a Santinha daí. Não estou aqui para discutir minhas ordens.


COVEIRO  Pensei que o senhor queria diálogo com os funcionários.


SUPER  E quero! Primeiro abrimos o diálogo, depois os senhores acatam o que eu decidi.


COVEIRO  Mmm.


SUPER  O que nós estamos fazendo aqui, afinal, trocando idéias?..


COVEIRO  Não sei.


SUPER  Pode começar, pode botar abaixo a lápide da (Interrompendo-se)... Santinha... (Agitado) Santinha, santinha! (Inesperadamente o Superintendenete começa, mal escondendo a irritação, a procurar pela lápide do Túmulo da Santinha alguma inscrição.


Será possível que esses restos não tem nome?! Estou cansado de chamar essa defunta de santinha. Onde é que está o nome dela?


COVEIRO  Não tem.


SUPER  Como não tem?


COVEIRO  Não tem, estou dizendo.


SUPER  E que nome vai no ossário?


COVEIRO  Santinha?


SUPER  Isso é que não! Nem que...Achei! (O Superintendente afasta algumas plaquinhas, ansioso) Aqui... Aqui... Essas plaquinhas, por isso eu não achei daquela vez...


COVEIRO  O senhor já tinha procurado o nome da plaquinha antes?..


SUPER (Desconversando, lê)  “Dolorosa lembrança...”


COVEIRO  Eu não conheço mesmo o senhor de outro lugar?


SUPER  “...de uma alma pura que se foi... etecétera, etecétera...” (Tempo) O que é isso?


O que foi que fizeram aqui?


COVEIRO  Raparam o nome.


SUPER  Isso eu estou vendo! Como é que fazem uma coisa dessas?


COVEIRO  Com uma palha de aço, uma...


SUPER  Seu Abelardo e Antenor. Eu quero é saber por quê!


COVEIRO  Por quê?! Ah, por quê... O senhor quer saber por quê...


SUPER  Quero, sim senhor.


COVEIRO  Por quê, é o que o senhor quer saber.


SUPER  É. Por quê!


COVEIRO  Por quê?..


SUPER  O senhor vai responder ou não?!


COVEIRO  Não sei.


SUPER  Como não sabe?


COVEIRO  Vou contar o que me contaram. E quem sabe isso seja uma resposta. Quem


sabe não. Quem sabe.


SUPER  Pode deixar que eu vou saber.


COVEIRO  Bom... Só sei que sei demais. E não sei o que preciso saber.


SUPER  Desembucha.


COVEIRO  O senhor já parou pra pensar porque a Santinha veio parar neste cemitério?


SUPER  Perfeitamente. Por que estava morta.


COVEIRO  Muito justo. Mas a  com todo o respeito  defunta veio para cá em 1927.


Não tinha ninguém por aqui, tinha? Morto, quer dizer.


SUPER  O cemitério foi inaugurado em 1923, pelo que me consta.


COVEIRO  A cidade era bem menor naquela época. Isto aqui fica muito longe do centro.


SUPER  Perfeitamente. Um lugar ermo. Naqueles tempos ninguém queria um campo


Santo por perto.


COVEIRO  Mesmo assim. Tem cemitério mais pro lado do centro. Este fica longe


demais.


SUPER  Para servir as pessoas mais humildes, que não podiam ser enterradas nas


catacumbas das igrejas, nos cemitérios das irmandades...


COVEIRO  Muito justo: quem não tinha onde cair morto. E ficar. Filho de ex-escravo,


mendigo, trabalhador braçal e pernal. Eu conheço a História dos cemitérios da cidade.


Acho que até uns Coveiros vinham parar aqui...


SUPER  Concluindo, seu Abelardo e Antenor.


COVEIRO  É só olhar a Tumba da Santinha.


SUPER  O que tem?


COVEIRO  Tem gente-bem, e viva, que ia agradecer morar aí. Bronze, mármore


escarrara..


SUPER  Como é?!


COVEIRO  Termos técnicos. O senhor não pode entender. Quer que eu explique?


SUPER  Não! Melhor não. Pode ir em frente.


