Teatro/CRÍTICA
"Música para cortar os pulsos"
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Montagem imperdível no Sesc
Lionel Fischer
Muitos sustentam que uma boa idéia é meio caminho andado para um produto final de qualidade. No entanto, e mesmo reconhecendo que partir de uma boa idéia é melhor do que iniciar qualquer coisa tendo como premissa uma má idéia, a primeira hipótese não oferece garantia alguma. Senão, vejamos.
Qual a melhor peça já escrita? Digamos que seja "Hamlet". E o que vem a ser "Hamlet"? O texto nos mostra um príncipe que, logo no início da trama, encontra o fantasma de seu pai que, após lhe confessar que foi morto por seu irmão - que ora ocupa o trono, casado com a mãe de Hamlet, esta totalmente cúmplice no assassinato - pede ao filho que o vingue. Passados cinco atos, o príncipe finalmente atende ao desejo de seu pai.
Pois bem: estaríamos diante de uma boa idéia? De uma idéia absolutamente brilhante? É óbvio que não. No entanto, um enredo que poderia gerar um insuportável dramalhão foi convertido, pelo fabuloso bardo, em insuperável obra-prima, por razões que todos estão cansados de conhecer.
Chegamos, por fim, a "Música para cortar os pulsos". E do que trata a peça, se restrita ao seu enredo? Estamos diante de três jovens, todos na casa dos 20 anos. Isabela sofre porque foi abandonada. Felipe quer se apaixonar. Ricardo, seu amigo, está apaixonado por ele. Uma boa idéia? Provavelmente nem melhor nem pior do que qualquer outra. E no entanto, trata-se de um texto absolutamente brilhante e que recebeu versão cênica simplesmente maravilhosa.
Após cumprir excelente temporada em São Paulo, a montagem - contemplada como a melhor de 2010 (Espetáculo Jovem) pela Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA) e premiada na Festa Internacional de Teatro de Angra (FITA) em 2011 (espetáculo, direção e iluminação) - está em cartaz no Espaço Sesc (Mezanino) em curtíssima temporada. Uma produção da Empório de Teatro Sortido, a peça leva a assinatura de Rafael Gomes, também responsável pela direção, e tem elenco formado por Fábio Lucindo (Felipe), Mayara Constantino (Isabela e apresentadora de TV) e Victor Mendes (Ricardo).
O primeiro mérito do texto reside em sua natureza confessional, já que os personagens não dialogam entre si, ainda que interajam. Mas isso não constitui novidade, pois o recurso já foi muito utilizado. Aqui, no entanto, é trabalhado de forma tão sincera, tão visceral, priorizando muito mais as dúvidas do que improváveis certezas que o público se converte, desde o primeiro momento, em cúmplice do que assiste.
Ao mesmo tempo, os atores declamam textos de canções de Chico Buarque, Marina Lima e Roberto Carlos, dentre outros, sendo as dez cenas que compõem o espetáculo sublinhadas por uma trilha sonora que inclui Gal Costa ("Três da madrugada"), The Cure ("Boy's don't cry"), Beach Boys ("God only knows), Debussy ("Clair de lune") e Piazolla ("Tango apasionado"), além de trechos de óperas e trilhas de filmes. Todas as músicas, evidentemente, exibindo forte conexão com os principais temas abordados pelo texto: paixões, desejos, perdas, carências e separações.
Sob todos os pontos de vista, "Música para cortar os pulsos" é um dos melhores textos já escritos sobre o universo jovem atual. Valendo-se de personagens muito bem estruturados e de uma linguagem altamente poética, Rafael Gomes evidencia um potencial dramatúrgico que, salvo monumental engano de minha parte, em breve o tornará um dos autores mais importantes deste país.
Quanto ao espetáculo, este exibe uma dinâmica cênica despojada e aparentemente simples. Mas tal "simplicidade" é totalmente enganosa, posto que fruto de escolhas que, desprovidas de inúteis mirabolâncias formais, conseguem materializar de forma sensível e absolutamente original todos os conteúdos em jogo. E para aqueles que se deslumbram com efeitos, não custa nada lembrar que Peter Brook, o maior encenador vivo, já há muitos anos encena seus espetáculos renunciando a todos os aparatos que costumam seduzir espectadores levianos - sua versão de "A tempestade", de Shakespeare, tinha como cenário apenas um tapete vermelho...
No que diz respeito ao elenco, Fábio Lucindo encarna com notável competência o jovem indeciso quanto à sua sexualidade, a mesma eficiência presente na performance de Victor Mendes, que dá vida ao gay - e aqui cumpre destacar o belíssimo monólogo em que Ricardo explicita sua paixão com um texto que, em sua maior parte, começa com frases de negação.
Quanto a Mayara Constantino, estamos diante de um talento que só aparece a cada década. Engraçadíssima quando dá vida à desvairada apresentadora de TV, Mayara nos comove e encanta com sua espantosa capacidade de dizer o texto sem jamais apelar para recursos melodramáticos, o que também ocorre com seus companheiros de cena. A jovem atriz convence em todas as passagens, tanto nas mais dramáticas quanto naquelas (não muitas) em que o humor predomina. Exibe presença, carisma, ótima voz e, digamos, um certo mistério, uma certa economia emocional que nos faz supor que ainda não colocou todas as suas cartas na mesa. E, efetivamente, ela não as coloca, o que nos leva a esperar com ansiedade sua próxima fala. Enfim...os que comparecerem ao Espaço Sesc haverão de compreender o que, no presente momento, não consigo expressar exatamente como gostaria através das palavras - estas, como se sabe, costumam se ausentar nos momentos em que delas mais necessitamos...
Na equipe técnica, considero brilhantes as participações de todos os profissionais envolvidos nesta imperdível empreitada teatral, que o público carioca certamente haverá de prestigiar de forma incondicional - André Cortez (cenografia), Marisa Bentivegna (iluminação) e Anne Cerutti (figurinos).
MÚSICA PARA CORTAR OS PULSOS - Texto e direção de Rafael Gomes. Com Fábio Lucindo, Mayara Constantino e Victor Mendes. Espaço Sesc (Mezanino). Quinta a domingo, 21h30.
sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012
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