quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

Um Papel Trágico



de Anton Tchecov


Traduzido do inglês
por Ricardo Hofstetter




Personagens:

Ivan Tolkatchov, um homem de família
Alexis Murashkhin, amigo de Ivan


Cenário: Escritório de Murashkhin.




(Murashkhin está sentado em sua mesa. Tolkatchov entra carregando um globo de vidro para lâmpadas, uma bicicleta de criança, 3 caixas de chapéu, um bolo de roupas e uma sacola cheia de cervejas e pacotes menores. Ele está atordoado e exausto e se joga num sofá)


Murashkhin - Meu velho, que bom te ver! De onde você surgiu?


Tolkatchov (Respirando com dificuldade) - Você pode me fazer um favor? Tenha piedade e me empreste um revólver. Só até amanhã.


Murashkhin - Um revólver?! Pra quê?


Tolkatchov - Eu preciso. Meu deus, me arranja um pouco de água, rápido. Eu preciso do revólver porque vou atravessar uma floresta escura e tenebrosa hoje à noite e a gente precisa estar sempre preparado. Me empresta o revólver, por favor.


Murashkhin - Que bobagem! “Floresta escura e tenebrosa!” Você está escondendo alguma coisa de mim. E pelo seu estado, boa coisa não deve ser. Agora me diga com calma, qual o problema? Você está doente?


Tolkatchov - Peraí, deixa eu recuperar a respiração. Parece que meu corpo acabou de sair de uma máquina de moer carne. Eu pareço um bolo de comida pra cachorro. Eu não agüento mais, tô por aqui. Seja um bom amigo, eu suplico, não faça mais perguntas e me dê logo esse revólver.


Murashkhin - Mas você está com medo de quê? Um homem de família, com um alto cargo no serviço público. Parece uma criancinha assustada. Você devia estar envergonhado.


Tolkatchov - Um homem de família?! Eu sou é um escravo, um inútil, um verme rastejante. Por que eu não acabo logo com isso? O que eu estou esperando? Eu não passo de um capacho. Minha vida não serve para nada. (Dá um pulo e agarra Murashkhin) Me diz, pra que serve a minha vida? Eu posso aceitar que um homem sofra por causa de um ideal, por uma causa nobre. Mas sofrer por causa de anáguas de mulheres, abajures e toda sorte de futilidades - não, muito obrigado. Não, não e não. Pra mim chega! Eu repito: pra mim chega!


Murashkhin - Fala baixo senão os vizinhos vão ouvir.


Tolkatchov - Os vizinhos que se danem. Se você não me emprestar esse revólver vou pedir a outra pessoa. Eu já resolvi: não quero mais viver nesse mundo.


Murashkhin - Olha aí, você arrancou os meus botões. Relaxa, homem! O que há de errado com a sua vida?