COVEIRO  Está vendo só esse acabamento? Sou um profissional, sei do que estou


falando.


SUPER  Tenho certeza. E daí?


COVEIRO  A família que construiu este jazigo tinha dinheiro. Muito dinheiro.


SUPER  É... É. Tem razão.


COVEIRO  Ia enterrar a mocinha neste fim de mundo? Por que era uma mocinha, olha


só a lápide, de baixo do nome apagado: “30/10/1910 - 12/06/1927”. Eu fiz as contas; idade


é comigo. Vício profissional.


SUPER  Aonde o senhor quer chegar com essa digreção?


COVEIRO  Que digreção? O senhor não está sendo justo, estou tratando o senhor com o


maior respeito.


SUPER  Perfeitamente.


COVEIRO  Então. No que foi que eu digredi o senhor, posso saber?


SUPER  Lá vamos nós, outra vez.


COVEIRO  Eu não digrido as pessoas por aí, não senhor. Eu sou de paz, eu nunca digredi


ninguém na minha vida.


SUPER  E a Santinha, seu Abelardo? E a Santinha?!


COVEIRO  Principalmente ela. Eu tenho o maior respeito por ela! O senhor acha que eu


ia digredir a pobrezinha? Estava só dizendo que alguma coisa aconteceu para ela vir parar


aqui. Neste fim de mundo. O senhor não pode imaginar: só ela aqui, sozinha, abandonada...


SUPER  Eu posso, sim...


COVEIRO ...sem viva ou morta alma por perto.


SUPER  E aqui venta muito...


COVEIRO  Sabe o que dizem?


SUPER  O quê?..


COVEIRO  Que ela se matou.


SUPER  A Santinha?


COVEIRO  Em carne e osso, quando ela ainda tinha.


SUPER  Por quê?


COVEIRO  Por quê? É o que eu digo: por quê... Ah, por quê...(Silêncio)


SUPER  Então?!


COVEIRO  Ninguém sabe. (Após um breve e misterioso silêncio, o Superintendente vai dizer alguma coisa, faz menção, mas antes que abra a boca é interrompido pelo Coveiro que se adianta...) Não senhor, ninguém. (O Superintendente se enfeza, vai dizer alguma coisa, faz novamente menção, mas novamente é interrompido pelo Coveiro que se adianta...) Sim, senhor; eu sei que o senhor não gosta que ninguém se adiante ao senhor, mas pense bem: é claro que a família fez de tudo pra esconder o fato; enterrou a mocinha aqui neste lugar tão longe do povo falador e curioso  não é engraçado que vem tanta gente visitar a Santinha hoje em dia? (Silêncio. O Superintendente ainda uma vez vai dizer alguma coisa, ainda uma vez faz menção, mas ainda uma vez é interrompido pelo Coveiro que se adianta...) Aqui é um campo santo sim senhor, e, como o próprio nome diz, é


santo. Eu sei que não é lugar pra quem tira a própria vida; um enterro cristão para quem atenta contra a própria salvação? Quer dizer, isso vale pra um elemento religioso como o senhor. Eu não me importo. (E o Coveiro se adianta de novo ao que vai dizer o Superintendente) É verdade. Naquele tempo todo mundo se importava. Disseram que foi acidente, está na cara. (O Coveiro faz um sinal pra que o Superintendente nem faça menção de dizer o que ia dizer. Logo em seguida sinaliza para que ele aproxime o ouvido. O Superintendente hesita, mas obedece) Era família de posses. (Alto, estourando os tímpanos do Superintendente) Família de posses pode tudo. É. Disseram que foi acidente. E acidente ficou. Muito justo. (Breve silêncio. O Coveiro faz um sinal para o Superintendente perguntar aquilo que está louco para perguntar...) Pode fazer...


SUPER  Fazer o quê?


COVEIRO  A pergunta.


SUPER  Como é que foi o acidente?..


COVEIRO  Ninguém tem a certeza. A certeza. Diz que a Santinha se atirou do alto de


uma torre de igreja.


SUPER  E morreu.


COVEIRO  Tomara que sim porque é ela que está enterrada aqui.


