quinta-feira, 12 de março de 2009

A Nova Dramaturgia russa
de Togliatti a Moscou

Yanna Ross


Livre da censura soviética e do desastre econômico dos anos 90, a Rússia viu enfim florescer, na virada do século XXI, um teatro contemporâneo próprio a que deu o nome pretensioso de Nova Dramaturgia. É, em verdade, o reflexo de uma nova geração, de seu linguajar, de suas aspirações, seus medos, seu desespero. Não raro, destrói os tabus erguidos pelo teatro que o precedeu, valendo-se de um discurso crítico, ofensivo e polêmico.
No ano de 2000, voltei para a minha cidade natal, Moscou, que tinha abandonado fazia oito anos, e que já me parecera hostil e severa. Chegando lá, vi que muitos dos meus pares — isto é, diretores e dramaturgos com menos de 30 anos – estavam causando um impacto visível na cena teatral e que reivindicavam, para si, os louros desse reconhecimento. Em menos de uma década, Moscou se transformara radicalmente: de buraco retrógrado, nacionalista, mafioso e rufião passara a metrópole atraente.

Fachada
A fachada bem iluminada da loja seduzia o consumidor chique; todo adolescente tinha um celular de último modelo; a TV mostrava montes e montes de reality shows, e o jornal, para chamar a atenção do leitor cansado, punha manchetes na capa semelhantes às de um tablóide ocidental. E ainda que, na superfície, circulassem todos esses produtos e esses valores capitalistas estrangeiros, lá no fundo, corria a força de uma ressurreição cultural genuína: assisti a um documentário russo admirável, ao molde da BBC, que mostrava atrocidades de ambos os lados na guerra contra a Chechênia – em 2005, no entanto, a mesma rede de TV levou ao ar um programa propagandista descarado que retratava as minorias étnicas como zumbis cruéis e os soldados russos como os únicos heróis — resultado da consolidação do poder do governo sobre a imprensa.
Mas também havia outros indícios de que a cultura, de fato, ressurgia: Kitchen, a mais nova peça de Maksim Kurochkin, estreou para 1.200 pessoas, em um teatro lotado, talvez por causa da presença de Oleg Menshikov, o premiado ator. Logo depois, os irmãos Presnyakovs fizeram sucesso com Terrorism, que hoje é conhecida mundialmente. E teve início o Festival da Nova Dramaturgia, concebido pelos produtores do festival A Máscara Dourada. Essa nova geração usa o teatro para expor as suas idéias. Eles dizem, sem medo, o que lhes vem à cabeça, e estão ganhando espaço.

Estagnação
Antes do advento da Nova Dramaturgia, em razão dos acontecimentos históricos que marcaram o último século, o teatro russo se encontrava estagnado. Quando Stalin decretou o domínio do realismo socialista nos palcos, a dramaturgia “reacionária” ultrapassada deu lugar aos chavões comunistas tais como o da novidade da revolução, o do coletivismo, o da emancipação. Os oficiais do governo encarregados dos assuntos culturais sumiram com Shakespeare e Calderón, condenaram o surrealismo e os franceses desertores da causa e impuseram, ao proletariado, a leitura dos dramaturgos russos clássicos tais como Alexander Ostrovsky. Muitos dos autores que se recusaram a engrossar as fileiras dos propagandistas, simplesmente, sumiram. E, porque a vitória do socialismo punha fim à luta de classes, e a reforma social implicava a mais completa glorificação do regime vigente, engendrou-se um novo gênero literário: o do teatro sem-conflito. A União Soviética tornou-se a morada da mais perfeita felicidade; as peripécias trágicas passaram a se basear na discrepância entre o excelente e o muito bom. Os vilões de verdade, os problemas familiares, a juventude atormentada, tudo isso só veio a existir mesmo em meados dos anos cinqüenta.

