Teatro/CRÍTICA
"A negra Felicidade"
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Realidade e ficção no Serrador
Lionel Fischer
O fato é real, o documento, histórico: os autos de um processo de 1870. Uma negra, chamada Felicidade, entra na justiça pleiteando sua liberdade. Mas recebe uma bizarra sentença: ela será livre desde que trabalhe como escrava (juntamente com sua mãe) para o seu senhor, durante três anos.
Paralelo ao fato, dois textos ficcionais: o "Sermão de Santo Antonio aos peixes", de autoria do padre Antonio Vieira, que defende apaixonadamente a igualdade entre os homens; e a célebre fala de Trofímov a Ânia, em "O jardim das cerejeiras", de Tchecov, na qual o personagem defende a tese de que, para viver plenamente o presente, impõe-se expiar o passado.
Realidade e ficção, portanto, estão presentes em "A negra Felicidade", mais recente produção da Companhia Alfândega 88, em cartaz no Teatro Serrador. Moacir Chaves responde pelo texto e pela direção, estando o elenco formado por Adriana Seiffert, Mariana Guimarães, Peter Boos, Fernando Lopes Lima, Elisa Pinheiro, Renata Guida, Leonardo Hinckel, Diego Molina, Andy Gercker, Danielle Martins de Farias, Pâmela Côto, Rita Fischer e Edson Cardoso.
Como muitas montagens oriundas de textos não escritos especificamente para o palco, esta poderá causar algum espanto, quem sabe um certo desconforto. E por traz desse espanto e desconforto paira inevitavelmente a mesma pergunta: "Mas por quê montar isto?", quando o mais salutar, correto e libertário seria perguntar: Por quê não montar isto?
Em seus 25 anos de carreira, Moacir Chaves encenou mais de 40 espetáculos, alguns partindo da mesma premissa: textos não escritos para o teatro. Curiosamente, em dois deles ("Bugiaria" e "Sermão da Quarta-Feira de Cinzas") ganhou todos os prêmios disponíveis. Será que nestes casos os puristas de plantão torceram seus graciosos narizes? Ao que me parece, não...
Assim, o que está em causa é o desejo deste artista de materializar no palco questões que julga relevantes. E, no presente caso, são abordados temas mais do que pertinentes, como a exploração, a intolerância, o desejo de liberdade e a possibilidade de os homens considerarem-se irmãos, dentre muitos outros.
Mas é possível que alguns espectadores julguem, digamos, um tanto difícil acompanhar as passagens relativas aos autos do processo, já que as mesmas mantêm a linguagem da época - e, mais ainda, a linguagem específica dos tribunais. Pois bem, que seja: mas, e daí? Melhor seria adaptar essas passagens para uma linguagem atual e fazer o mesmo com os autos do processo, a eles impondo uma dramaturgia convencional? Talvez o resultado fosse mais agradável a ouvidos preguiçosos, mas certamente perderia sua contundência histórica.
E como o autor deveria proceder com relação ao sermão do padre Antonio Vieira? Deveria também adaptá-lo, quem sabe recheá-lo de gírias, desfigurar sua belíssima escrita e original estrutura? Para os que pensam desta forma, caberia então um procedimento idêntico com, por exemplo, uma sonata de Beethoven: não seria mais prudente encurtá-la? Empobrecer sua harmonia? Reduzir a um seus muitos temas?
Enfim...estamos diante de um espetáculo que empreende reflexões atualíssimas sobre a sociedade em que vivemos. E cuja materialização cênica me parece em total sintonia com os conteúdos em causa. Assim como não sacrifica a escrita, Moacir Chaves não facilita a tarefa do espectador, muito pelo contrário: propõe-lhe um permanente desafio, o instiga a pensar, a tentar entender os signos de que se vale, como, por exemplo, o fato de os atores estarem vestidos a rigor, ainda que com os pés descalços.
Com um mínimo de fantasia pode-se chegar à hipótese de que as sóbrias vestimentas são signos do poder e os pés descalços remetem à escravidão - não sei se foi esta a intenção do encenador, mas posso perfeitamente encará-la como crível, da mesma forma que outro espectador encontrará o sentido que mais lhe aprouver.
Quanto ao elenco, todos os atores atendem com total eficiência àquilo que imagino que lhes foi pedido: texto perfeitamente articulado, proferido em voz forte, quase sempre em ritmo acelerado e priorizando a clareza expositiva. E nas passagens em que o ritmo é menos acelerado e imprevistas quebras geram humor, todos se saem igualmente bem.
Na equipe técnica, Aurélio de Simoni assina uma iluminação muito expressiva, sempre ressaltando os múltiplos climas emocionais em jogo. A mesma eficiência se faz presente na cenografia de Fernando Mello da Costa, nos figurinos de Inês Salgado e na direção musical de Tato Taborda.
A NEGRA FELICIDADE - Dramaturgia e direção de Moacir Chaves. Com a Companhia Alfândega 88. Teatro Serrador. De segunda a domingo, 19h.
terça-feira, 10 de abril de 2012
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