SUPER  Sei disso. Então pode ser acidente mesmo.


COVEIRO  O senhor tem a certeza? A certeza?


SUPER  Se desequilibrou, o lugar devia ser alto.


COVEIRO  Ou se atirou em defesa própria.


SUPER  Mmm. A Santinha se atacou com uma vertigem de altura. (O Coveiro faz outra vez o sinal característico para que o Superintendente aproxime seu ouvido) Pode falar daí mesmo.


COVEIRO  O padre. O padre cercava a mocinha.


SUPER  O padre matou a Santinha?!..


COVEIRO  Não! O chão.


SUPER  Chão? Que chão?


COVEIRO  Este aqui. Que fica de baixo do cemitério, da rua, das casa da rua, da cidade


toda; da igreja de onde se jogou, de baixo de todo mundo. O senhor precisa aprender a


pensar.


SUPER  E o senhor vai me ensinar?


COVEIRO  Por que não? Eu aprendi.


SUPER  Mesmo? Isso eu quero saber: com quem?


COVEIRO  O senhor já ouviu fala de Shylock Holmes?


SUPER  Sherlock...


COVEIRO  O que foi que eu disse?


SUPER  Ele ensinou o senhor a pensar?


COVEIRO  Não em carne e osso.


SUPER  Tinha coisa mais importante pra fazer?


COVEIRO  Ele já morreu. O senhor anda mal informado, hein?..


SUPER  E o que foi que o senhor aprendeu com ele?


COVEIRO  Shylock Holmes era craque na abdução.


SUPER  O que é isso?


COVEIRO  É o que eu digo: não sei pra que esse pessoal vai pra escola. Por exemplo: o


senhor chegou aqui; eu não sabia quem era o senhor; mas, pelas coisas que o senhor falou –


e pelas que não falou  eu abduzi que o senhor era o novo superintendente dos Coveiros.


SUPER  Abduziu certo.


COVEIRO  O Shylock usava muitos truques como esse. Às vezes pensava às avessas para


desembaraçar as confusões onde ele se metia. Quer ver? No caso da Santinha, vamos dizer,


só como exemplo, no caso, o que temos de imaginar não é a moça indo na direção do


chão...


SUPER ...mas o chão indo na direção da moça?..


COVEIRO  Muito justo.


SUPER  Logo, o chão matou a moça.


COVEIRO  Elemental.


SUPER  Seu Abelardo e Antenor: estou sentindo que a sua cara vai se jogar direto na


minha mão, já já, está acompanhando?


COVEIRO  Sem digressões, por favor.


SUPER  O senhor está me enrolando desde que eu cheguei.


COVEIRO  Sim, senhor.


SUPER  Acabou.


COVEIRO  Muito justo.


SUPER  O senhor vai exumar a Santinha e é agora mesmo.


COVEIRO  Não. Eu não vou.


SUPER  Como assim, não vai?!


COVEIRO  Não vou fazer o que senhor manda.


SUPER  E posso saber por quê?


COVEIRO  Nós estamos em greve.


SUPER  Nós, quem?


COVEIRO  O Sincova.


SUPER  O que é isso?!


COVEIRO  O Sindicato dos Coveiros.


SUPER  Não sabia que havia um sindicato só dos Coveiros.


COVEIRO  Não tinha.


SUPER  E foi criado quando?


COVEIRO  Faz pouco tempo.


SUPER  Quanto pouco tempo?


COVEIRO  Muito pouco tempo. Foi uma vitória nossa.


SUPER  Seus vagabundos, vocês querem é...


COVEIRO  Nós estamos pensando em levar nossas reivindicações ao prefeito.


SUPER  Estou disposto a negociar. O senhor sabe que a minha gestão sempre tem se


pautado pelo diálogo. Sempre!


COVEIRO  É verdade; sempre, desde hoje de manhã.


SUPER  Quem é o presidente do Sincova?


COVEIRO  Eu.


SUPER  Tem quantos filiados o Sincova?


COVEIRO  Eu.


SUPER  Mmm.


COVEIRO  Assim a mobilização é mais rápida.


SUPER  Quando é que essa greve foi votada?


