O altar do incenso
de Wilson Sayão
Personagens:
Isaque - cerca de 60 anos
Rebeca - cerca de 60 anos
Ele
Cenário: sala de uma casa antiga, numa espécie de vila. Móveis em estilo colonial. Numa das paredes, retratos dos protagonistas quando tinham vinte e poucos anos, ladeando um de ambos no dia do casamento. Um relógio toca um trecho de música a cada 15 minutos, até que se ouve a melodia inteira (Adágio da Sonata ao Luar, de Beethoven) de hora em hora. Após uns 15 minutos, o personagem Ele poderá ser visto, em dois ou três momentos, rondando a casa, vestindo fantasias como as de Bate-Bola, Morcego, Diabo ou qualquer outra que tenha esse caráter insólito de alegria e ameaça, de festa e morte.
“Farás também um altar para queimares nele o incenso; de madeira de acácia o farás. Arão queimará sobre ele o incenso aromático; cada manhã, quando preparar as lâmpadas, o queimará. Quando ao crepúsculo da tarde, acender as lâmpadas, o queimará; será incenso contínuo perante o Senhor pelas vossas gerações”.
(Êxodo, 30.1-7-8)
Prólogo
(Ouve-se um trecho de A força do destino, de Verdi. Voz de locutor de programa jornalístico de rádio, daqueles bem populares)
Voz - Um estranho assaltante está deixando em pânico os moradores de uma vila, na rua José Bonifácio, em Todos os Santos. O misterioso bandido apareceu em duas casas no espaço de um mês, sendo que na primeira, massacrou uma família inteira, adormecida. Já na segunda residência, o louco-fantasiado- como vem sendo chamado o bandido- apenas amarrou e amordaçou os moradores em volta da mesa de jantar e sentou para comer e beber à vontade. Em seguida, de barriga cheia , deitou para fazer a sesta. Uma hora e meia depois, levantou e despediu-se de seus involuntários anfitriões beijando todos na testa. Os moradores da vila, apavorados, estão pedindo às autoridades uma patrulha permanente no local para que possam sentir-se em segurança e dormir tranqüilos.
Cena 1
(Ao som de Casinha Pequenina, de Ernani Braga, na voz de Bidu Sayão, abre-se a cortina . Madrugada. Na sala, Isaque, de pijama, e Rebeca, de camisola. Ele executa um trabalho qualquer, de escrita à mesa. Ela parece meio perdida)
Rebeca - Eu não estou agüentando, Isaque.
Isaque - O quê?
Rebeca - A vida.
Isaque - Vai fazer alguma coisa.
Rebeca - Já fiz tudo.
Isaque - Já catou o feijão?
Rebeca - Já.
Isaque - Quem mandou? Eu já não disse pra você guardar tudo pra fazer a essa hora?
Rebeca - O que eu admiro em você, Isaque, é essa certeza que você tem de que a gente sofre só porque é burro, só porque cometeu não sei que erro.
Isaque - Catar feijão é a atividade ideal pra você a essa hora.
Rebeca - Agora é tarde. Inês e eu estamos mortas. (Pausa) Tem horas que eu me sinto tão preparada para recebê-lo...
Isaque - Agora, por exemplo.
Rebeca - Não abriria a boca, não arregalaria os olhos, e acho que nem o meu coração bateria mais depressa.
Isaque - Então, que que tá esperando pra ir se deitar?
Rebeca - Tenho medo de que ele esteja embaixo da cama, tape a minha boca, me dê uma gravata e você nem me escute me debatendo.
Isaque - Não tem ninguém embaixo da cama.
Rebeca - Ele pode estar encolhido atrás das malas...ou ter se enfiado dentro.
Isaque - Já disse que olhei tudo. Pode ir deitar sossegada.
Rebeca - Não se ofenda, Isaque. Mas não basta.
Isaque - Só basto para o seu sustento.
Rebeca - Também, eu como feito um passarinho...não ando bem vestida, não vou a lugar nenhum, não tenho jóias...
Isaque - E eu? Tenho concubinas e conversível?
Rebeca - Quer um leitinho morno?
Isaque - Você me oferece morno e traz fervendo.
Rebeca - É que eu gosto de ver você derramar no pires e beber feito um gatinho.
Isaque - Não sei o que é que você ganha com essa teimosia.
Rebeca - Ganhar eu não ganho nada sendo coisa nenhuma do que eu sou mas ser o que os outros querem que eu seja vai me fazer perder meu precioso colar de chapinhas.
Isaque - Besteira é essa ?
Rebeca - Meu único bem : minha singularidade.
Isaque - Se não estiver morno, eu não tomo, hem?
Rebeca (Indo para a cozinha )- Tá bem, querido. (Sai. Isaque espia embaixo da mesa, do sofá; certifica-se de que a porta da rua está trancada, indo depois até a janela, ficando oculto pela cortina. Quando Rebeca surge com o leite, não o vê e sobressalta-se. Depara com a cortina movendo-se)
Rebeca - Isaque...Isaque... (Isaque surge de trás da cortina)
Isaque - Que foi? (Quando o vê, Rebeca grita) Que isso, escandalosa ?
Rebeca - O que era que você estava fazendo ali?
Isaque - Vendo se estava tudo bem fechado. (Retoma seu trabalho à mesa)
Rebeca - Você escutou algum barulho...
Isaque - Escutei porra nenhuma.
Rebeca - Escutou sim. Você quer me enganar. Não quer me botar nervosa. Mais do que eu já ando, não posso ficar, Isaque...(Põe a xícara na mesa)
Isaque - Não parece.
Rebeca - Não pareço? Eu nem durmo direito. Só cochilo. E apenas o tempo necessário pra me ver beijando alguém na boca.
Isaque - Besteira é essa ?
Rebeca - Já estou pra te contar há muito tempo, Isaque.
Isaque - Contar o quê?
Rebeca - Não sei quem é que eu estou beijando. Não sei se é você. Você não acha isso grave?
Isaque - Ah, Bebeca, vai fundo!
Rebeca - Fico tão impressionada! Só vejo a mim. Sei que sou eu, porque a mim eu reconheço até no escuro. Mas o outro vulto...queria tanto que fosse você!
Isaque - Ah, sem essa, Bebequinha! Eu sou o candidato menos provável.
Rebeca - Você é tão franco, Isaque! Às vezes eu tenho vontade de escrever um livro chamado "Porque me ufano de meu Isaque".
Isaque (Vê a xícara) - Me dá logo essa merda, porra!
Rebeca - Ih, Zaque, desculpe... A essa altura já está gelado!
Isaque - Eu tomo assim mesmo. Me dá.
Rebeca - De jeito nenhum, amor de minha vida. Eu esquento com muito prazer outra vez. (Sai para a cozinha. Isaque vai até uma porta à direita, abre-a, acende a luz do cômodo, perscruta-o. Apaga a luz, fecha a porta e volta para seu lugar à mesa. Entra Rebeca com o leite, entrega a Isaque)
Isaque (Após dar um gole) - Ah, desgraçada! Tá quente, hem? Meu céu da boca já parece um cu despregado!