Esperança
Foi então que a chama da esperança tremeluziu nos palcos russos e uns poucos autores conseguiram publicar as suas peças, tudo graças ao governo de Kruchov, que enfraquecia a censura. Os textos de Shakespeare voltaram do exílio em traduções ilustres feitas por Boris Pasternak, que fora banido, e, em 1963, Yuri Lyubimov encenou Hamlet no Taganka. Mas os dramaturgos mais jovens, tais como Alexander Vampilov e Lyudmila Petrushevskaya, tinham que se entender com os teatros do interior. Vampilov, por exemplo, embora fosse um dos dramaturgos mais intensos e autênticos de seu tempo, não podia ser encenado nem em Moscou, nem em Leningrado por causa da ironia com que pintava a vida socialista da época. Foi na Lituânia que montaram, pela primeira vez, uma de suas peças; na Rússia, só reconheceram o valor de sua obra postumamente (ele se afogou no lago Baikal, aos 35 anos).

Estratégia
Os dramaturgos daquele tempo, assim como os de hoje, para não morrer de fome, tinham que burlar a censura e se ligar ao pessoal dos teatros públicos e aos diretores independentes. Antes da perestróica, no entanto, para arranjar financiamento, bastava que o autor se associasse ao partido comunista ou ao sindicato dos escritores russos. A obra de Vampilov só foi aos palcos, na Rússia, depois que ele entrou para o sindicato.
Também não havia cursos acadêmicos especializados na formação de dramaturgos. Em toda a vasta União Soviética (com uma população de 250 milhões de habitantes), apenas um curso permitia que os alunos se voltassem para a escrita teatral, um curso ministrado no Instituto Estadual de Literatura, em Moscou. A juventude que tinha interesse em se aprofundar no estudo do teatro, se quisesse encontrar um ensino de boa qualidade, tinha que viajar para Moscou ou para São Petersburgo. A Academia de Artes Dramáticas Russa, a GITIS, e a Academia de Teatro de São Petersburgo detinham o monopólio sobre os cursos de direção e design cênico. Pessoas de renome se ofereciam para integrar o corpo docente desses cursos, assim como também o do Teatro de Arte de Moscou , o MXT. Tal como Nova York e Los Angeles, essas duas cidades despertavam grande interesse nos jovens de talento, e os estudantes de teatro faziam de tudo para ficar ali e arranjar um emprego depois de se terem formado, abrindo mão da vida nas suas cidadezinhas natais.

Caminho
Durante o alvoroço da perestróica, Nikolai Kolyada, um autor-prodígio, nos mostrou o caminho da mudança. Sua carreira deslanchara em 1986, com o auxílio de Romam Viktiuk, o polêmico diretor. Em 1898, Viktiuk convenceu o Teatro de Repertório de São Diego a realizar a estréia mundial da peça Slingshot, de Kolyada, que tinha por tema um relacionamento gay, tratado de maneira bastante compreensiva – na Rússia, estorvaram-na até 1993, ano em que homossexualismo deixou de ser crime digno de prisão.
Kolyada voltou, pois, à Sibéria, onde morava, com o intuito de organizar, no Instituto de Teatro de Ekaterimburgo, um curso formal de dramaturgia, e acabou fazendo da região o epicentro do fluxo nascente de criatividade. Em 1993, admitiu-se a primeira turma; cinco anos depois, ao tempo da formatura, já se tinha um grande dramaturgo: Oleg Bogaev.

Contaminação
Kolyada afirma que nunca foi capaz de ensinar aos alunos a arte de fazer peças; segundo ele, tudo o que pode fazer é contaminá-los com o entusiasmo pela escrita, abrir-lhes os olhos para o mundo do teatro e apoiar as suas idéias. Também não lhe agrada a idéia de criar um exército de dramaturgos; prefere que entrem apenas cinco ou seis alunos por ano no instituto. Mas apesar do sucesso em Ekaterimburgo, as academias de teatro mais importantes, assim como também as escolas regionais de teatro, continuam não oferecendo cursos voltados à formação de dramaturgos.
Quando se fala de escrita teatral na Rússia, muitos a relacionam a um talento inato tal como se vê em outros tipos de arte (entre eles, a pintura), esquecendo-se, é claro, que até mesmo Kandinsky e Picasso tiveram que aprender técnicas formais de desenho não-abstrato. É bem verdade que Anton Tchekhov e Mikhail Bulgakov viraram escritores tendo estudado medicina, mas isso foi só porque ambos praticavam muito — fosse mandando textos para os jornais, fosse lendo. Fato é que não ficavam só assistindo TV.