COVEIRO Faz pouco tempo.


SUPER  Muito pouco tempo?


COVEIRO  Muito mesmo. Mas a paralizia tem tempo indetermindao para terminar.


SUPER  E qual é o motivo da greve, posso saber?


COVEIRO  A lista para a negociação é bem grande.


SUPER  Me adiante um dos pontos, apenas.


COVEIRO  O uniforme.


SUPER  Mas eu já disse que quero mudar os uniformes!


COVEIRO  Mas nós não.


SUPER  Não?


COVEIRO  De jeito nenhum.


SUPER  E isso é motivo para entrar em greve?


COVEIRO  Nós estamos muito bem com os nossos jalecos. Nós sabemos o que o senhor


pretende fazer. Vai ser como foi com os carteiros: roupinhas claras e alegres, como se eles


só viessem com notícias boas. Má notícia faz parte da vida! Não, senhor. Nós temos


orgulho do que somos: somos o fim... da viagem, o fim da picada  do pó ao pó.


SUPER  Seu Abelardo e Antenor...


COVEIRO  Meu pai era Coveiro. E o pai do meu pai (interrompe-se)... Bom, o pai do


meu pai não era, mas cavou muito poço artesiano na vida.


SUPER  Quais são suas outras reinvidicações?..


COVEIRO  Isso é tradição! Minha profissão vem desde Cain!


SUPER  Cain?!


COVEIRO  Quem o senhor acha que enterrou Abel?


SUPER  Adão?..


COVEIRO  Adão perdia o tempo fazendo jardinagem. Coveiro é trabalho de homem!


SUPER  Está bem, não precisa se exaltar. Só quero saber quais são as outras


reinvidicações da categoria.


COVEIRO  Muitas.


SUPER  Quais?


COVEIRO  Preciso consultar a categoria.


SUPER  Ótimo. Por que o senhor não faz isso?


COVEIRO  Nós vamos marcar uma assembléia e...


SUPER  Agora.


COVEIRO  Agora?


SUPER  Agora. Enquanto a superintendência decide se aceita as denúncias a respeito de


um dos seus filiados.


COVEIRO  Quem?


SUPER  Vão deliberando, vão deliberando...(O Superintendente vasculha suas anotações)


COVEIRO  Se um de nós está em perigo, todos nós estamos. Nós vamos suspender a


assembléia até informações mais esclarecentes.


SUPER  Não se preocupe, eu forneço já: o senhor Abelardo e Antenor Nogueira.


COVEIRO  Nogueirasss.


SUPER  Conhece?


COVEIRO  Um dos nossos.


SUEPER  Esse... elemento... ao que parece, não contente com a tradicional função de


Coveiro, tem oferecido um dito “serviço opcional” às famílias enlutadas...


COVEIRO  A saber..?


SUPER (Conferindo sua anotações)  Fotos dos defuntos com anjinhos... Eu vi o telão. É


bem feito. Estou com uma foto aqui, também: a última foto entre os familiares  não deixa


de ser emocionante. Como é que o senhor faz para deixar o defunto em pé?


COVEIRO  Não é difícil. O rigor mortis.


SUPER  Mmm?


COVEIRO  É latim. Significa que a gente fica duro feito um pau, depois de um tempo morto. Como num casamento, quando o elemento tem de botar terno e gravata; daí rigor mortis. Elemental. Conheço minha profissão.


SUPER (Apontando para a foto)  Estava meio passado, hein?


COVEIRO (Confere)  O finado é o outro.


SUPER  Mesmo?


COVEIRO  Nos meus anos de profissão já vi piores. Estou falando dos familiares.


(O Superintendente guarda a fotografia antes que o Coveiro lance mão)


SUPER (De volta a suas anotações)  Outro dos serviços opicionais... está


me acompanhando?... Não sei se entendi bem, um alarme, um detector de enterrados-vivos... Como é isso?!


COVEIRO  Tecnologia avançada. Hoje em dia, isso é oferecido nos melhores cemitérios.


SUPER  E como é nos piores?


COVEIRO  Um arame e um sininho. Se estiver vivo puxa.