Rebeca (Apalpando um caroço embaixo do braço esquerdo) - Isaque, você sabe de que eu acho que estou mais cansada ?
Isaque - Você já me disse.
Rebeca - Será que todo mundo está cansado assim da vida? Eu queria conhecer outras pessoas pra ver se...
Isaque - Por que você não faz logo esse exame de uma vez?
Rebeca - Tudo demora tanto! Já pensou como eu não ia ficar entre o exame e o resultado?
Isaque - Melhor saber logo do que ficar aí se apalpando.
Rebeca - Qualquer dia eu vou.
Isaque - Qualquer dia...
Rebeca - Adiei pra qualquer dia tanto projeto bom na minha vida...Por que logo esse eu vou me obrigar a cumprir? É isso mesmo. Acabei de decidir: eu nunca vou fazer esse exame. Assim eu me consolo e vingo os outros qualquer dia que viraram nunca.
Isaque - Você é que sabe. Cada um sabe o que faz com seu caroço.
Rebeca - Que que você acha que ele vai fazer com a gente, Isaque?
Isaque - O importante é que ele não nos encontre indefesos, dormindo.
Rebeca - Eu acho que preferia estar dormindo. Assim com a luz acesa, pode ser que ele nem tente nunca.
Isaque - Vai atrás...
Rebeca - Depois, não é só a nossa casa que falta. Ele pode ser preso antes de chegar até aqui.
Isaque - Você não tem vergonha, não, de ainda falar em Polícia, numa época dessa, de impunidade e safadeza?
Rebeca - Quais as outras casas que faltam ?
Isaque - Daquele casal com o recém-nascido, do capitão e daquela fiscal do Trabalho.
Rebeca - Você acha que ainda não é hoje ?
Isaque - Sei lá!
Rebeca - Quem sabe ele nos vê passar, não é? E até simpatiza com a gente...lembra dos pais, da infância...
Isaque - Ah, deixa de pieguice, sim? Ele deve ter sido um desses meninos de rua, abandonados pelos pais,cheiradores de cola, da Candelária. Se nós lembrarmos os pais dele, aí mesmo é que estamos fodidos.
Rebeca - Você acha que ele chegou a dormir na rua?
Isaque - Com certeza. Voce não vê que ele pega sempre as pessoas dormindo ou então deita pra dormir? Ele tem fixação em cama, lençol, travesseiro...
Rebeca - Coitadinho! Nesse ponto eu dou razão a ele. Eu também se dormisse na rua, ia ser uma peste muito pior do que ele. (Ouve-se o som musical do relógio. O personagem Ele pode ser visto rondando a casa)
Isaque - Ah, por favor, sim, Rebeca? Só falta agora você defender esse desvairado...
Rebeca - Eu gosto tanto de conversar com você, Isaque. Não fosse essa...ameaça...o tempo todo, a nossa felicidade seria perfeita, você não acha? Às vezes eu tenho a impressão de que estou num piquenique, olhando pro céu toda hora, com medo que chova e estrague a nossa festa. Com medo de uivos e relâmpagos que a luz da manhã tem ridicularizado sempre.
Isaque - Ah, vai dormir, vai, Rebeca, que o teu mal - e dos outros maus poetas - é falta do que fazer e insônia.
Rebeca - Não quero ficar sozinha lá dentro.
Isaque - Você me atrapalha aí tagarelando. Você é muito prolixa...uma coisinha rende um assunto que não acaba. Que que você pensa que eu estou fazendo aqui?
Rebeca - Escrevendo várias vezes e de diferentes maneiras o seu nome.
Isaque - Andou bisbilhotando, é? Mau caráter!
Rebeca - Fiquei muito preocupada, Isaque...
Isaque - Preocupada com quê, demagoga? Cuida da tua vida!
Rebeca - Que você talvez esteja ficando senil ou esclerosado ou qualquer coisa assim.
Isaque - Esclerosado tá o teu rabo, que esqueceu que serve pra outra coisa além de fazer cocô.
Rebeca - Isso é hora de você me pedir...isso, Isaque? Francamente!
Isaque - Francamente digo eu...
Rebeca - O que é isso: "Isaque..Isaac...Isac...Isak...?" Fiquei tão impressionada!
Isaque - É uma coisa muito séria e muito importante.
Rebeca - É difícil acreditar. Encher folhas e folhas com o seu próprio nome, feito a última página de um caderno escolar...
Isaque - Pense o que quiser. Eu não vou me dar o trabalho de te explicar.
Rebeca - Por favor, Isaque...Eu queria tanto que você me explicasse...Por favor! Você sabe como eu gosto de compreender as pessoas e as coisas... E você sempre foi o meu professor preferido.Você explica tudo tão bem..
Isaque - Não vale a pena.
Rebeca - Vale sim. Diariamente a gente faz coisas tão mais inúteis e menos nobres do que tentar compreender melhor uns aos outros...
Isaque - Eu estava esgotando todas as possibilidades de tradução gráfica do som do meu nome.
Rebeca - Como assim ?
Isaque - Cada forma equivale a uma personalidade e um destino que eu podia ter tido, comprende ?
Rebeca - Como assim ?
Isaque - Tem sido uma intensa experiência emocional e psicológica.
Rebeca - É, meu filho ?
Isaque - Eu me sinto agora ainda mais convencido da minha multiplicidade. Nessas madrugadas - só pra você ter uma idéia - eu fui um maestro, um pastor de ovelhas, um romano que debochou de Cristo, um romano que se apiedou de Cristo, um turista excitado e ridículo, um filósofo que disse apenas uma frase e ficou célebre...
Rebeca - Que lindo, Isaque! Estou tão comovida! Eu sou mulher de vários homens diferentes e não sabia! Que maravilha! E o que é melhor: sem trair você, meu querido!
Isaque - "Nem a vida nem a morte são o que até hoje delas se disse".
Rebeca - Agora quando eu não tiver o que fazer assim de madrugada, vou brincar disso também, você deixa?
Isaque - Ah, vai amolar outro. (Recolhe seus papéis e dirige-se para o quarto)
Rebeca - Êi, maestro Isaque Karabitchevski! Não vai deitar, não...Fica aqui conversando comigo...
Isaque - Vai debochar da puta que te pariu!
Rebeca - Eu debochar de você , marido? Você sabe que nós somos citados na Bíblia?
Isaque - Besteira é essa?
Rebeca - É sim...no Velho Testamento! Nós, não... Outro Isaque e outra Rebeca, mas isso não faz com que você se sinta antigo e eterno? Eu já tenho essa sensação há muito tempo...você não ?
Isaque - Não estou com sono nenhum.