Encontro
Antes do surgimento do Festival da Nova Dramaturgia (em 2002), os jovens roteiristas promoviam suas peças ou em Ekaterimburgo ou no festival Lyubimovka. Sediado na casa de verão de Stanislavsky, nos arredores de Moscou, desde os anos 90 até bem pouco tempo, o festival Lyubimovka tornou-se um verdadeiro ponto de encontro para os dramaturgos conceberem e incentivarem os novos projetos.
Ekaterimburgo continua sendo uma boa alternativa às “duas capitais” (Moscou e São Petersburgo); lá, os escritores podem desenvolver as suas vozes sem a interferência desses dois centros. Os resultados são ótimos. Vassily Sigarev, eminente aluno de Kolyada, inspirou dramaturgos em todo o país com o retrato inquietador que ele faz dos adolescentes, dos viciados e das personagens marginais que se põe além do “arame farpado” das convenções sociais. Sigarev, que despontou no cenário mundial com a peça Plasticine (traduzida para o inglês na revista Theater, vol 34, nº 2), costuma misturar os coloquialismos e as gírias de rua com um tipo de linguagem poética, por vezes filosófica, onírica. A reboque das produções de Kirill Serebrennikov na Rússia e na Alemanha, surgiram muitos diretores e muitas montagens diferentes.

Parábola
A mais recente encenação de Sigarev mostra bem o espírito da Nova Dramaturgia. Phantom pains, levada aos palcos por Ira Keruchenko, estreou em Moscou e fez turnês na França e na Suíça. Em menos de 20 páginas, Sigarev constrói uma parábola surpreendente sobre uma mulher que, enlouquecida pelo sofrimento, recusa-se a aceitar a morte do marido em um acidente, sendo violentada pelos homens da região. A tal mulher é quase uma figura bíblica no que diz respeito ao caráter; e os homens são monstros quase desumanos. Ironicamente, quem propôs a montagem foi Kama Ginkas, do MXT, um dos diretores mais conceituados da Rússia (que só monta clássicos tais como Tchekhov, Dostoiévski e Shakespeare). Ginkas pedira aos seus alunos de direção teatral que levassem ao palco uma peça da chamada Nova Dramaturgia.

Vivacidade
O ator Oleg Tabakov, diretor artístico do MXT desde o ano de 2000, deu vivacidade aos cursos estagnados, transformando-os em uma espécie de playground para os jovens diretores e para os escritores de teatro experimental. Disso resultou um repertório dinâmico e estimulante que se presta a um público variado.
O MXT também costuma patrocinar os irmãos Presnyakov — uma dupla talentosa, vinda de Ekaterimburgo (mas que não é afiliada à escola de Kolyada). As peças Terrorism e Playing the victim, de sua autoria, estão atualmente em cartaz em um dos teatros do MXT, o menorzinho, que acomoda cerca de duzentas pessoas. A mais recente peça dos irmãos Presnyakov, Playing the victim, montada por Serebrennikov, que é muito prolífico, obteve um excelente retorno do público.

