O Dramaturgo como Pensador
Introdução
Richard Gilman
Um homem caminha ao meu lado e eu o reconheço de fotos que vi em capas de livros ou nos jornais. É mais alto do que eu supunha, muito mais alto que Brecht, em cujos traços vagamente (é o que me parece, como um doce tributo) modelou sua aparência, pelo menos, nos cabelos, que usa em mechas. É uma linda tarde verão e a Commercial Street, a rua principal de Provincetown, está lotada de passantes, alguns andando para cima e para baixo, como um paseo mexicano. Trata-se de uma celebridade, e para mim uma das maiores.
Quando passa à minha frente, digo de quem se trata às pessoas que estão comigo, e resolvo apresentar-me a ele. É o que faço. Corro, interrompo seu caminho e digo: "Senhor Bentley, é um prazer vê-lo aqui". Digo-lhe meu nome e acrescento, "admiro seu trabalho há muito tempo".
Não há tanto tempo assim, para dizer a verdade. Estávamos no verão de 1962. Eu escrevia sobre teatro desde o outono do ano anterior, quando fui convidado (talvez pelo meu estilo, pela revisão de algumas traduções novas de Ibsen e, suponho, também pela confiança em minha capacidade de aprender) para ser crítico teatral da Revista Commonweal.
Fui uma escolha surpreendente. Não tinha feito estudos regulares de dramaturgia, nem de teatro; minha única "experiência" prática residia em ter atuado em algumas pecinhas na escola e no acampamento de verão. Até há poucos anos, não tinha o menor interesse pelo palco. Nesse aspecto, assemelhava-me à maioria de meus contemporâneos intelectuais, para os quais a dramaturgia, pelo menos a que encontrávamos neste país, era uma arte distintamente inferior à ficção ou à poesia.
Podíamos, é claro, abrir exceção para um Shakespeare ou Tchecov, mas encarávamos seus trabalhos mais como literatura do que como teatro (como ainda são vistos pelos departamentos de Inglês ou Literatura Comparada). Além disso, eles sobreviveram de um passado que tinha, de alguma forma, sido capaz de gerar uma verdadeira arte dramática, que não mais existia - era o que pensávamos do alto de nossa sofisticação -, vendo a chamada dramaturgia "moderna" como um deserto árido.
Portanto, quando comecei a escrever profissionalmente, escrevia e pensava sobre poemas, contos e novelas, assim como sobre teorias culturais. Parece ser exagerado dizer que os livros de Eric Bentley, especiamente O Dramaturgo como Pensador, me fizeram abrir os olhos para as possibilidades estéticas e intelectuais do palco (assistir Esperando Godot, em 1954, também representou um grande papel no meu despertar), mas seus escritos realmente foram o grande impulso que tive naquela época para definir um rumo.
Ele foi o que naquele período ainda não chamávamos de "papel modelo". Se o fato de me tornar um crítico teatral representou ou não uma ascensão cultural, não tenho a menor dúvida de que Bentley produziu o mesmo tipo de efeito revelatório - como que uma limpeza de idéias, lançando luz onde existiam trevas - em muitas pessoas além de mim: estudantes de artes, literatos e, com o correr do tempo, até mesmo calejados profissionais do teatro.
Não será surpreendente verificar que foram esses últimos os que ofereceram maior resistência a deixar-se iluminar? Não li O Dramaturgo como Pensador quando foi publicado em 1946, porque essa foi a fase extrema de minha não-preocupação com o teatro, mas li-o alguns anos mais tarde e fiquei tão inspirado que empreendi uma pequena pesquisa sobre a repercussão contemporânea do livro.
Foi tudo menos um "acontecimento editorial", embora tenha merecido umas notas respeitosas e uma ou duas laudatórias. As reações que despertou no Universo teatral e seu satélite da cobertura jornalística teatral foram desde o desdenhoso, chocado e horrorizado, até, no melhor dos casos - ou talvez, o pior - o condescendente. Se me lembro corretamente, a reação do meio acadêmico não foi muito mais acolhedora.
Tomo algumas liberdades com a linguagem do que poderíamos chamar de réplica do conservadorismo para com O Dramaturgo como Pensador, mas sua essência era o seguinte: "Como poderia estar correto o enfoque deste autor?" Como podem os dramaturgos ser pensadores, quando todos sabem que são pessoas que sentem? Lidam com emoções e não com idéias - não é?" Bem, não é isso?"
