quarta-feira, 25 de março de 2009

As doenças do figurino no teatro

Roland Barthes


Gostaria de esboçar aqui, não uma história ou uma estética,
mas uma patologia, ou melhor, uma moral do figurino no teatro.
Proporia algumas regras muito simples que permitirão, talvez,
julgar se um figurino é bom ou ruim, são ou doente.

* * *

Em nome de que julgar os figurinos de uma peça? Pode-se responder o seguinte, (épocas inteiras o fizeram) : a verdade histórica ou o bom gosto, a fidelidade do detalhe ou o prazer dos olhos. Proponho um outro horizonte à nossa moral: a moral da própria peça. Toda obra dramática pode e deve se reduzir ao que Brecht chama de "gestus" social, ou seja, a expressão exterior, material dos conflitos da sociedade que a peça testemunha. Naturalmente compete ao diretor descobrir e manifestar esse "gestus", este esquema histórico particular que se encontra no fundo de todo espetáculo. Ele tem à sua disposição o conjunto da técnica teatral: o trabalho do ator, a marcação, a movimentação, o cenário, a iluminação e os figurinos.

Moral
Construiremos a moral do figurino sobre a necessidade de manifestar em cada ocasião o "gestus" social da peça. Isto quer dizer que atribuiremos ao figurino um papel puramente funcional, e que esta função será mais de ordem intelectual do que de ordem plástica ou emocional. O figurino não é nada mais do que a segunda razão de uma proporção que deve, a todo momento, juntar o sentido da obra ao que ela tem de exterior. Todo figurino, pois, que atrapalha a clareza dessa proporção, contradiz, obscurece ou falsifica o "gestus" social da peça, é um mau figurino. Tudo o que, ao contrário, nas formas, nas cores, nas substâncias e em seu agenciamento, ajuda na leitura do "gestus", tudo isso é bom.

Regras
Como em toda moral, comecemos com a regras negativas. Vejamos o que o figurino não deve ser - admitindo as premissas de nossa moral.
De uma maneira geral, o figurino não deve ser de maneira alguma um álibi, ou seja, uma justificação: o figurino não deve constituir um ponto visual brilhante e denso, ponto para o qual se desviaria a atenção, fugindo da realidade essencial do espetáculo ou do que poderia se chamar a sua responsabilidade; o figurino também não deve ser uma espécie de desculpa, de elemento de compensação cujo sucesso redimiria, por exemplo, o silêncio ou a pobreza da peça. O figurino deve sempre guardar seu valor de pura função, sem estrangular nem "encher lingüiça", não deve nunca substituir a significação do ato teatral por valores independentes. Quando o figurino torna-se um fim e não um meio, começa então a ser condenável. O figurino deve à peça um certo número de serviços: se um desses serviços é exageradamente prestado, se o seridor se torna mais importante do que o amo, então o figurino está doente, sofre de hipertrofia. Vejo mui comumente três doenças, erros ou álibis nos figurinos teatrais.

Hipertrofia da função histórica
A doença básica é a hipertrofia da função histórica. Podemos chamar a isto de verismo arqueológico. Devemos nos recordar que há duas espécies de histórias. Uma história inteligente que recompõe as tensões profundas e os conflitos específicos do passado; e uma história superficial que reconstitui mecanicamente certos detalhes insignificantes; o figurino foi, por muito tempo, o campo predileto para o exercício desta última.
Conhece-se os danos epidêmicos do mal verista na arte burguesa: o figurino, concebido como um acúmulo de detalhes verdadeiros, absorve e depois atomiza toda a atenção do espectador, que se dispersa longe do espetáculo, na região do infinitamente pequeno. O bom figurino, mesmo o histórico, é ao contrário um fato visual global; há uma certa escala da verdade, que não deve ser menosprezada, pois do contrário ela é destruída. O figurino verista que ainda pode ser visto em certos espetáculos de ópera ou operetas, atinge o cúmulo do absurdo: a verdade do conjunto é apagada pela exatidão do detalhe, o ator desaparece sob botões, dobras e sob cabelos falsos (devo dizer que no teatro francês, mesmo o mais evoluído, fico amiúde chocado pela "arqueologia" grosseira das perucas). O figurino verista produz invariavelmente o seguinte efeito: vê-se perfeitamente que é verdadeiro, e não se acredita nele.
A História - a mais profunda - é encontrada sempre nas substâncias e não nas formas e nas cores. Um bom figurino deve saber dar ao público o sentido táctil da coisa que é vista, mesmo de longe. Não há nada de bom num figurinista que refina as formas e as cores sem escolher com cuidado o material empregado; pois é na contestura dos objetos (e não em sua representação plana) que se encontra a verdadeira História dos homens.