Rebeca - Mas não podemos ficar aqui conversando a vida inteira, enquanto não acontece alguma coisa. Se essas nossas vigílias fossem uma peça de teatro, por exemplo, a platéia não nos perdoaria por estarmos aqui tagarelando assim sem rumo. Eu sei porque fui muito ao teatro quando era moça, e reparei que todas as peças se pareciam, eram assim feito um coito: os jogos preliminares iam esquentando até explodir no orgasmo.
Isaque - O que você precisa é descobrir também uma atividade, um ritual secreto qualquer em vez de invejar e bisbilhotar o dos outros.
Rebeca - Vou pensar nisso.
Isaque - Ué, vai dormir?
Rebeca - Vou...já está claro o dia. (Entra no quarto. Isaque pega uma folha de papel. A princípio, êle lê seu poema, mas depois abandona o papel)
Isaque - Isaac... Isac...Isak...Isaac viu a uva. Rebeca não viu a uva que Isaque escondeu na compoteira. Isaque está com fome. Rebeca fez para Isaque uma sopa de vidro e de mel. Rebeca tira comida do dente e come. Ihzaque...Issaque...Isssake...Isaque queria ficar viúvo e se amigar - casar de novo, nunca ! - com uma linda jovem sem família e muda, de peitinhos duros e duas grutas bem escuras...Para Isaque se esconder. Ih, Zaque, Ihhhhhh, Zaque...Isaque está sem tesão. Rebeca - Dalila cortou o cabelo. Rebeca -Dalila - Salomé cortou a cabeça e o culhão de Isaque - João Batista - Sansão. Isaque...Isaque...Isaque...Isaque está sem sono. Isaque está sem vontade de viver. Isaque está com medo. Medo de quê, bobão? Da mesa da sala, onde parece que está vendo um caixão. Medo de quê, bobão? Da mosca tonta dentro da cristaleira, que parece a Morte brincando de bailarina. Medo de quê, palhação? Do ladrão, do ladrão, Laaaadrrrãoooooo! Isaque está muito aflito. Isaque está muito triste. Isaque está muito só. Isaque está mais só do que esse guarda-noturno que pelo menos tem seu capote, seu apito, sua noite e seu trabalho. Isaque só tem Rebeca. Rebeca parece uma rainha de baralho. Isaque não tem porra nenhuma. Nem um cachorro, um papagaio, um filho...Eu não!...Pra quê que eu quero filho? Pelo menos pra xingar e pra culpar por ter perdido a vida e o bonde. (Escurecimento ao som musical do relógio. Sombra do personagem Ele na janela)
Cena 2
(Isaque escreve à mesa. Rebeca não consegue fazer nada. É a madrugada seguinte)
Rebeca - Me sinto tão idiota às vezes! Por que a nossa tem que ser a próxima? Quem garante que ele vai voltar?
Isaque - Você não tem vergonha, não, dessa ingenuidade, desse otimismo, no meio dessa Sodoma e Gomorra ?
Rebeca - Não. Nunca tive vergonha de nada do que eu sinto nem do que eu sou, de nenhum pedaço de mim mesma.
Isaque - Então, coma-se! Faça bom proveito!
Rebeca - Por que que a gente não se muda daqui, Isaque?
Isaque - Porque eu daqui só saio pro São João Batista!
Rebeca - É, eu também não tenho vontade de sair da minha casa, não. E mudar pra onde, né? Onde é que ainda se pode ter sossego nessa cidade, nesse mundo? Tenho certeza de que não ia ser feliz em nenhuma outra parte. Você já separou mesmo tudo pra dar a ele?
Isaque - Já.
Rebeca - Botou aonde ?
Isaque - No "cachepot". Tirei a comigo-ninguém-pode e joguei tudo lá dentro.
Rebeca -E botou onde a minha planta, Isaque?
Isaque - No quintal.
Rebeca - Ah, mas de lá ela não vai poder cegar meus inimigos...Eu achava melhor fazer assim uma trilha pelo chão, do nosso quarto até a porta da rua. Assim era só ele ir catando e saindo...E a gente não precisava esperar acordado. (Isaque examina o conteúdo do "cachepot": jóias, dólares, ações, barbeador, secador de cabelo etc.) Será que ele não vai perceber que é tudo falso, Isaque? Quem somos nós pra ter jóias, ações e dólares? Eu tenho medo de que ele me retalhe a cara e corte o teu saco por causa disso. Acho que a gente devia dizer que não tem nada de valor.
Isaque - Já discutimos isso, não já?
Rebeca - Eu não entendo, sinceramente, o que que esse desvairado viu nessa vila...Quem não vê logo que você é um joão-ninguém, que só tem sua aposentadoria e uma poupançazinha, pra uma emergência? Pra que que esse desgraçado quer seu barbeador, meu secador de cabelos, minha aliança? Ah, minha aliança não vou dar mesmo...(Esconde a aliança dentro do sutiã) Você acha que ele vai...abusar de mim, Isaque?
Isaque - Olha o vexame, Rebeca. Olha o "Estatuto da Gafieira"!
Rebeca - Não se preocupe que eu vou ter o cuidado de não macular sua dignidade de funcionário público aposentado por cardiopatia grave.
Isaque - Vê lá se vai deixar escapar que eu fui da Previdência, hem?
Rebeca - Toda rua sabe disso, Isaque. Quando eles vão numa casa, sabem tudo sobre os moradores...
Isaque - E daí? Que que você quer dizer com isso?
Rebeca - Eu, hem! Não quero dizer nada, não, Isaque.
Isaque - Você melhor do que ninguém sabe que eu nunca trouxe um lápis, uma folha de papel, um envelope da Agência! Nunca aceitei um tostão de ninguém. Não tenho bem nenhum além dessa casa, financiada em quinze anos e que ainda nem está quitada. Não tenho rabo preso, não, não tenho nada que esconder. Você, melhor do que ninguém, sabe.
Rebeca - Claro, Isaque. Eu deponho a seu favor em qualquer inquérito, não se preocupe. Não sou como essas Madalenas Arrependidas, não, que se aproveitam bem e depois malham. Nunca aproveitei nada porque você também nunca teve nada. Pra ser franca, a única coisa que eu vi você trazer em trinta anos foi aquele grampeador.
Isaque - Você não esquece isso, hem? Você não tem...coração! Não sabe mesmo perdoar uma fraqueza...
Rebeca - Claro que eu sei, Isaque. Você não me conhece. Ainda que você tivesse trazido pra casa a repartição inteira...
Isaque - É, mas ainda bem que não trouxe. Ainda bem que nunca me deixei tentar. Hoje, com tudo que está acontecendo, tava com o cu na seringa.
Rebeca - Será que essa camisola é transparente? Eu não quero que ele pense que eu estou me oferecendo...
Isaque - Ora, dê-se ao respeito, Rebeca!
Rebeca - Você está querendo dizer que o meu corpo talvez ninguém aceitasse nem ele se oferecendo, que dirá tomá-lo à força?...
Isaque - O que eu estou querendo dizer é que você está patética com essas...indagações!
