O Reviramento da verdade em Pirandello
(The Reversal of truth in Pirandello)
Resenha da peça de teatro Adultério, criação coletiva da Cia. Atores de Laura, direção Daniel Herz, inspirada na Obra de Pirandello.
Por: Evelyn Disitzer, psicanalista, membro da Escola Letra Freudiana, mestre em Psicologia Clínica pela PUC - Rio.
Colaboração: Paula Strozenberg, psicanalista, membro da Escola Letra Freudiana.
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A psicanálise desde seus primórdios inaugurou um corte radical. Quando inventa o inconsciente, Freud faz prevalecer no humano um descentramento entre o que se sabe de si e um outro texto; entre o manifesto e o latente. Entre outros, esse corte radical que inaugura o discurso analítico – no qual Freud, através das histéricas e de seus sintomas, desenvolve seu método, a cura pela palavra – é o corte que mostra a cisão entre o saber e a verdade. Há uma outra cena que prevalece no sintoma histérico. A marca traumática é, em sua dupla temporalidade, a posta em jogo do inconsciente aonde o sujeito não sabe nada disso. O saber, conforme a ciência profetiza, universalizante, parece não fazer valer nada que minimize o sofrimento neurótico. A verdade do sujeito encontra-se no inconsciente e é singular.
Penso onde não sou, logo sou onde não penso. (...) O que cumpre em dizer é: eu não sou lá onde sou joguete do meu pensamento; penso naquilo que sou lá onde não penso pensar. Esse mistério de duas faces liga-se ao fato de que a verdade só é evocada na dimensão de álibi pela qual todo o realismo na criação retira da metonímia sua virtude, e é o fato de que o sentido só fornece seu acesso nos dois ramos da metáfora quando se tem a chave única de ambos. (LACAN, 1957/1998. pg. 521)
O teatro de Pirandello se articula neste ponto. Em suas peças coloca em cena, com brilhantismo, a discussão freudiana entre saber e verdade. Discute a problemática da relatividade da verdade, sublinhando o ponto chave aonde o que parece isso desdobra-se naquilo, subvertendo a ordem estabelecida e criando uma impressão de que a realidade é ilusão e vice-versa.
Em Seis personagens a procura de um autor, Pirandello discute a questão da autoria levando a plateia a uma espécie de miragem, uma vertigem, na qual a realidade ganha todo seu valor de ilusão. Do mesmo golpe, toda a ilusão tem seu estatuto de realidade na medida em que o que está em jogo é sempre um certo ponto de vista. É essa mesma vertigem que o público experimenta em Adultério, espetáculo da Cia. Atores de Laura, sob a batuta saborosa do diretor Daniel Herz. A peça, inspirada na Obra de Pirandello, desenrola-se numa sucessão de cenas que revelam, cada uma delas, uma situação particular na qual a temática do adultério é posta de um modo ímpar.
Adultério é um dos temas de Pirandello, porém, para além do tema em si, o que a peça nos demonstra com mestria é a sequência rápida e ágil dos pontos onde uma cena se transforma em outra, inusitadamente, colocando em relevo os pontos de reviramento onde o que parece ser não é bem o que parece. Se o espectador procura seguir uma cena, é surpreendido com seu reviramento, uma espécie de engano; é a repetição incessante desse reviramento que causa a vertigem, que embaraça a realidade e a ficção. É impossível capturar o drama. As cenas imprimem o eterno desencontro amoroso de que os sujeitos humanos são sempre protagonistas. O significante é sempre adúltero.
O ponto de ligação entre as cenas produz exatamente a virada, a subversão do que até então parecia realidade e se mostra uma sucessão de experiências ilusionistas. Aquilo que parece ser se transforma em outra coisa: o que parecia ser uma aula de piano se revira em um casal gay vivendo uma fantasia sexual; essa fantasia parece terminar num homicídio, mas revira e são dois policias reconstruindo uma cena de um crime; assim sucessiva e infinitamente, provocando no público a tal da experiência vertiginosa na qual ilusão e realidade interagem como numa banda de Moebius. Não existe realidade sem a ilusão de sua existência.
No famoso quadro de Escher, a formiguinha anda na tal da banda de Moebius de forma que a fronteira entre o dentro e o fora, entre a ilusão e a realidade, é abolida nos passos dela. Ou seja, há uma espécie de continuidade na caminhada da formiga que nos faz perceber, diferente do discurso da ciência, que o que é da ordem da ilusão pode nos parecer realidade e vice-versa. Assim é se lhe parece!, nos diria Pirandello, corroborando a formulação psicanalítica de que a verdade se refere à singularidade do sujeito do inconsciente, jogando por terra a pretensão cientificista da universalidade.
Ao assistir a criação dos atores, salta aos olhos e aos ouvidos o que da Obra de Pirandello merece relevância, por encenar esse drama tão propriamente humano e atual. O teatro, como possibilidade de ficcionalização da vida, é uma possibilidade humana inaugurada na Grécia Antiga. A capacidade da ficção está extraordinariamente vinculada à invenção do inconsciente por Freud. Ele escutou o que as histéricas revelaram com seus sintomas muitas vezes tão teatrais, tão ficcionalizados. Desde a sua constituição, o sujeito experimenta em sua falta estrutural, fundada numa alteridade indelével necessária à existência humana, a construção da borda de sua incompletude, construção essa que não vai sem a ficção.
A consultoria psicanalítica junto à Cia. Atores de Laura deu relevância a ideia pirandelliana de que a verdade é singular. Transformar isso em dramaturgia é também uma proposta moebiana. Uma aposta no ponto de articulação entre teatro e psicanálise, nessa dupla possibilidade de interação.
Referências bibliográficas:
FREUD, S. (1969) “Estudos sobre a histeria” in Obras Completas Vol. VOL II. Rio de Janeiro: Imago.
_________ (1969) “O Inconsciente” in Obras Completas Vol. VOL XIV Rio de Janeiro: Imago.
LACAN, J. (1957/1998) “Instância da Letra no inconsciente” in Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
__________. (1965/1998) “A ciência e a verdade” in Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
PIRANDELLO. (2004) “Seis personagens a procura de um autor”. São Paulo: Peixoto Neto.
_____________. (2000) “Assim é se lhe parece”. São Paulo: Cosac Naify.
_____________. (2006) “Um nenhum cem mil”. São Paulo: Cosac Naify.
_____________.(2003) “O falecido Mattias Pascal”. São Paulo: Nova Cultural.
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terça-feira, 10 de abril de 2012
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