Tolkatchov - O que há de errado com a minha vida, ele pergunta. Está bem, eu vou dizer o que há de errado com a minha vida. Talvez desabafando eu me sinta melhor. Vamos sentar e você vai me escutar. Estou até com falta de ar. Eu vou te contar como foi o meu dia hoje e por ele você vai ter uma idéia de como anda minha vida. Das 10 da manhã às 4 da tarde eu trabalhei feito um condenado naquele velho escritório que você conhece. Só que com esse calor aquilo lá virou um verdadeiro inferno: as moscas tomaram conta de tudo, um verdadeiro caos, meu velho, inferno é pouco pra definir aquilo lá. Minha secretária está de licença, meu assistente saiu pra se casar e a corja dos funcionários anda excitadíssima por causa dos fins de semana no campo, casinhos de amor e pecinhas de teatro. Aquele bando anda tão preguiçoso que não se pode contar com eles pra nada. Pra você ter uma idéia, quem faz o trabalho da secretária é um sujeito apaixonado e surdo do ouvido esquerdo. Nossos clientes estão malucos, perdendo a paciência e nos ameaçando. É o verdadeiro inferno na Terra. O trabalho está insuportável, sempre a mesma coisa, dia após dia respondendo a consultas intermináveis, escrevendo minutas quilométricas - uma chateação atrás da outra. Me dê mais água, por favor. Aí, você chega do escritório estourado, tudo o que quer é um jantar gostoso e uma boa cama. Mas você acha que consegue? Claro que não. Sua família está de férias no campo, o que transforma você num verme, numa nulidade, num garoto de recados que precisa correr de um lado pra outro feito um doido. Onde estamos passando as férias existe um charmoso costume: se um marido vem pra cidade trabalhar, não só sua esposa como todo ser vivo do campo se acha no direito de enchê-lo com milhares de tarefinhas e recados. Sua mulher diz pra você passar na costureira e reclamar que o corpete ficou comprido demais e apertado nos ombros. Sonia precisa trocar um par de sapatos, minha cunhada quer 20 copeques de seda carmim, mas tem que ser seda da boa, e mais 7 pés de fita. Eu vou ler a lista pra você. (Tira uma lista do bolso e começa a ler) “Um globo de luz, uma libra de lingüiça de presunto, 5 copeques de cravo e canela, óleo de castor para Misha, 10 libras de açúcar granulado, uma tigela de cobre, um pilão de açúcar, ácido sulfúrico, inseticida, 10 copeques de creme facial, 20 garrafas de cerveja, vinagre e um espartilho tamanho 82 para mademoiselle Chanceau” - Urgh! Sem falar no sobretudo e nas galochas que Misha esqueceu em casa. Isso só para a nossa família! Agora vem a lista dos nossos queridos vizinhos e dos amigos dos nossos queridos vizinhos. Amanhã é aniversário do pequeno Vlasin e eu tive que comprar uma bicicleta pra ele. A esposa do coronel Vikhrin está pra dar à luz, por isso todo dia eu tenho que pedir para a parteira ficar de sobreaviso. Eu tenho 5 listas de tarefas no bolso e o meu lenço está cheio de nós pra eu não esquecer das coisinhas pedidas na última hora. É isso, me velho, depois de sair do trabalho e antes de pegar o trem eu tenho que rodar a cidade inteira feito um alucinado, com meio palmo de língua pendurada, correndo pra lá e pra cá, amaldiçoando o meu destino. Você se arrasta da loja de tecidos para a farmácia, da farmácia para a costureira, da costureira para a loja de salsichas e aí de volta para a farmácia de novo. É tanta confusão que você perde dinheiro, pisa nas saias das senhoras, acaba esquecendo de pagar alguma coisa e os vendedores armam uma confusão! Urgh! Essa correria deixa qualquer um louco, você se sente mal a noite toda e acaba sonhando com crocodilos. Mas tudo bem, suas tarefas estão feitas, tudo comprado. Agora como é que você vai empacotar todas essas coisas? Vai embrulhar o abajur com a tigela de cobre e o pilão, por exemplo? Ou misturar o ácido sulfúrico com o chá? Como é que você coloca 20 garrafas de cerveja junto com a bicicleta do pequeno Vlasin? É um verdadeiro trabalho de Hércules, um quebra cabeças chinês de 2 mil peças. Você se esforça, embrulha tudo, mas por melhor que faça sempre acaba quebrando ou derramando alguma coisa. Aí você chega na estação do trem carregando toda a tralha com os braços, as pernas, o queixo e equilibrando um pacote na cabeça. O trem parte e os passageiros começam a jogar suas coisas porque elas estavam ocupando os lugares deles. O coletor de passagens aparece e diz que você será jogado pra fora se não controlar seus pacotes. E tudo o que você pode fazer é fica lá, em pé, humilhado como um cachorro magro. E aí o que acontece? Você chega na casa de campo e tudo o que quer é uma boa refeição e uma soneca depois de todo esse trabalho. Que esperança! Mal você dá a primeira colherada na sopa e a sua esposa diz: “Querido, vamos ao teatro hoje? Depois a gente podia dançar no clube”. Ai de você se recusar! Você é um marido e na linguagem das férias no campo a palavra marido significa besta de carga. Só que não existe nenhuma Sociedade Protetora dos Maridos pra te socorrer. Aí você respira fundo e vai assistir à peça Um escândalo numa família de respeito ou outra bobagem do gênero. E tem que bater palmas quando sua esposa manda e chorar junto com ela nas cenas de emoção. Quando a peça acaba você está a ponto de ter um ataque apoplético. Mas ainda não terminou não. Tem mais, tem muito mais. No clube você tem que assistir às danças e se não tiver nenhum cavalheiro para dançar com sua esposa, tem que dançar você mesmo a quadrilha. Aí você chega em casa depois da meia noite, mais morto do que vivo, querendo uma cama e mais nada. Finalmente você tira todos os seus arreios de besta de carga e se deita. Agora é só fechar os olhos e adormecer. Não é lindo? Você bonito e confortável na sua cama, deitadinho e pronto para dormir. As crianças não estão gritando no quarto ao lado, sua esposa não está, e você não tem mais nada na consciência. Podia ser melhor? Mas quando você está prestes a adormecer começa o barulho: bzzzzzzzz. Mosquitos! (Se levanta num pulo) Mosquitos! Os desgraçados sugadores de sangue. (Ergue o punho) Mosquitos! Pior que as pragas do Egito ou a Inquisição espanhola. Bzzzzzzzzz. Os desgraçados mordedores vêm vindo, lentamente, procurando uma vítima: você! Aí começa a coceira interminável. Você acende um cigarro, dá coices, se esconde debaixo do cobertor, mas não adianta. Eles insistem em fazer a refeição deles e se encher com seu sangue. Então você desiste e entrega seu corpo para ser imolado pelos bastardos. Mas antes que os mosquitos acabem com você, vem o terror maior. Sua esposa começa a cantar na sala de visitas com alguns amigos. Tenores! Tenores! Eles dormem o dia todo pra poderem cantar à noite. Eu não sei o que é pior: os tenores ou os mosquitos. (Canta) “Oh, não me digas que sua jovem vida está arruinada. Mais uma vez, cá estou eu extasiado diante de ti”. É como morrer fatiado num churrasco. Pra abafar as vozes deles eu inventei uma tática: fico batendo na cabeça assim, bem perto dos ouvidos. São horas e horas de batucada até que eles vão embora, lá pelas 4 da manhã. Argh! Mais água, meu velho, que eu estou exausto. Aí, às 6 da manhã, após uma noite inteira em claro, você se levanta atrasado e corre para a estação pra pegar o trem, no meio da lama, da névoa e do frio. Brrr! E quando você chega na cidade começa tudo de novo. É assim que são as coisas, meu velho. É uma vida podre que eu não desejo ao meu pior inimigo. Eu estou arrasado, com asma, azia, má digestão, tonteiras, estou no meu limite. Eu me transformei num psicopata. Não conte pra ninguém, mas estou até pensando em procurar um psicanalista. É assim que eu me sinto, meu velho. Tem horas que eu tenho vontade de bater com a cabeça na parede e correr pela casa gritando: ‘Eu quero sangue! Eu quero sangue!’ É isso o que as férias de verão fazem com você. E ninguém tem pena não. Até riem. Mas não tem graça nenhuma. É uma tragédia, uma verdadeira tragédia! Olha aqui, se você não vai me emprestar o revólver, pelo menos mostre um pouco de compaixão.