Rebeca - Existem diversos tipos de desejo, Isaque. Você nunca teve vontade de tocar na pessoa sentada ao seu lado no cinema ?
Isaque - Que ataque é esse, hem? Você parece que está recebendo aquele espírito que você recebia quando era moça...a "Puta Iracema"!
Rebeca - Você nunca teve vontade de que alguém te tocasse num elevador?
Isaque - Que papelão, Rebeca! Estou começando a ficar constrangido.
Rebeca - Ah, meu Deus, até quando? Já estou tão cansada...
Isaque - Vai se deitar...
Rebeca - Ai, meu Deus...Até quando eu vou esperar o dia assim, feito a lua? Tô tão cansada, meu Deus! Tão farta de tudo! (Ouvem-se gritos e exclamações de uma mulher que chora e diz: “Edgard! O neném...O neném sumiu, Edgard! Meu Deus! Ah, minha Nossa Senhora!” Em seguida, uma voz masculina: “Alguém levou ele...A janela está aberta! Sua mãe não ficou aqui com ele?” E a mulher: “Mamãe está dormindo na cadeira de balanço! Mamãe! Mamãe!” O homem: “Ela está morta, Vanda!” A mulher: “Socorro! Minha mãe morreu dormindo e levaram o meu filho! Não pode ser verdade! Isso não está acontecendo! Edgard, faz alguma coisa, chama a Polícia! Socorro!” O homem: “Onde é que você vai, Vanda? Vanda!”. Há sons, luzes e movimento lá fora, como se vizinhos tivessem ido até a casa onde estão acontecendo essas coisas. O homem: “Alguém me ajude aqui, por favor!”. Rebeca corre para a porta e tenta abrí-la)
Isaque - Onde é que você pensa que vai ?
Rebeca - Temos que ver o que foi, Isaque.
Isaque - Tem nada que se meter nisso.
Rebeca - É aquela moça aqui de frente...Aconteceu alguma coisa com a criança.
Isaque - Quer levar um tiro por dentro da cara ?
Rebeca - Que tiro? Por que tiro?
Isaque - Amanhã a gente fica sabendo.
Rebeca - Você acha que foi ele ?
Isaque - Que que você acha?
Rebeca - Que será que ele fez com a criança?
Isaque - Que que você acha ?
Rebeca - Deixa eu saber, Isaque.
Isaque - Que que vai adiantar, enxerida?
Rebeca - Que falta de humanidade, Isaque! Estão vendo que estamos acordados!
Isaque (Apaga a luz) - Quer ser chamada pra depor? Quer mais aporrinhação?
Rebeca - Como é que você pode ser assim?
Isaque - Quer mais aporrinhação, fofoqueira? (A agitação lá fora foi se acalmando, as luzes se apagando)
Rebeca - Eu não vou ter mais cara de olhar pra eles...São tão novos!...É o primeiro filho!
Isaque - Já não olhavam mesmo pra cara da gente...
Rebeca - Nós também éramos assim quando casamos e viemos morar aqui! É timidez, insegurança e vergonha de ainda não ter realizado nem modificado nada.
Isaque - Tá vendo? Já está tudo calmo...Já devem ter tomado todas as providências. É sempre assim: tudo começa a se ajeitar assim que começam a velar até que enterram os mortos. Com o tempo, mesmo uma casa arrombada, uma mãe assassinada ou um filho seqüestrado não são coisas que impeçam alguém de viver, nem de tomar um sorvete. (Amanhece) Vem...Vamos deitar.
Rebeca - Não quero.
Isaque - Então fica aí feito uma velha maluca. (Sai)
Rebeca - Eu queria tanto ter uma espécie de altar pra queimar meu próprio incenso! Eu queria tanto ser uma bruxa! Mas se me aparecesse uma forma torta na fumaça, o que será que eu pedia pra ela me dar? Bom, se fosse um pedido só, o que será que eu pedia? O que será? Ah, é, eu pedia pra ela me livrar desse dinossauro que ronda o nosso piquenique.
Cena 3
(Madrugada seguinte. Isaque às voltas com seus papéis; Rebeca à tôa, tensa. Som do relógio indicando a passagem de algum quarto de hora)
Rebeca - Na verdade, fora duas ou três mortes inconsoláveis, nada de muito penoso me aconteceu até hoje.
Isaque - Então?
Rebeca - Mas é que eu tenho sofrido tanto esperando o momento de sofrer!
Isaque - Você é tão repetitiva, Rebeca!
Rebeca - Você vê esse negócio do menino ontem...A gente aqui imaginando mil e uma desgraças...E não aconteceu nada demais...
Isaque - Nada demais porque o filho não é seu. Nem a mãe é sua.
Rebeca - Coitadinha da Dona Ester! Deve ter enfartado do susto de ver aquele Morcego pegando o menino no berço...Coitada! Se ela soubesse que ele só ia dar uma volta pelo quintal e pelo telhado com a criança, talvez não morresse, não é?
Isaque - Você diz cada bobagem, Rebeca! Já imaginou o que ele não fez com a criança durante esse passeio?
Rebeca - Você acha que ele estuprou o menino?
Isaque - Que que você acha ?
Rebeca - Ah, eu não acredito que alguém tenha coragem de fazer isso com um bebêzinho...Tanta mulher por aí, com a bunda tão grande...
Isaque - É um tarado, descarado, sem-vergonha!
Rebeca - Mas dizem que a criança estava tão bem, no berço, quietinha, dormindo, quando os pais voltaram da delegacia...
Isaque - Ele deve ter dado alguma coisa pro bebê tomar, cheirar ou o que é pior, mamar!
Rebeca - Você acha?
Isaque - Você tem alguma dúvida? É um pedófilo devasso!
Rebeca - Ah, coitada dessa mãe...
Isaque - E desse pai.
Rebeca - Ainda bem que nós não tivemos filhos, tá vendo? Já imaginou?
Isaque - Não quero nem imaginar. Eu cortava em rodelas a pica de um desgraçado desses.
Rebeca - Ele deve ser louco...O sobrinho do capitão disse que viu quando ele passou correndo, fantasiado de Morcego!...
Isaque - Esse garoto dorme menos do que a gente, hem?
Rebeca - Eu tinha pavor de morcegos quando era menina. Mijava na cama quando via um no Carnaval. Minha madrinha me levava pra ver a decoração da cidade todo ano, no Natal e no Carnaval. As pessoas às vezes são tão ternas...(Som do relógio, fora de hora e de ritmo)
Isaque - Ué?!
Rebeca - Ué?! (Isaque pega o relógio) Leva no relojoeiro amanhã, Isaque. Gosto tanto desse relógio...(Isaque pega uma chave de parafuso)
Rebeca - Tem certeza de que você sabe o que está fazendo, Isaque?
Isaque - Absoluta!
