Teatro Odin
Lionel Fischer
(Este artigo foi escrito por mim, em 1977, aos 27 anos, e publicado na revista Cadernos de Teatro nº 75. Refere-se às impressões que tive do espetáculo "O livro de danças", apresentado no Festival de Outono de Paris - setembro/novembro de 1977. Inicialmente, faço um breve histórico do grupo até aquele momento.
* * *
"Todo aquele que, se jogando contra cada obstáculo, procura um novo modo de perceber, sentir e refletir, vive uma nova vida, que às vezes não consegue explicar. Se você se recusa a ficar estendido numa maca e se dispõe a ir além, você ultrapassa a fronteira que conduz a uma espécie de terra de ninguém: atrás de você esconde-se o território do teatro; à frente, uma nova fronteira. Você ignora a que tipo de terreno ela lhe conduzirá. Avança prudentemente, mas com obstinação. Muitas vezes seus passos o conduzem para trás, na direção da fronteira do teatro, e os sábios e professores sorriem, aliviados. Muitas vezes você parece a ponto de desaparecer no horizonte, e seu destino se torna incompreensível. Quem é você, afinal? Um solitário que some no deserto ou alguém que avançando, ainda que se perdendo, chega a traçar uma pista?" (Eugenio Barba - "O estrangeiro que dança".
Esse caminho perigoso e incerto, sujeito a indiferença e desprezo constantes, vem sendo trilhado por Eugenio Barba e o Grupo Odin há cerca de 13 anos, e resultou nos seguintes espetáculos: Ornitofilene (1965), Kaspariana (1967), Ferai (1969), Min far hus (1972), Le livre de danses (1974) e Come! And the day will be ours (1976).
Proust buscou o tempo perdido.
O Grupo Odin vai à procura do homem perdido.
Onde quer que ele se encontre: em Paris, nas florestas amazônicas ou nais mais remotas regiões da Itália.
Rejeição
O Grupo Odin, muitas vezes rejeitado, nasceu dentro e por causa da rejeição. Eugenio Barba, de origem italiana, formado em letras norueguesas e francesas, assim como em História das Religiões, após haver estudado em várias partes do mundo, como por exemplo na Índia e na Polônia (durante três anos) com Grotowski, ao retornar à Noruega não conseguiu trabalho em parte alguma. Assim sendo, nada mais lhe restou do que tentar empreender seu caminho a partir das próprias experiências, pois nenhum ator profissional se dispôs a estabelecer qualquer contato com ele visando o "futuro".
Foi então que conheceu um grupo de jovens que desejava ardentemente fazer teatro e que tinha sido, todo ele, reprovado no exame de admisão para o Conservatório. A partir da insegurança de cada um, estabeleceu-se uma forte ligação entre todos, numa tentativa conjunta de superar a frustração e a angústia diante de uma sociedade que havia decidido, de forma categórica e inapelável, a posição de todos dentro dela. Ou fora...
Início
E foi assim que o Grupo Odin começou a atuar, não contra a sociedade, sob o pretexto de se vingar, mas, paradoxalmente, a seu favor, na medida em que a distância imposta permitiu uma visão de seus problemas e contradições muito mais aguda e pertinente do que a dos grupos nela engajados e dela dependentes. Negando-se a reduzir suas atuações ao protesto superficial, que jamais ultrapassaria a mera provocação, o Grupo Odin, frequentemente acusado de "indefinição política", talvez seja hoje um dos mais politizados grupos teatrais do nosso tempo, desde o momento em que conseguimos compreender que ser político não implica mecessariamente em possuir uma filiação partidária, mas em ter consciência de que cada indivíduo é importante perante sua comunidade e que somente a partir de transformações individuais ela poderá, um dia, viver melhor como um todo.
Convicto de que é essa a sua missão, o Grupo Odin vem colocando há 13 anos, no coração de cada espectador sensível, algo assim como sementes, que só necessitam de solo fértil para desabrochar. Estes atores sempre deixam, ao partir, alguma coisa. Ainda que em estado embrionário. E por isso se tornam tão importantes. Aliás, não lembramos de uma flor apenas porque era bela, mas sobretudo por seu perfume...
O livro de danças
O termo "danças" não é exato. Os atores, a partir de suas experiências e improvisações, realizam o espetáculo. Com seus tambores e flautas, fitas coloridas e bastões, impregnam todo o ambiente de uma energia inimaginável. Sua expressividade é de tal ordem que conseguem transformar acessórios em elementos teatrais tão importantes quanto cada um deles. Em mãos inadequadas, um tambor é sempre um tambor. Aqui, o objeto se torna ator.
Recusando o puro exibicionismo, esses jovens exepcionalmente preparados, que ensaiam oito horas por dia, nos revelam um mundo de potencialidades expressivas do nosso em geral tão desprezado corpo.
Quanto ao enredo, como normalmente é concebido, não existe. Não há uma história a ser contada. São as energias trocadas a cada momento e, consequentemente, as relações estabelecidas que formam, para cada espectador, a "sua história".
Quando um ator se aproxima, balbuciando palavras numa língua estranha, cujo sentido imediato nos escapa, mas cuja maneira de dizê-las nos atrai, para que estabeleçamos uma relação com ele é necessário renunciar à compreensão do texto literário e tentar captar as sugestões sonoras nele contidas. Se conseguimos isso, ou seja, perceber e sentir por vias que não as habituais, cotidianas, terá sido dado um grande passo para que a nossa sensibilidade viva, e todo o nosso ser se transforme.
Então, o contato com o Grupo Odin se torna uma experiência inesquecível. Não escutamos mais a música, a vemos! Os atores perdem suas características históricas e não são mais eles que se digladiam e acariciam, mas nossos sentimentos básicos, nossas aspirações e anseios que se materializam diante de nós, revelando-nos como somos: inseguros, carentes, sonhadores. As potencialidades e fraquezas humanas nos são expostas, e talvez por se encontrarem tão próximas, não saibamos de imediato o que fazer com elas.
Mas creio que, em todos nós, ainda que de formas diversas, as sementes foram plantadas. E as condições que lhes permitirão florescer estão em nós, dependendo apenas do nosso esforço no sentido de criar as circunstâncias indispensáveis. Se tudo na vida pode e deve ser sentido de vários ângulos diferentes, é preciso somente estar atento, vigiar nossa preguiça e acomodação, que em geral nos fazem eleger o meio mais fácil, o lado superficial, ocultando-nos o significado mais profundo de nossas vivências.
É preciso não esquecer que, quando cumprimentamos alguém, muito mais verdadeiro que o intercâmbio de falas é o contato das mãos.
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segunda-feira, 23 de março de 2009
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