Não, não é isso, não ao pé da letra. Mais do que qualquer outro crítico, Bentley deu à teoria, observação e prática do teatro neste país - e a mim, com toda a certeza - um meio de desmistificar uma distinção tão preconceituosa e errônea. Francis Fergusson colaborou com o trabalho de demolição e reconstrução, mas Fergusson foi muito mais estreito.
Mente ou corpo, pensamento ou sentimento, idéias ou emoções - tais antíteses cruas e ofensivas já possuem uma longa história de teram causado desgraça intelectual à América, em nenhum outro campo mais flagrante e debilitante do que no teatro. À sua maneira espirituosa, Edgar Allan Poe foi o primeiro a detectar a doença; Henry James (cuja crítica teatral ainda é pouco conhecida) ampliou o diagnóstico e receitou sua cura, mas foi Bentley quem atualizou a profilaxia e a divulgou.
Os pontos que ele ressaltou em O Dramaturgo, e nos escritos que viriam a seguir, são, em essência, que a dramaturgia é, ou tem sido, uma arte tão densa, ou maleável, ou reverberante, ou misteriosa, ou vigorosa, ou perturbadora quanto qualquer outra; que, tanto quanto outros artistas, os dramaturgos pensam de maneira apropriada à sua arte; que o pensamento, na arte, é o processo pelo qual a emoção crua, não imediata - com suas traições e enganos, sua indução à cegueira - é apresentada à mente, localizada, explorada e trazida a uma relação com a experiência e a imaginação. Em outras palavras, trazida à consciência.
Quando Pirandello disse que o que era "novo" em suas peças era que nelas ele havia "convertido o intelecto em paixão" (poderia também ter dito que os unira, que tornara cada um deles um aspecto do outro), bem pode ter exagerado sua originalidade. Ele teve grandes predecessores, mas a observação e a ação por ele descritas foram corretas e surpreendentes, nas condições do teatro de seus dias.
O intelecto e a paixão sempre foram complementares, recíprocos; mas a sabedoria adquirida do teatro, mesmo em sua admiração pelos "clássicos", persistia em julgá-los contrários. É isso que existe por trás da tendenciosa rejeição de Godot, por Walter Kerr, como uma "lição de filosofia" e não como uma peça; e o que existe por trás também da opinião estabelecida - amplamente difundida em minha juventude (e que ainda remanesce aqui e ali) - de que, por exemplo, Ibsen é todo intelecto ou "idéias", sem nenhuma paixão; de que Strindberg é sentimento bruto, sem nenhum espírito, e de que Tchecov, segundo a noção confortável e imbecil, não se ocupava nem de paixão nem de pensamento, mas duma coisa amorfa, nebulosa, "acridoce", delicada, existente no meio-termo.
Pirandello, Ibsen, Strindberg, Tchecov, Brecht e, em menor extensão, Shaw, foram os dramaturgos de nossa era moderna que o livro de Bentley resgatou para mim da obscuridade, da má interpretação, da calúnia, ou talvez, do mais mortal perigo de todos, do acadêmico. Em suas páginas também, pela primeira vez, encontrei-me com seus ancestrais do século XIX, tão negligenciados (todos alemães, por acaso): Kleist, Grabbe e principalmente Büchner; e dramaturgos que conhecia apenas como novelistas ou poetas: Zola, Yeats, Lorca. Como também fui apresentado por seu livro a teóricos e praticantes que não conhecia e dos quais meramente tinha ouvido falar: Appia, Gordon Craig, Antoine etc; e aos críticos: Stark Young, Shaw e Beerbohm, nesse aspecto de suas carreiras. Fui educado por O Dramaturgo.
O livro mantém-se admiravelmente bem e embora A Vida da Dramaturgia possa ser uma obra melhor, - seguramente é melhor organizado e mais ousado - não ocupa o lugar do Dramaturgo como centro de minhas afeições. Mas uma coisa me ocorre, é que o livro parece ter servido (como Bentley diz que Brand e Gynt fizeram por Ibsen) de "jazida", da qual retirou material para a maior parte do que escreveria mais tarde.