SUPER  Mmm. E quem estaria por perto para ouvir?..


COVEIRO  O preço cobria a taxa para a vigilância dos quinze dias de... estada do finado.


SUPER  E depois?


COVEIRO  Depois de quinze dias?! Depois de quinze dias debaixo da terra?!?! Como o


senhor é ingênio... Depois de quinze dias... (Rapidinho) Uma pequena taxa semestral de


manutenção.


SUPER  Esse seu companheiro de sindicato me parece bem encrencado.


COVEIRO  Parece.


SUPER  O Sincova está ciente disso?


COVEIRO  Muito justo: ciente demais.


SUPER  Não, não. Nunca é demais. Essas acusações todas já seriam o suficiente para


mandar qualquer Coveiro para a própria cova. Mas parece que o Coveiro em questão


também tem recebido, por motivos os mais variados, de zeladoria a fornecimento de


informações turísticas, gordas gorjetas  que, aliás, não divide com ninguém, segundo me


reclamaram  justamente dos romeiros que visitam a tal Tumba da Santinha Milagrosa. O


que, o senhor bem sabe, é completamente contra o regulamento. É claro que podemos


negociar. Ninguém quer um desses eternos inquéritos administrativos aqui.


COVEIRO  Ninguém. O Sincova está pronto pra negociar. Qualquer coisa.


SUPER  A superintendência só negocia depois da volta ao trabalho. (Silêncio) O senhor não vai dizer nada? (Silêncio. O Coveiro permanece imóvel e impassível) Aconteceu alguma coisa?


COVEIRO  Um minuto. A assembléia terminou. Nós voltamos ao trabalho.


SUPER  Fico satisfeito.


COVEIRO  Eu também. Nada como uma boa paralizia. Me sinto novo, pronto para o


trabalho. Por onde nós começamos?


SUPER  Eu não vou gastar mais nenhuma palavra, está acompanhando? Ou o senhor tira


essa tal santinha desse jazigo ou vai pra rua. Junto com a ossada da moça.


COVEIRO  O Sincova não admite...


SUPER ... e é pra já!


COVEIRO  Está bem... Está bem. (O Coveiro vai até sua maleta de ferramentas e apanha uma marreta) Não estou acostumado a ser digredido assim. Conheço meus direitos e deveres. E é meu dever lembrar que o senhor vai destruir uma obra de arte: o Túmulo da Santinha. Por que o senhor sabe que eu vou ter de acabar com esta lápide milenar...


SUPER  Não tem nem cem anos.


COVEIRO  Um patrimônio desta cidade. Veio até professor da Universidade para...


SUPER  Vai demorar muito com isso?


COVEIRO  Não senhor. Conheço meu trabalho. (O Coveiro se apronta para golpear a lápide. Faz suspense. O Superintendente disfarça uma certa tensão. E, de repente...) O senhor tem certeza?


SUPER  Seu Abelardo e Antenor!


COVEIRO  Olhe só esse mármore escarrara...


SUPER  Enfie logo a marreta.


COVEIRO  É pra já... É pra já. (Novamente, o Coveiro se apronta para golpear a lápide. Faz suspense. Novamente, o Superintendente disfarça uma certa tensão. E, novamente...)


Olhe lá que o senhor não sabe o que pode encontrar aí dentro.


SUPER  Eu adoraria se encontrasse o senhor!


COVEIRO  O senhor não está entendendo. A Santinha se matou. O antigos enfiavam uma


estaca no coração de quem fazia isso, sabia? Pode ser uma visão muito forte para o senhor.


SUPER  Depois de gastar uma tarde com o senhor eu posso agüentar qualquer coisa. Em


frente!


COVEIRO  O senhor arca com as consequências.


SUPER  Vai, vai... (Pela terceira vez, o Coveiro se apronta para golpear a lápide. Faz suspense. Pela terceira vez, o Superintendente disfarça uma certa tensão. E, pela terceira vez...) Por que será eles faziam isso?


SUPER  Eles quem, seu Abelardo e Antenor...


COVEIRO  Os antigos. Enfiar uma estaca no peito de mocinha feito a Santinha.


