Breves considerações sobre
eventuais impasses que podem
surgir no exercício da crítica teatral
Lionel Fischer
Sempre que dou palestras sobre crítica teatral, seja em escolas, faculdades ou festivais, invariavelmente me são feitas as mesmas perguntas, tais como: "Qual o papel da crítica? Quais os requisitos básicos que alguém deve possuir para exercer este ofício? A crítica pode ou deve exercer alguma influência sobre o leitor? A crítica pode ou deve estabelecer um diálogo com os artistas envolvidos em uma montagem? - e assim por diante.
Sobre tais perguntas, já falei muito e muito escrevi. Mas o que me motivou a escrever as poucas linhas que se seguem diz respeito a uma dúvida manifestada por um jovem que está começando a escrever sobre teatro - obviamente que não mencionarei seu nome. Ele me telefonou e disse o seguinte: "Cara, assisti ontem a um espetáculo de uma pessoa muito querida e simplesmente detestei. Ele é sério, talentoso, super bem intecionado, mas o resultado é lamentável. Não sei o que fazer!?". Então, eu lhe contei a história que se segue.
Minha primeira, fortíssima e eterna ligação com o teatro se deu com o Tablado, onde entrei com 15 anos e fiquei até os 21, sempre aluno de Maria Clara Machado. A segunda, e também fortíssima ligação com o teatro, se deu com o Teatro Ipanema, ainda quando estava no Tablado.
Casei-me aos 18 anos com uma das irmãs de Leyla Ribeiro, mulher de Ivan de Albuquerque, fundador do Ipanema junto com Rubens Corrêa. Assisti à construção do Ipanema e participei de sua inauguração - o teatro iniciou suas atividades com "O Jardim das Cerejeiras", de Tchecov, e no horário infantil aconteceu a estréia mundial de "Aprendiz de Feiticeiro", de Maria Clara Machado. Na peça adulta, eventualmente substituía Ivan no pequeno papel de um mendigo, pois ele tinha crises renais com freqüência. No infantil, dirigido por Maria Clara, fazia o apaixonado Juventus.
A partir daí, minha relação com o Ipanema foi se solidificando e também minha relação pessoal com Ivan, Leyla e Rubens. Este último, talvez o maior ator que este país produziu, sempre teve para comigo uma postura extremamente fraterna e foi uma pessoa fundamental não apenas na minha formação, mas também na minha compreensão do que deveria ser o papel de um ator na sociedade em que vive.
Pois bem: 20 anos depois sou convidado pelo O Globo para assumir a crítica teatral do jornal. E a primeira montagem que me mandaram analisar foi "PeçaSonho", uma adapção de "O Sonho", de Strindberg, dirigida por...Rubens Corrêa!!! Vocês bem podem imaginar a alegria que tomou conta de mim, já que começaria minha carreira como crítico analisando o trabalho de alguém que admirava apaixonadamente!
Para meu desespero, no entanto, achei a montagem muito confusa, mal estruturada, com atuações decepcionantes etc. Desolado, fui para casa, me sentei diante da máquina de escrever - era a única pessoa no Rio de Janeiro, ao que imagino, que ainda não possuía computador...
E diante da máquina permaneci, aterrorizado, de meia-noite às quatro da manha!? - e aqui cumpre registrar que sempre escrevi muito rápido; posso ficar pensando algum tempo, mas quando a escrita começa, ela tem a bondade de sempre fluir.
Mas não encontrava as palavras. Não sabia como manifestar minha decepção sem ser deselegante, sem ferir alguém que eu amava profundamente. Escrever que havia gostado seria completamente falso, uma afronta aos mais elementares valores éticos. Me senti, durante essas quatro horas, uma espécie de Hamlet, ainda que destituído da célebre caveira...
Finalmente, senti uma dor no lábio superior. Fui ver o que poderia ser. Havia me nascido um hérpes...
Então, pensei o seguinte: se queria exercer, dentre outras funções, a de crítico teatral, tinha que superar esse impasse, por mais doloroso que fosse. Afinal, já tinha, naquela época como hoje, uma infinidade de amigos na classe teatral e certamente viveria muitas situações parecidas.
Tomei, então, coragem, e de um só fôlego escrevi a tal crítica, fazendo todas as restrições que julgava procedentes. E, naturalmente, tive certeza de que minha relação com o Rubens sofreria um forte abalo.
No entanto, logo após a crítica ser publicada, ele me telefonou. Atendi, ansiosíssimo, já prevendo uma possível ruptura. Mas, contrariando minhas expectativas mais funestas, Rubens Corrêa não só agradeceu a crítica como disse, com total tranquilidade, que concordava com tudo que eu havia escrito!?!
Ainda que aliviado, perguntei como ficaria nossa relação se ele não tivesse concordado com absolutamente nada. Rubens retrucou: "Isso não mudaria nada, continuaria te respeitando da mesma forma. Não te respeitaria se você mentisse em nome da nossa amizade. Acertar e errar faz parte do jogo. Dessa vez, errei. Mas quem sabe não acerto na próxima?"
E riu, como de hábito, de forma suave e encantadora. Então contei do hérpes. Aí ele gargalhou (ainda que no estilo Rubens, que fique bem entendido) e me receitou uma pomadinha...
Grande e inesquecível Rubens Corrêa!!!
Enfim...contei essa história a meu jovem amigo. Ele ficou profundamente aliviado e me pediu licença, pois estava animadíssimo para escrever sua crítica.
À guisa de despedida, depois de parabenizá-lo por ter tomado essa decisão, apenas lhe sugeri que, nessa crítica ou em qualquer outra, fossem quais fossem suas restrições, jamais se esquecesse de expressá-las com educação, respeito e ternura.
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quinta-feira, 19 de abril de 2012
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Que lindo, lindo texto esse, Lionel! Obrigado por compartilhar essa história conosco. Parabéns. Abraços, Rodrigo Monteiro
ResponderExcluirNesse curto período que venho me dedicando a estudar a crítica, tenho observado a reação dos atores, diretores, produtores. Tenho, hoje, muito mais amigos da classa artística do que críticos. E vejo que essa relação não costuma ser nada fácil. Não que os críticos sejam grosseiros, mas qualquer aspecto negativo que seja citado, em geral, desestabiliza os artistas. Considero essa reação do Rubens Correa bastante rara. Creio que é preciso ser experiente e aberto as instabilidades da arte para não reagir de forma mais contundente.
ResponderExcluirSensacional. Parabéns!
ResponderExcluirParabéns pelo respeito pela sua profissão! Isso foi, de fato, admirável!
ResponderExcluirRodrigo amigo:
ResponderExcluirRelamente é uma história muito bonita.
Fico feliz que tenha gostado.
Abraços,
Eu
De fato, amigo, respeito é tudo.
ResponderExcluirAliás, trata-se de um "artigo" um tanto escasso no mercado, você não acha?
Abraços,
Eu
Helena amiga:
ResponderExcluirTodas as relações podem ser, eventualmente, muito delicadas. Mas me parece que há um "quesito" que facilita as coisas: não se achar, jamais, detentor do monopólio de nenhuma verdade. E aprender a conviver com divergências é sempre salutar e enriquecedor.
Beijos,
Eu