Rebeca - Não quero nem ver...Eu queria tanto que alguém me perguntasse algum dia: quem é você, Rebeca, como você se define? Eu sou e sempre fui uma lagarta que por uma razão qualquer não conseguiu se transformar em borboleta. (Isaque abre o relógio. Rebeca enfia um cream-cracker na boca. Tosse, engasga. Pede, por mímica, que Isaque lhe dê umas palmadas nas costas)
Isaque - Não bato nada. Quem manda ser esfomeado, tubarão? Pode estertorar aí que eu nem me mexo.
Rebeca - Que coisa horrível deve ser morrer sufocada!
Isaque - É bem feito. Come feito uma esganada, feito uma mendiga que nunca vê comida! Inferno! Ah, não tenho paciência pra isso, não! (Fecha o relógio e recoloca-o em seu lugar habitual. Volta aos seus papéis)
Rebeca - Consertou ?
Isaque - Sei lá...Que se dane!
Rebeca - Pode me emprestar uma folha de papel, por favor? (Isaque estende a folha)
Isaque - Quer tudo nas mãos! (Joga furiosamente uma caneta na direção da mulher)
Rebeca - Estúpido!...Podia ter me cegado! (Rebeca escreve ou desenha na folha)
Isaque - Me imitando, é ?
Rebeca - Estou construindo meu próprio altar. Pra queimar meu próprio incenso.
Isaque - Besteira é essa ?
Rebeca - Está na Bíblia.
Isaque - Deu pra isso agora, é ?
Rebeca - Atualmente eu só gosto de ler bula de remédio e a Bíblia.
Isaque - Tá psicografando alguma mensagem ?
Rebeca - Estou compondo uma prece pra eu rezar nas minhas horas de agonia.
Isaque - Andou mexendo na minha pasta, não andou ?
Rebeca - Li, sim, o seu poema. E gostei tanto que também tive vontade de escrever o meu.
Isaque - Invejosa! Plagiadora! (O relógio toca sua melodia, só que de trás para frente)
Isaque - Ué?!
Rebeca - Viu o que você fez com ele, Isaque?(Isaque volta aos seus papéis. Rebeca dá um escandaloso bocejo, assustando o marido)
Isaque - Ê!...Vai-te embora! Abandona esse corpo que não te pertence!
Rebeca - Pra mim, chega. Já produzi muito essa madrugada...(Bate com o pé direito no chão) Estou com má circulação...Não posso ficar com a perna cruzada muito tempo que parece que eu tenho perna de pano. (Vai para o quarto capengando)
Isaque - Perna de pano, braço de pano, bunda de pano...
Rebeca - Isaque, se ele me matar, eu quero dizer, se ele matar só a mim, o que é que você vai fazer da sua vida?
Isaque - A primeira coisa que eu vou fazer é tratar de providenciar o seu enterro.
Rebeca - E se ele for logo atirando em nós dois, sem aquela "exposição de motivos" dos assassinos de televisão?
Isaque - A gente cai no chão e finge que está morto, mesmo que esteja vivo. Já não cansei de ensinar?
Rebeca - Já. Você já cansou de me ensinar e eu já cansei de ensaiar essa cena na minha cabeça. Mas será que alguma vez eu consegui ser a pessoa que ensaiei?
Isaque - Eu só quero, pelo menos, antes de morrer, aleijar ele. Quando ele for saindo, eu saco o revólver...(Saca um revólver) e meto-lhe uma bala bem no meio da coluna...entre L5 e S1 pra ele ficar paralítico e broxa. (Atira e acerta o lustre. Rebeca grita)
Rebeca - Viu o que você fez? Eu já disse a você que não quero tiro aqui dentro.
Isaque - Vou esperar ele sair pra atirar?
Rebeca - Eu não posso imaginar um corpo sangrando, se contorcendo aqui na sala, feito que a minha casa fosse uma esquina, um matagal...Eu não posso imaginar um outro corpo coberto com o nosso lençol.
Isaque - A minha vontade era mandar instalar um dispositivo ali na porta, pra ele cair eletrocutado assim que pusesse a pata aqui dentro.
Rebeca - Não, Isaque, por favor. Eu não quero que a minha sala pareça um porão de tortura, um campo minado. Além do mais tem a janela, a porta dos fundos, o quintal...Como é que a gente vai saber por onde é que ele vai entrar?
Isaque - É, mas uma coisa eu vou comprar amanhã, com ou sem a sua aprovação.
Rebeca - O que é ?
Isaque - Dois coletes de aço.
Rebeca - Ah, não, Isaque...Eu não quero parecer um cavaleiro medieval!
Isaque (Indicando) - Pega daqui até aqui. Pra você, vai ser até bom: vai servir de colete ortopédico e de cinta.
Rebeca - Você tá me chamando de barriguda uma hora dessa, Isaque? Francamente!
Isaque - Estou. De barriguda e de aleijada.
Rebeca - Isaque, se você morrer eu tenho direito a quê?
Isaque - A ter um ataque sobre o meu corpo, gritando que era você quem devia ir primeiro.
Rebeca - A gente tem que ser realista. Você morre aí, de repente, como é que eu fico?
Isaque (Imita um cego) - "Leva a lixa a um cruzeiro...Leva a lixa a um cruzeiro...Compra, moça, pra me ajudar..."
Rebeca - Que mau gosto!...Isaque, você nunca fez um seguro pra mim ?
Isaque - Ora se eu ia ter uma despesa dessas a vida inteira pra te deixar numa boa, viúva de boca pintada e xoxota coçando...Que é ? Que que tá me olhando? Nunca me viu não?
Rebeca - Às vezes parece que não. (O relógio soa estridente, como um despertador)
Isaque - Eu, hem!
Rebeca - Eu, hem! (Amanhece. Isaque vai para o quarto. Rebeca se ajoelha diante de seu retrato) - Valei-me, Rebeca, valei-me! Breve na sua tela um filme de horror, de dor e de humilhação. Breve na sua parede sombras de cenas incompreensíveis. Oh, Reb, querida, que será que o anjo da cicatriz vai fazer das suas artérias e entranhas entupidas? Que será que o Debochado vai fazer da tua dignidade, meu amor? (Isaque surge sem ser visto) Valei-me, Rebeca, valei-me! Faz com que esse cangaceiro entre de uma vez aqui por dentro porque - sinceramente - eu não agüento esses dias corcundas e vesgos. Depois, Reb querida, me deixa dormir sossegada depois do almoço, pra sempre. Ou então, como se eu fosse um colchão, me enche de palha, como se fosse alegria . E como se eu fosse um pote, me enche de vida, como se fosse leite e aveia.
(O relógio emitiu, durante a prece de Rebeca, um trecho completo da Sonata ao Luar , sem atropelos)
Isaque - Escutou? Tocou direitinho!
Rebeca (Erguendo-se) - Que falta de respeito, Isaque! Escutar uma pessoa rezando!
Isaque - Vai dar pra essa palhaçada agora, é ?
Rebeca - Vou. O meu santo nome eu posso invocar em vão quantas vezes forem necessárias.
Isaque - Eu acho que além do colete de aço eu vou comprar também uma camisa de força.