SUPER  Se fosse o senhor eu poderia entender fácil, fácil.


COVEIRO  É de atravessar o coração. (Desta vez parece a definitiva: o Coveiro levanta a marreta e... soa a sirene. O cemitério vai fechar) Bom. Acho que fica pra amanhã.


(O Coveiro abandona a marreta, e vai-se preparando para ir embora, sob o olhar perplexo do Superintendente) Muito justo: o cemitério tem de fechar uma hora dessas, não é? Bem verdade que ainda está claro. (Sem que o Coveiro perceba, o Superintendente apanha a marreta. Seu olhar está turvo de raiva) Deve ser o horário de verão. O senhor acha que essas coisas (Interrompe-se ao ver a marreta na mão do Superintendente)...


O que é isso?.. O senhor não tem prática com essa coisas. É melhor... (Interrompendo a fala do Coveiro, o Superintendente solta um verdadeiro grito de guerra e salta sobre a lápide da Tumba da Santinha, marretando-a) Isso é uma doidice. O senhor não pode fazer uma coisa dessas, não é filiado ao Sincova... Está me ouvindo?! (Sem dar atenção ao que diz o Coveiro, o Superintendente começa a destruir a lápide, demonstrando verdadeiro prazer pelos seus atos)


SUPER  Agora eu vou mostrar quem manda aqui!


COVEIRO  Minha Santinha da Tumba!


SUPER  Quem manda aqui!.. (Até que, de repente, estaca).


COVEIRO  Ainda bem que o senhor ouviu a voz da razão. Eu já ia...


SUPER  Parece... Parece que está vazio...


COVEIRO  Me dá essa marreta. (O Coveiro arranca a marreta da mão do Superintendente, que se afasta atônito, e continua a botar a lápide abaixo) Isto não é serviço pra amador. (O ritmo com que o Coveiro vai botando abaixo a lápide cai aos poucos até que o cemitério mergulha em um patético silêncio) Está vazia. Vazia.


SUPER  A Tumba da Santinha não tem santinha alguma. (O silêncio continua a pesar. Tanto o Superintendente quanto o Coveiro, cada um em seu tempo, vão arrumando um lugar para sentar, exaustos que estão. Pausa) Perfeitamente. (Aos poucos, o Superintendente vai deixando escapar um sorriso um tanto amargo, enquanto repete...)


Perfeitamente. Perfeitamente. Perfeitamente... (O Coveiro se afasta um pouco, estranhando o estado em que se encontra o Superintendente. Que continua) Perfeitamente... perfeitamente, perfeitamente...


COVEIRO  O senhor está passando bem?


SUPER  Perfeitamente.


COVEIRO  Berilozzz. (O Superintendente tem um sobressalto) Descobri!


SUPER (Recompondo-se de seu transe) Descobriu o quê?..


COVEIRO  Seu nome  o jeito certo de falar seu nome. Muito justo: Berilozzz. Berilozzz,


como o meu: Nogueirasss.


SUPER  Berilo. Meu nome é Berilo. Que invenção é essa agora de Berilozzz?!!


COVEIRO  Berilo “com ‘z’”: Berilozzz. Berilozzzzzz. Bonito.


SUPER  Tem um pedaço de papel? Você vai entender, vou escrever meu nome.


COVEIRO  Pra quê?


SUPER  Você não sabe ler?


COVEIRO  Sabia. Esqueci. Só sei ler datas. Das lápides.


SUPER  E os pedidos das placas?


COVEIRO  Os romeiros me contam. Eles precisam de alguém para ouvir a história deles.


SUPER  Serviço opcional?


COVEIRO  Está incluído na gorjeta padrão. Muito justo. Nós estabelecemos um piso, seu


Berilozzz.


SUPER  Acredite em mim: meu Berilo não tem “z”.


COVEIRO  Desculpe.


SUPER  Não se preocupe, meu nome sempre deu dessas confusões. (Pensa, e deixa


escapar) Será que foi por isso que o meu pedido não foi atendido?


COVEIRO  Nem precisa dizer: o senhor não queria ser transferido para este cemitério...