Doença estética
Uma segunda doença, também frequente, é a doença da estética, a hipertrofia de uma beleza formal sem relação com a peça. Naturalmente, seria sem nexo deixar de lado no figurino os valores propriamente plásticos: o gosto, o equilíbrio, a ausência de vulgaridade, a procura da própria originalidade. Mas muitas vezes esses valores se tornam um fim e não um meio. De novo, a atenção do espectador é distraída para longe do teatro, artificialmente concentrado numa função parasita; têm-se então um admirável teatro estético e não um teatro humano. Mesmo sendo um pouco puritano demais, considero um sinal inquietante os aplausos a figurinos. A cortina se abre, a vista é conquistada, extasia-se e aplaude-se; mas o que se sabe da verdade, senão que um tal vermelho é bonito, um outro drapejado bem feito? Sebe-se se esse esplendor, esses achados astuciosos estarão de acordo com a peça, se a servem, se concorrem para a sua expressão?
Este tipo de desvio é o que eu chamo de estética Bérad, usada amiúde. Sustentado pelo esnobismo e pelo mundanismo, o gosto estético do figurino acarreta a independência condenável de cada elemento de um espetáculo: aplaudir os figurinos é acentuar o divórcio dos criadores,
é reduzir a obra a uma conjuntura cega de "performances" e de responsabilidades. O figurino não deve seduzir a vista, mas convencê-la.
O figurinista deve pois evitar de ser pintor e costureiro; ele desconfiará dos valores planos da pintura, e evitará as relações de espaço, próprias desta arte, porque a definição mesmo da pintura é que estas relações são necessárias e suficientes; sua riqueza, sua densidade, a tensão mesmo da sua existência excedem em muito a função argumentativa do figurino; e se o figurinista é pintor profissional, ele deve esquecer sua condição quando se torna criador de figurinos; deve muito mais do que submeter sua arte à peça; ele deve destrui-la, esquecer o espaço pictórico e reiventar da estaca zero o espaço lãnhoso ou sedoso do corpo humano; ele deve também abster-se do estilo "grande costureiro", que reina hoje nos teatros vulgares. O "chic" do figurino, a desenvoltura requintada de um drapejado à antiga que parece do atelier de Dior, uma crinolina elegantíssima são álibis nefastos que atrapalham a clareza do argumento, fazem do figurino uma forma eterna e "eternamente jovem", destituído das vulgares contingências da História, e isso tudo é contrário às regras que enumeramos no princípio desta palestra.
Há um fenômeno, aliás, que resume essa hipertrofia do estético: é o fetichismo da maquete, (exposições, reproduções). A maquete não mostra nada do figurino, porque lhe falta o essencial, a matéria. Ver em cena figurinos-maquetes não é bom sinal. Não digo que a maquete não seja necessária; mas é uma operação preparatória que só interessa ao figurinista e à costureira; a maquete deveria ser destruída na cena, salvo para alguns raros espetáculos onde a arte de afresco deve ser procurada. A maquete deveria ser um instrumento e não tornar-se um estilo.


Hipertrofia do suntuoso: dinheiro
Enfim, a teceira doença do figurino teatral é o Dinheiro, a hipertrofia do suntuoso, ao menos de sua aparência. Trata-se de uma doença muito frequente em nossa sociedade, onde o teatro é sempre o objeto de um contrato entre o espectador que paga e o diretor que deve devolver-lhe o dinheiro na forma mais visível; sob esse ponto de vista, é lógico que a suntuosidade ilusória dos figurinos constitiu uma devolução espetacular; vulgarmente, o figurino é mais compensador do que uma emoção ou do que a compreensão intelectual, dificilmente considerados como mercadoria. Desta maneira, quando um teatro vulgariza-se, os seus figurinos tornam-se cada vez mais caros; o espectador vai ver figurinos e é só. Onde está o teatro em tudo isto? Em lugar nenhum; o câncer pavoroso da riqueza o devorou.
Por um mecanismo diabólico, o figurino luxuoso adiciona a mentira à baixeza; já longe vai-se o tempo (sob Shakespeare, por exemplo), onde os atores usavam roupas ricas, porém autênticas dos senhores e dos nobres; hoje a riqueza custa caro demais, contentamo-nos com imitações, isto é a mentira. Desta maneira nem é o luxo mas simplesmente o falso que é hipertrofiado. Sombart indicou a origem burguesa da imitação; é certo, são os teatros pequeno-burgueses que caem na devassidão do luxo (Folies-Bergère, Comédie Française, Teatros líricos). Isto supõe um estado infanti no espectador, ao qual é negado todo o espírito crítico e imaginação criadora. Naturalmente não se pode banir completamente a imitação nos figurinos; mas se recorrermos a ela, devemos ao menos recusar dar crédito à mentira; no teatro nada deve ser escondido. Isto provém de uma regra que sempre produziu, creio eu, o grande teatro; deve-se ter confiança no espectador, e dar-lhe com resolução a poder de criar ele mesmo a riqueza, de transformar o rayon em seda e a mentira em ilusão.
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(Conferência realizada para Les Amis du Théâtre Populaire - em 8 de maio de 1954, em Paris, e no dia 11 de fevereiro de 1955, em Amiens. O presente artigo, aqui resumido, foi extraído da revista Caernos de Teatro nº 31, 1965, edição já esgotada).


































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