Cena 4
(Outra madrugada, meses depois. O relógio emite com perfeição o trecho musical completo, enquanto Rebeca entra, vinda do quarto, usando um vestido de noiva amarelado, com véu, grinalda e buquê meio danificados, estilo 1950. Isaque está assistindo a um filme de terror na TV e quando a vê, estremece)
Rebeca - Estou tão feia assim?
Isaque - Credo! Nem sei que que eu pensei agora...Pensei que era minha mãe.
Rebeca - Cruzes! Você sabe como ofender uma pessoa, Isaque. (Simulando o caminho da noiva para o altar, anda na direção dos retratos na parede) Gosto de ver minha casa assim: como um altar!
Isaque (Desligando a TV) - Ô filme chato! Vai dar pra se fantasiar também agora, é?
Rebeca - Você se lembra como nós éramos antes disso?
Isaque - Antes de quê ?
Rebeca - Desse...dessa...ameaça. Dessa vigília ansiosa.
Isaque - Vai começar com bobagem ?
Rebeca - Com o que era que nós nos preocupávamos, você é capaz de se lembrar?
Isaque - Em acabar de pagar essa casa, eu acho.
Rebeca - Ah, é...Esse templo ainda não era nosso. É...isso era uma das coisas...E o que mais nos incomodava ?
Isaque - Seus caroços.
Rebeca - Sua pressão alta, seu ódio aos bem sucedidos...
Isaque - Suas crises de depressão...
Rebeca - E do que era que nós tínhamos medo antes disso ?
Isaque - Das doenças...dos desastres...da desgraça...
Rebeca - Não fala essa palavra, Isaque. Dizem que a casa roda três vezes.
Isaque - Besteira!
Rebeca - O que era que nos envergonhava e irritava antes desse....colete?
Isaque - Seu joanete....
Rebeca - Aquela sua fase de incontinência urinária...
Isaque - Se você algum dia disser a alguém que eu já mijei na cama, você nem sabe do que eu sou capaz!
Rebeca - É...Éramos bem parecidos...Nunca deixamos de rezar esse terço diário, a vida inteira...Eu pensei que talvez tivesse sido diferente algum dia. Pensei que tivesse sido tranquilamente feliz alguma vez.
Isaque - Pieguice, não, Rebeca, por favor.
Rebeca - Esse colete me incomoda.
Isaque - A mim incomoda tanto quanto a você.
Rebeca - Ai, Isaque, bem que eu tento me mirar no seu exemplo, bem que eu tento ser um bravo soldado, um faquir desprendido, mas que que eu vou fazer? Eu dou pra tudo menos pra sentinela e faquir. Se a minha cama fosse de pregos, eu não dormia, nem deixava ninguém dormir, enquanto não me atirassem um edredom e um travesseirinho. (Ouve-se um helicóptero)
Rebeca - O que é isso?
Isaque - Um helicóptero, não está vendo ?
Rebeca - Há quanto tempo eu não escuto passar um avião! Isso está me lembrando alguma coisa boa da minha vida.
Isaque - Não se assanhe, não, que coisa boa é que não deve ser. Que que um helicóptero vai estar fazendo por aqui?
Rebeca - A minha sensação é a de que estão procurando por mim. Você não sente isso não?
Isaque - É bem possível que estejam procurando Rebeca, a infeliz que não sabe que está ficando louca.
Rebeca - Isaque, você sabe que o "verdadeiramente vestido não pergunta ao nu: onde está tua roupa?"
Isaque - De quem é essa frase idiota ?
Rebeca - Não sei. Acho que é minha mesmo. Queria tanto me vestir pra sair, pra jantar fora, pra ir no programa da Hebe...
Isaque - Não tem auto-estima, não? Vai frequentar auditório agora ?
Rebeca - Que auditório! Eu queria ser entrevistada pela Hebe ou pelo Jô Soares...
Isaque - Eu já disse que não quero ouvir falar nessa gente aqui dentro!
Rebeca - Vai começar com isso de novo? Acho tão feio esse despeito seu...
Isaque - Despeito! Eu também sempre tive muito carisma. Sempre fui representante de turma. E também tenho muito senso de humor, e meu QI é altíssimo! E quando era adolescente, criei uma revista em quadrinhos chamada "O sargento Bob"...com desenhos e tudo. E.....
Rebeca (Tirando o colete) - Vou tirar isso aqui...Não tô aguentando...Vade retro, Príncipe das Trevas! Revertere ad locum tuum, Gavião das Taperas!
Isaque - Tira....Tira e estufa o peito pras balas, pra peixeira dele.
Rebeca - Também, a gente se martirizando assim, que que adianta ainda estar a salvo? Quem foi mesmo que disse: "Não pergunte. Não pergunte nem fique aflito, que o dia vai chegando e vai indo?"
Isaque - Algum inconseqüente.
Rebeca - Acho que foi Jesus Cristo.
Isaque - É bem possível.
Rebeca - Mas nem Jesus Cristo você poupa?! (Atira longe o colete) Você sabe? Eu estou gostando cada vez mais dessa posição de vítima...de credora da vida. Estou me sentindo ótima assim indefesa e miserável. (Ouve-se o som característico dos carros de bombeiros, rádios-patrulhas e ambulâncias)
Rebeca - O que é isso, Isaque?
Isaque - - Bombeiros...Rádio patrulha...
Rebeca - Não são sirenas de ambulância?
Isaque - Vai ver que dessa vez , depois de assaltar e matar, ele ainda botou fogo na casa.
Rebeca - Vamos ver o que foi.
Isaque - Pra quê? Vai fazer o quê? Os bombeiros não já chegaram? Fazer o quê lá?
Rebeca - Você não está sentindo um cheiro de queimado? Será que eu deixei o pano de prato em cima do fogão aceso? (Os dois correm para a cozinha, esbarrando um no outro. Os óculos de Isaque caem. Ambos se abaixam para pegá-lo e ao erguer-se, Isaque dá uma cabeçada em Rebeca)
Isaque - Merda! (Examina os óculos) Aí!...Aí o prejuízo, "rompe-mato", "quebra-louça"!
Rebeca - Ai! Me machucou! Que estupidez! A gente ainda vai ajudar, ele vem com brutalidade...
Isaque - Aí, quebrou a lente. Amanhã você é que vai levar. Vai ficar na porta da Ótica esperando abrir.
Rebeca - Tá, mão de vaca, pode deixar que eu pago também. Pode descontar da minha mesada. (A luz cai em resistência, ainda ao som das sirenas)
Cena 5
(Isaque está lendo um jornal, à mesa. Tocam três vezes a campainha, como um código ou senha. Mesmo assim, Isaque, mais tenso e estressado do que nunca, olha pelo olho mágico para ter certeza de quem é. Entra Rebeca, esbaforida, com uma saca de supermercado. Isaque volta a ler)
Rebeca - Que coisa horrível, Isaque! Você nem imagina. Um incêndio num bazar de fogos...Eu nem sabia que morava perto de um lugar desses, você sabia? Um depósito clandestino de fogos e até armas e munições perigosíssimas, veja você! (Ela está tirando as compras da saca) Que horror! Você não diz nada, Isaque?