SUPER  Eu pedi para vir para cá.


COVEIRO  Pediu?!


SUPER  Essa desgraça eu alcancei.


COVEIRO  E rezou por isso?!


SUPER  Não... outra coisa...mais...impossível.


COVEIRO  Perdeu a chance: devia ter pedido pra Santinha.


SUPER  Foi o que eu fiz.


COVEIRO  Eu sabia que conhecia o senhor de outro lugar.


SUPER  É, eu andei por aqui muito tempo antes de ser designado superintendente...


COVEIRO  Daí também, mas... A menina! A menina do 5629! Aquela foto sempre foi


das minhas preferidas. A menininha... Eu sabia que sua cara me lembrava alguém...


(Tempo) Pai?


SUPER  Pai.


COVEIRO  Vocês são muito parecidos. Ela era muito bonitinha. Uma pena que não fui eu que cuidei do enterro... Tinha feito serviço caprichado.


SUPER  Obrigado assim mesmo.


COVEIRO  Acidente?


SUPER  Sem sombra de dúvida: o tanque de lavar roupa caiu em cima dela no quintal.


COVEIRO  Na hora?


SUPER Ficou uns dias no hospital.


COVEIRO  Tinha chance?


SUPER  Dei o melhor: hospital particular. Estou pagando até hoje. Minha mulher exigiu. O médico disse que era bobagem, dinheiro jogado fora. Foi muito sincero. E acho que fez o que tinha que fazer. Minha mulher chorou três dias. Três dias não me disse uma palavra. Depois foi embora. Nunca mais voltou. Isso faz dois anos.


COVEIRO  É dureza, não é? Deve ser. Faço força pra saber como é, mas não sei. Minha família foi indo aos poucos, enquanto eu ainda era garoto. Os padres que andam aqui pelo cemitério meio que me criaram. Padres... Dizem que são. Eu sei que não, que é só pra ganhar um troco. Às vezes parece que até acreditam. Até que eu queria casar. Mas, Coveiro... Muito justo: Coveiro não consegue nem comprar a prazo. Os romeiros da Santinha eram uma espécie de primos..


SUPER  Estamos no mesmo barco. A Santinha deixou os dois na mão.


COVEIRO  O que é que a gente faz com a tumba dela?


SUPER  Bota abaixo. A vida continua. E as mortes também. O cemitério continua sem


espaço, está acompanhando? O rodízio dos restos mortais precisa começar. Até minha filha


vai entrar na dança, daqui há um ano.


COVEIRO  Mas... precisa começar pela Tumba da Santinha?..


SUPER  Não tem Santinha alguma, seu Abelardo...


COVEIRO  O senhor já pensou nos romeiros, amanhã, quando chegarem?.. O que vai ser?


SUPER  Vai ser melhor pra eles. Estava na hora de saberem que estavam sendo


enganados.


COVEIRO  Não, seu Berilozzz. A Santinha era mesmo milagreira. O senhor sabe que eu


não acredito em nada, mas... eu vi. Eu vi!


SUPER  Viu o quê?..


COVEIRO  Solteirona arranjando casamento, vagabundo entrando na faculdade, pé


rapado comprando fusca...


SUPER  E a minha filha? E a minha filha, seu Abelardo... e Antenor?..


COVEIRO  Muito justo. Acho que... Acho que...(Tempo) Bom, eu acho que...


Não era o departamento dela. Vício profissional. Era uma mocinha, nada de tão ruim tinha


ainda acontecido na vida dela. E, pelo jeito, não aconteceu mesmo: nada. Que fim levou a


Santinha, não é mesmo?


SUPER  Bota abaixo.


COVEIRO  O que é que os romeiros vão fazer de agora em diante?


SUPER  Eles descobrem o que fazer. Como eu.


COVEIRO  Seu Berilozzz... Gente que perde um braço, um filho, a vista, a saúde, ganham


uma espécie de... forteza de espírito, uma dignidade esquisita, tem de onde arrumar fôlego


pra continuar na luta. Mas gente como esses romeiros... Eles só estão pedindo um trocado


da vida.


SUPER  Bota abaixo...