Com o passar dos anos, li tudo o que Bentley publicou, recuperando o tempo perdido, lendo os livros que tinham surgido durante meus tempos de indiferença pelo teatro. Nem sempre fui persuadido por ele (o livro sobre Shaw não me convenceu de que esse autor tenha conseguido realizar tudo o que Bentley afirma), e às vezes discordei de algumas proposições teóricas - sobre a natureza do melodrama, por exemplo. Mas fui maravilhosamente instruído, recebi maiores conhecimentos sobre a dramaturgia e o palco.
Penso na série de crônicas que publicou nos anos 50 - In Search of Theatre, The Dramatic Event, What is Theatre? - nas críticas semanais reunidas em livro, juntamente com artigos ocasionais. Jamais houve na América um jornalismo de idéias tão flexível, espirituoso, profundo e não-acomodado. Foi sua a voz da razão pelo - ou sobre, ou contra - teatro americano daquela época; foi ele o seu policial incansável e competente, para usar uma das definições de Shaw da tarefa do crítico.
Pensei em consultar os livros que mantenho sempre em uma estante perto de minha mesa, mas percebi então que não era necessário refrescar minha memória, pois ela pode rapidamente me oferecer um sem-número de artigos exemplares. Recordo-me primeiramente de Trying to Like O'Neill, que ainda é o juízo mais contundente que conheço sobre o nosso (ai de mim!) melhor dramaturgo.
Logo então outros trabalhos começam a acumular-se: Doing Shakespeare Wrong; The China in the Bull Shop (um tributo bem humorado a Stark Young, seu predecessor em The New Republic); Craftsmans-hip in Uncle Vanya; The Stagecraft of Brecht; Tennessee Willimans and New York Kazan (uma descrição lindamente equilibrada do dramaturgo e uma avaliação igualmente astuta das virtudes e delinqüências do diretor); The Broadway Inteligantsía (em sua maior parte, pessoas que classificam os dramaturgos como dominados pelo sentimento); Is Drama an Extint Species?, com suas observações prescientes sobre o cinema como uma ameaça estética ao teatro.
Quando chegou minha vez de escrever meu próprio livro, The Making of Modern Drama, fiquei assustado ao me descobrir com o impulso de citar Bentley a cada página. Então dei uma reviravolta: caindo profundamente no Complexo de Influência, comecei a mantê-lo afastado de minha mente. Embora Eric Bentley não tivesse idade para ser meu pai biológico, espiritualmente, intelectualmente, foi meu progenitor e, se não podia matá-lo, ainda que metaforicamente, podia pelo menos mantê-lo afastado.
Mesmo assim, apesar de todo o meu esforço para evitá-lo, lembro-me que meu editor comentou delicadamente a freqüência com que os comentários de Bentley surgiam em meu texto, ao que lhe respondi que se tratavam somente de casos onde eu não tinha sido capaz de dizer melhor, ou com qualquer grau de originalidade, o que ele já tinha dito.
Ao fim e ao cabo, o tempo supera a todos nós, e não é surpreendente que, nos anos recentes, Bentley tenha desaparecido um pouco do que chamamos de "desenvolvimento" do teatro, ou que isso o tenha ultrapassado. É verdade, porém, que sua energia dirigiu-se mais para as suas próprias peças e seu trabalho como ator; o crítico entrava na arena depois de observá-la durante tanto tempo com olhos a que nada escapava. A política passou a ocupá-lo mais diretamente do que antes, a realidade política, cuja presença na dramaturgia tinha sido uma das verdades desconfortáveis que ele exumara e colocara diante de um mundo teatral que preferiria não tê-la visto.
Embora meus valores políticos não estejam tão distantes dos dele, não compartilho de todas as suas posições particulares e freqüentemente me descubro irritado com suas diatribes. Mas ele tem direito a elas, e está certo. Eric Bentley está com mais de setenta anos e quero dizer-lhe e a quantos leitores puder alcançar, o quanto ele significou para mim. Com todos os prêmios que nosso autocongratulório teatro está sempre se concedendo, deveria haver um para ele. Mas, possivelmente, ele o recusaria; com sua voz estridente e hesitante, diria qualquer coisa obliquamente elegante, talvez parafraseasse Brecht, citando que qualquer instituição que necessite de heróis está em péssima forma. Pois bem, estávamos em péssima forma e necessitando dele.
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Extraído de O Dramaturgo como Pensador, tradução de Ana Zelma Campos, Editora Civilização Brasileira. O livro, escrito em 1946, foi lançado no Brasil em 1987, e trata-se de leitura obrigatória para os amantes do teatro.
quarta-feira, 25 de abril de 2012
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