Isaque - Estou lendo tudo aqui. Pra que que eu assino essa merda?
Rebeca - Você nem imagina...Tudo destruído em volta...Casas, ônibus, postes...
Isaque - Uma moça tinha acabado de entrar com os dois filhos: um de oito, outro de quatro anos...
Rebeca - É...pra comprar balão e estrelinha. Que tragédia!
Isaque - Desgraçado! Filho da puta!
Rebeca - Quem, Isaque? Isso não teve nada a ver com ele...
Isaque - É só ganância e putaria! Afundam barcos, mandam gente pelos ares, mentem, enganam, roubam, exploram, matam...Ah, que se fodam! Que ardam todos numa grande fogueira.. o raio que os parta!
Rebeca - De quem você está falando?
Isaque - Que explodam todos, o país todo, o mundo todo como um foguete dirigido pelo demônio! É escândalo atrás de escândalo! Vergonha atrás de vergonha! Desgraça atrás de desgraça! Ai, que dor de cabeça...Minha cabeça parece que vai explodir...e o peito...e a barriga...e a batata da perna...e as veias do pescoço...
Rebeca - Que isso, meu filho? Que que você está sentindo?
Isaque - Eu queria subir no Corcovado e metralhar essa cambada toda...
Rebeca - Metralhar quem? Que que você tem, Isaque?
Isaque - Ai, minha cabeça! Que vontade de vomitar!
Rebeca - Não vomita, não. Fica quietinho. Quer um Passiflorine? Respira fundo...(Isaque segura a cabeça, está tendo um acidente vascular cerebral)
Rebeca - Ô meu Deus! Salve o meu marido! Faça com que ele não esteja morto! Ô meu Deus, que será que ele teve? Ele sabe que não pode se exaltar! Sabe que não pode! (Sai para a rua) Alguém, aqui, por favor! (Mudança de luz. Numa dolorosa e bela imagem do passado, Isaque e Rebeca, jovens, dançam com sensualidade e alegria o bolero "Canção da Eterna Despedida", de A.C.Jobim e Vinícius de Morais, na voz de Orlando Silva)
Cena 6
(Um ano depois. São onze horas da manhã. Rebeca, com um vestido estampado e meio despenteada, coloca flores numa jarra. Isaque entra numa cadeira de rodas, tronco nu, calça de terno e meias. Ao contrário da mulher, parece ter envelhecido muitos anos. Tem todo o lado direito do corpo paralisado)
Isaque - Afinal quando é que você vai ver o que é que aquele diabo daquele leão quer comigo?
Rebeca - Ih, Isaque, você foi feito às pressas, hem? Eu já não disse que vou segunda-feira?
Isaque - E se for uma multa? Eu vou ter que vender a casa pra pagar!
Rebeca - Que vender casa o quê! Ih, você é dramático! Você algum dia sonegou alguma coisa, Isaque?
Isaque - Soneguei porra nenhuma.
Rebeca - Você tem certeza de que foi só aquele grampeador que você roubou da mesa do seu supervisor?
Isaque - Vai falar nisso a vida toda?
Rebeca - Se algum dia você enterrou dinheiro no quintal, acho bom você......
Isaque - Filha da puta! Como é que você tem coragem de dizer uma coisa dessas?
Rebeca - Calma, Isaque, você não me entendeu...Eu ficaria muito irritada era de você não ter me chamado pra ajudar.
Isaque - Nunca trouxe um lápis, um envelope, um rolo de papel higiênico da Agência!
Rebeca - Antes tivesse trazido: agora a gente não estava aqui nessa titica.
Isaque - Corrupta! Anã devassa!
Rebeca - Ah, antes fosse, meu filho. Eu não suporto ir nesses lugares...Uma gente tão antipática! É um inferno isso de você não prestar pra mais nada! Vê se reage também...Tanta gente que tem derrame e fica bom...
Isaque - Você é muito mais imprestável do que eu. Me veste! Anda logo! Corta o cabelo da minha narina e das orelhas....Tô parecendo um lobo!
Rebeca - Já vai!...Eu sou uma só!...(Vestindo a camisa, tentando calçar as meias, o sapato, tudo ao mesmo tempo)
Isaque - Calma, ejaculação precoce!
Rebeca - Agora é ele que pede calma...Nunca está satisfeito!
Isaque - Eu preferia ter morrido de uma vez.
Rebeca - Às vezes mais vale uma boa hora de morte mesmo. Desculpe, Isaque...Eu tô muito nervosa. Agora sou eu pra tudo. No tempo em que eu passava a noite acordada, me sentia menos cansada. Como dizia aquele samba, “Eu era feliz e não sabia”.
Isaque - Pois eu ainda fico acordado a noite inteira...Não sei como você consegue dormir.
Rebeca - Agora nem que eu quisesse. Posso lá me preocupar com ladrão!
Isaque - Agora é pior do que antes: eu não posso reagir. Ele faz o que quiser de mim e de você.
Rebeca - Eu até esqueci disso. Nunca mais se ouviu falar dele...
Isaque - Acaba de me vestir direito...As meias estão trocadas...
Rebeca (Sem destrocar as meias, calça os sapatos no marido) - Essa sua fisioterapia também vou te contar....Me atrasa toda. Tá vendo? Você nunca quis pagar um plano de saúde, agora tinha direito a uma coisa decente.
Isaque - Não quer ir, não vai! Me empurra ladeira abaixo, que eu vou sozinho.
Rebeca - Ih, Isaque, você tá tão sensível! Não se pode dizer nada...(Olha o relógio) Ainda é cedo...Quer que eu leia um pouco pra você?
Isaque - Você é que sabe!
Rebeca (Pega a Bíblia) - “O Nascimento de Isaque: visitou o Senhor à Sara como lhe dissera, e cumpriu o que lhe havia prometido. Sara concebeu e deu à luz um filho. Ao filho que lhe nasceu, que Sara lhe dera à luz, pôs Abraão o nome de Isaque. Isaque cresceu e foi desmamado. Abraão manda seu servo buscar uma mulher para Isaque. O encontro de Rebeca. O casamento de Isaque e Rebeca. Saíra Isaque a meditar no campo, ao cair da tarde. Erguendo os olhos, viu, e eis que vinham camelos...”
Isaque - Lê direito!
Rebeca - “Também Rebeca levantou os olhos e, vendo Isaque, apeou do cavalo e perguntou:...” (Isaque demonstra com os braços que está com frio)
Rebeca - Que foi, Isaque?
Isaque - Acho que estou com febre...Bota o termômetro!
Rebeca - Tá, depois eu boto. Agora deixa eu acabar de ler isso aqui. “Tinha Abraão cem anos, quando lhe nasceu Isaque, seu filho. E disse Sara: Deus me deu motivo de riso”. Não foi aqui que eu parei...