COVEIRO  Está bem, está bem... Amanhã isto aqui vai ser uma loucura. Um tal de ter de


responder pra onde mandaram a Santinha...


SUPER  Não existe santinha!


COVEIRO  É o senhor que vai dizer isso praquele bando de romeiro?


SUPER  Portaria do prefeito.


COVEIRO  O pessoal é pobre, mas vem de montão. De montão, sabia? Loucos por uma


atenção especial. (Tempo) Especial, sabia?..


SUPER  O senhor deve faturar bem.


COVEIRO  Dá pra dois. Se um amigo  estou dizendo um amigo  desses que é do peito,


pra quem a gente pode contar uma coisa que a gente não conta pra ninguém... Se um amigo


estiver precisando de ajuda  às vezes acontece: pensão de mulher que foi embora, conta de


hospital... Se um amigo desses estiver...


SUPER  Um amigo aceita.


COVEIRO  Aceita? Aceita, o quê?


SUPER  Um amigo aceita o que um amigo oferece.


COVEIRO  Assim, tão rápido.


SUPER  Ou será que um amigo não estava oferecendo de coração?


COVEIRO  De coração! De coração...


SUPER  De coração, o quê? Uns 50%?


COVEIRO  Do bruto?!


SUPER  Quais são os gastos, um amigo pode saber?


COVEIRO  Um amigo nem pode imaginar.


SUPER  Quanto um amigo pode pedir?


COVEIRO  Dez por cento.


SUPER  Trinta.


COVEIRO  Vinte.


SUPER  Bota abaixo.


COVEIRO  Vinte! Vinte... Para um amigo assim, quem pode negar qualquer coisa? Mas


só até um amigo pagar as dívidas.


SUPER  Bom, depois a gente vê. (O Superintendente olha para a tumba)


Olha só o estrago. Como é? Como é que a gente resolve isso? Como é?


COVEIRO  Isso não é problema. Eu tenho uma lápide de mármore escarrara guardada.


Era pra uma emergência. Chegou. Vou precisar de ajuda. Sócio.


SUPER  Sócio?!


COVEIRO  Elemental. Nós vamos virar a noite fazendo o serviço.


SUPER  É... É. Perfeitamente. O que eu que tenho pra fazer em casa?


COVEIRO  Encontrar um amigo é encontrar um tesouro...(O Coveiro se entretém organizando suas ferramentas. E, distraído, cantarola, feliz) “Quem descerrar (Respira) ‘ar-ar-ar’ a cortina/ da vida da bailarina (Respira) ‘ar-ar-ar’/ Há de ver (Respira) ‘er-er-er’/ cheio de horrorrrr”...(No seu momento mais inspirado, percebe que o Superintendente olha para a Tumba da Santinha, perdido em pensamentos) O que o senhor acha que aconteceu com a Santinha?


SUPER  Foi transferida pra outro cemitério.


COVEIRO  Ou nem foi enterrada.


SUPER  Mmm?


COVEIRO  Fugiu com o padre.


SUPER  Quem sabe não está viva até hoje?.


COVEIRO  Estava pensando: quando for da vez da sua filha, que dizer, no rodízio, essas


coisas... A gente pode trazer a menina pra cá. Ninguém vai nem perceber que o nome


mudou, quer dizer... apareceu.


SUPER  Será que os milagres continuam?


COVEIRO  Continuam.


SUPER  E... e a lápide? Vai ter de quebrar de novo.


COVEIRO  Dá pra arrumar outra. Pra dizer a verdade, eu tenho umas lápides de mámore


escarrara guardadas pra umas emergências. Vamos andando. Ainda precisamos botar um


ponto de luz aqui e...


SUPER  Seu Abelardo e Antenor... O senhor sabe quem faz casas mais duradouras que


pedreiro, armador ou carpinteiro?


COVEIRO  O Coveiro. Porque a casa que o Coveiro constrói dura até o dia do juízo final!


(Os dois caem na gargalhada)


SUPER  Essa era mesmo velha, hein?..


COVEIRO  Nada como as velhas piadas...






Pano.


São Paulo, setembro de 1996.






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