Ironia
Os Presnyakov dão às suas peças uma ironia mordaz, coloquial, valendo-se da linguagem do dia-a-dia — coisa que falta ao teatro russo das últimas décadas — sem que por, por isso, precisem abdicar do humor e da diversão. A peça consiste em uma série de esquetes inteligentes baseados no atípico trabalho diurno de um anti-herói de vinte e poucos anos que reconstrói os delitos na cena do crime enquanto um policial à moda antiga quebra a cabeça tentando solucionar o caso. Os irmãos Presnyakov mostram gerações se chocando, mas o conflito, embora fatal, costuma ser agridoce. Sem jeito para segurar os pauzinhos em um badalado sushi bar de Moscou, onde todo mundo manuseia com destreza o fachi, o velho policial é a verdadeira vítima — sendo incapaz de se adaptar ao novo ritmo das coisas e ao seu novo linguajar. Essa personagem, outrora contida, explode em um monólogo exaltado, dando voz às frustrações de todos os membros da sua geração desorientada.

Tendência
Assim como os diretores mais jovens estão se voltando para os dramaturgos contemporâneos na busca por material e por temas novos, há também uma nova tendência de os próprios autores encenarem as suas peças. Os Presnyakov têm feito isso em muitas casas de teatro, de Ekaterimburgo à Hungria; e Kolyada chegou a lançar o seu próprio teatro, o Kolyada-Teatr, com a intenção de transformá-lo em um laboratório para os seus alunos e para ele mesmo. Nikolai costuma trabalhar como diretor e incentiva os outros a fazerem o mesmo. Tais locais são fronteiras importantes no teatro russo; incentivar o diálogo entre os diretores e os autores nunca foi prioridade nos cursos acadêmicos de direção, cujo enfoque nos antigos mestres tais como Shakespeare e Tchekhov formam a base do vocabulário dos alunos.
Mas o que acontece quando um dramaturgo contemporâneo aparece na porta do teatro? Diferente dos Estados Unidos e da Europa, onde os dramaturgos são convidados a participar da criação do espetáculo, podendo até estar presentes durante os ensaios, na Rússia, os autores têm que agradecer se ficam sabendo da estréia das suas peças. As questões dos direitos autorais, da concessão e do pagamento ainda são um pouco obscuras. Muitos preferem tratar dos seus próprios contratos, uma vez que as poucas empresas que prestam esse tipo de serviço não seguem as leis convencionais e cobram caro. Quase não há informação sobre como proteger os textos do plágio e da violação dos direitos autorais — e os diretores costumam tomar ampla liberdade com os scripts, mudando até mesmo o nome das peças. Por exemplo, a peça de Vyacheslav e Mikhail Durnenkov, The cultural layer, está atualmente no MXT com um nome diferente: The last days of summer. Os Durnenkov, uma dupla de irmãos que escreve peças de teatro, não moram em Moscou e dizem que não foram convidados a comparecer aos ensaios. Não raro, os autores são excluídos por inteiro do processo de produção.
É claro que, no resto do mundo, os diretores fazem de tudo para se comunicar com os escritores das peças. Mas, no caso da Rússia, onde os diretores se tornaram auteurs de inquestionável autoridade, a situação é diferente. A maioria dos profissionais russos que entrevistei concordam que a colaboração dos diretores com os atores e os dramaturgos só faz ajudar na criação da linguagem fresca que o teatro contemporâneo tanto precisa.

Interação
O Teatr.doc, um teatro à moda de estúdio localizado em um pequeno espaço subterrâneo em Moscou, foi criado justamente para facilitar esse tipo de interação. Seus fundadores, Mikhail Ugarov e sua esposa, Yelena Gremina, ambos dramaturgos, participaram do festival Lyubimovka de teatro contemporâneo, que continua apoiando a dramaturgia independente e publicando antologias de peças. Ugarov e Gremina, juntamente com a sua colega Olga Mikhailova, criaram o Teatr.doc para ser uma casa visionária mas, também, inteiramente pragmática. (Veja a entrevista de Gremina, publicada em Theater vol 36, nº1). Ainda que Ugarov e Gremina não dêem aulas formais de escrita dramática, o seu teatro é um buraco nessa sólida parede da dramaturgia russa, uma verdadeira caixa preta, que logo se tornou um dos espaços criativos mais importantes, mais furiosamente experimentais (nem sempre bem sucedido) de todo o país.