Isaque - Me dá água! Anda! Me dá água!
Rebeca - “Então o servo saiu-lhe ao encontro e disse: Dá-me de beber um pouco da água do teu cântaro. Ela respondeu:”
Isaque - Me dá água, carcereira! Me dá um remédio pra febre, torturadora!
Rebeca - Que é, hem, Isaque? Olha como fala, hem? Não vou pegar remédio nenhum. Só se toma remédio pra febre depois de 38º. (Bota a mão na testa dele) Você não está com febre nenhuma! Quer que eu leia ou não quer?
Isaque - Ah, vai-te pra puta que te pariu! Anda logo! Vai se vestir! (Apontando o relógio) Aí...tá quase na hora! Ainda nem se penteou, a maluca!
Rebeca - Agora eu vou acabar de ler, sim, que eu não sou palhaça! “...apeou do cavalo e perguntou ao servo: Quem é aquele homem que vem pelo campo ao nosso encontro?” (Ouvem-se palmas fortes e insistentes no portão)
Isaque - Não abre! Não abre! Pergunta quem é! Seja quem for, não abre!
Rebeca (Para fora) - Que é, hem? Não, senhor, não tenho não. Não, também não. Não. Infelizmente, também não.
Isaque - Não dá conversa. Fecha essa porta. Deve ser ele bancando o mendigo. Sai daí!
Rebeca - Não senhor, também não tenho não. Nós ainda nem almoçamos. Vamos comer alguma coisa na rua. É que eu tenho que levar meu marido no Hospital dos Servidores. Ah,é, é um inferno aquilo. Ah, conhece? O senhor também se trata lá? Também foi funcionário público? Ah, o seu pai! Tá...Passe outro dia. Que Deus também dê em triplo tudo o que o senhor está me desejando. Assim seja. Um bom dia pro senhor também. Com licença...(Fecha a porta, volta a sentar, pega o livro)
Rebeca - “Quem é aquele homem que vem pelo campo ao nosso encontro?”
Isaque - Quem era? O que ele queria?
Rebeca - Um velho pedindo roupa, comida.
Isaque - Você mandou passar outro dia, que eu ouvi.
Rebeca - “Quinta praga: peste nos animais. Sexta praga: úlceras. Sétima praga: chuva de pedras. Oitava praga: gafanhotos. Nona praga: trevas. Décima praga: morte dos primogênitos”.
Isaque - Amanhã tem um bando de mendigo de cueca aqui na porta pedindo pra tomar banho!
Rebeca - Pode deixar que eu digo que não tem água também.
Isaque - Não entra na tua cabeça que se alguém entrar aqui faz o que quiser de mim e de você, que eu não posso lutar nem com um gafanhoto?
Rebeca - Já sei, já sei que você não serve pra mais nada, que se algum marginal entrar aqui, te bate e te cospe na cara, me enraba, quebra e mata...Já sei! Já estou farta de saber! E daí? Por causa disso e das dez pragas eu não abro mais a porta, não saio mais de casa, não atravesso a rua porque posso ser atropelada? Ah, vê se toma jeito, Isaque! Taí todo podre, bichado e derramado, um inútil vegetando, e ainda não aprendeu nada com a vida?
Isaque - Que culpa eu tenho se você é uma lagarta que nunca conseguiu se transformar em borboleta? (Ouvem-se raios, relâmpagos e trovões. Um vento fortíssimo escancara e faz bater as janelas e voar cortinas. Rebeca ajeita o que pode, agasalha Isaque)
Rebeca - Credo! Parece que o mundo vai acabar!
Isaque - Era bom que acabasse mesmo. (Rebeca pega o livro, mas agora lê como para adormecer um filho. O relógio começa a emitir a Sonata ao Luar completa)
Rebeca - “Chamaram, pois, a Rebeca e lhe perguntaram: Queres ir com este homem? Ela respondeu: Irei. O Altar do Incenso: Farás também um altar para queimares nele o incenso: de madeira de acácia o farás. Arão queimará sobre ele o incenso aromático; cada manhã, quando preparar as lâmpadas, o queimará. Quando ao crepúsculo da tarde, acender as lâmpadas, o queimará. Será incenso contínuo perante o Senhor pelas vossas gerações”. (A fúria do vento aumenta, as luzes se apagam. A cena fica escura e são vistos apenas os três retratos na parede, como que iluminados pela lua ou pela luz da rua. Nova rajada de vento escancara de novo a janela, faz voar a cortina e ouve-se o som do relógio que cai no chão e se quebra) O que é isso, Isaque?
(Ao som de “Canon”, de Johann Pachelbel , um vulto com uma estranha maquiagem e uma capa negra de fundo branco, salta da janela e cerca o casal, fazendo o tempo todo o sinal característico de “Silêncio!”. Coloca Rebeca sentada no colo de Isaque, pega na fruteira um caju e uma banana artificiais e enfia na boca de cada um. Tira a capa e coloca-a, com o fundo branco, sobre os ombros de Isaque e Rebeca. Retira o caju e a banana, une as bocas de Isaque e Rebeca num beijo cinematográfico. Depois, vai-se afastando de costas e aponta para o casal um objeto que parece um fuzil ou uma espingarda, mas na verdade é um guarda-chuva branco que se abre. Coloca o guarda-chuva aberto na mão sadia de Isaque. A luz fica só em cima do casal. Ele desaparece. Após um tempo, Rebeca e Isaque começam a movimentar-se lenta e cuidadosamente)
Isaque - O que é isso, Rebeca?
Rebeca - Eu não entendi. Mas estou pensando.
Isaque - Nós não estamos mortos, estamos ?
Rebeca - Não. Seu coração está batendo bem forte, Isaque, como quando você me encostava naquele muro lá de casa.
Isaque - Você era muito gostosa, Rebeca...
Rebeca - É, eu era muito gostosa, sim...E tinha um corpo lindo, e me vestia muito bem...E tinha uma personalidade marcante...
Isaque - Você dizia que eu parecia com o Paul Newmann...
Rebeca - Com quem?
Isaque - Paul Newmann...
Rebeca - É, lembrava um pouco, sim. E eu era a cara da Rita Hayworth. Mas nós temos que pensar é no que esse homem quis dizer com tudo isso, Isaque.
Isaque - Não quero saber disso. Quero me lembrar como eu era antes de virar sapo.
Rebeca - Você era lindo. Você era gentil. Você era um príncipe, Isaque.
Isaque - E você era uma princesa, Rebeca.
Rebeca - É, eu era uma princesa que queria se transformar em borboleta.
(Ela estende a mão para ele, como uma dama para ser beijada por um cavalheiro. Ele vem em sua direção na cadeira. Beija a mão dela. Ela senta no colo dele. Rodam ao som de "Valsinha", de Vinícius de Morais e Chico Buarque, enquanto é projetada a foto do casamento dos dois no céu cenográfico e depois na cortina)
FIM
quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012
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