Murashkhin - Mas eu tenho compaixão por você.


Tolkatchov - É, dá pra ver. Bem, até logo. Eu vou comprar um pouco de arenque e salame, e... um pouco de pasta de dente e correr para a estação.


Murashkhin - Onde é que você está passando as férias?


Tolkatchov - No Riacho do Cadáver.


Murashkhin (Alegre) - É mesmo? Por acaso você não conhece uma mulher por lá chamada Olga Finberg?


Tolkatchov - Conheço, é uma amiga nossa.


Murashkhin - Não me diga! Que coincidência, seria ótimo se você...


Tolkatchov - Se eu o quê?


Murashkhin - Meu amigo, você poderia me fazer um pequeno favor? Por favor, diga que sim.


Tolkatchov - O que é?


Murashkhin - Primeiro dê meus cumprimentos a Olga e diga que eu estou bem e que lhe mando um beijo. Depois entregue essa máquina de costura e essa gaiola com esse canário para ela. Só tenha cuidado para a porta da gaiola não quebrar e o canário fugir. O que você está olhando?


Tolkatchov - Máquina de costura, gaiola, canário. Por que você não me manda levar o aviário todo?


Murashkhin - O que houve, homem? Você está ficando vermelho.


Tolkatchov (Se levanta) - Me dá a máquina de costura. Cadê a gaiola? Agora sobe nas minhas costas, coloca os arreios e me chicoteia. (Cerrando os punhos) Eu preciso de sangue! Sangue!


Murashkhin - Você ficou maluco?


Tolkatchov (Rosnando para Murashkhin) - Eu quero sangue! Sangue! Sangue!


Murashkhin - Ele ficou louco! (Grita) Peter! Mary! Onde estão esses criados? Socorro!


Tolkatchov - (Perseguindo Murashkhin pela sala) - Eu preciso de sangue! Sangue! Sangue!


FIM
* * *

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