Sucesso
O sucesso do estúdio atingiu seu ponto mais alto em 2002 quando estreou, no Teatr.doc, Oxigênio, a inflamada peça de Ivan Vyrypaev, um siberiano de Irkutsk. Das doze produções do Teatr.doc nas suas primeiras temporadas, poucas foram as que emplacaram. Mas Oxigênio foi logo reconhecida como a peça russa de maior importância deste século, transformando Vyrypaev em uma estrela da noite para o dia. A linguagem de Vyrypaev faz lembrar tanto o caráter vivificante da escrita de Gertrude Stein, mãe da vanguarda americana que pretendia inventar uma nova linguagem, quanto o seu equivalente espiritual no modernismo russo, Velimmir Khlebnikov. A linguagem de Vyrypaev possui a qualidade onírica da escrita automática de Stein — tal como um despejar de palavras sobre a partitura de um balé ou de uma música qualquer — e está repleta de um equilíbrio parecido entre o literário, o audível e o visível. Sua narrativa cria diálogos sofisticados consigo mesma, mostrando-se também primitiva ao repetir afirmações simples e observações ingênuas e mostrar uma fluência natural das palavras. A paisagem de Vyrypaev é mais violenta do que a de seus predecessores: está cheia de erupções psicológicas e crateras dormentes – o fato de que Vyrypaev se valeu de um DJ para acompanhar a encenação de Oxigênio ao vivo também mostra a sua fidelidade à sua própria geração.

Mistura
Em sua peça mais recente, Gênesis-2, Vyrypaev continua o seu diálogo com Deus, questionando as leis do universo e misturando um ritmo “esquizofrênico” com rimas populares antigas acompanhadas, na encenação, por um acordeão. Há sempre uma espécie de curiosidade e franqueza infantis em sua obra. The city where I... é um estória simples sobre a cidade de Vyrypaev, Irkutsk, mas o autor explica que a cidade é mágica, como se isso fosse algo corriqueiro, e que vamos todos ver a mágica ganhar vida. Anjos andrajosos vão fazer visitas, procurando o sentido da existência humana; um elefante habita o interior de um cidadão infeliz; e uma “boa pessoa” de Irkutsk se esforça para manter a sua humanidade. As peças de Vyrypaev também contam com o raro acordo entre autor e diretor; Viktor Ryzhakov, amigo de Vyryypaev de longa data, que nunca tenta impor os seus impulsos de diretor à simplicidade do texto de Vyrypaev, e os resultados têm sido muito bons.

Incentivo
O Teatr.doc funciona como um porto seguro em Moscou, mas não é a única casa da Nova Dramaturgia na Rússia. O sangue siberiano bombeia vida para a região dos Montes Urais, onde Oleg Loevsky tornou-se um grande incentivador do teatro contemporâneo. Loevsky teve uma carreira prodigiosa, primeiro como agente literário do teatro Youth e depois como diretor, como diretor gerente e produtor — e ele continua a mudar de cargos muito rapidamente. A sua maior conquista, no entanto, foi a criação de um evento bianual para os teatros regionais em Ekaterimburgo, chamado Festival do Teatro Real. Ele também dá apoio aos diretores mais jovens e promove feiras para mostrar os alunos recém-formados aos teatros regionais.
O incansável Loevsky viaja por toda a Rússia falando de teatro e de Nova Dramaturgia, e parece que ele tem sempre uma dúzia de scripts debaixo do braço. Até mesmo quando eu o vi às três e trinta da manhã, em 2005, no festival A Máscara Dourada, em Moscou, ele se mostrou interessado em falar de negócios. Apesar de todo o lobby que faz, Loevsky mantém certa perspectiva no que diz respeito à evolução do teatro russo, aguardando com paciência para ver no que vai dar o movimento, agora famoso, que ele ajudou a construir.

Aprisionamento
A equanimidade de Loevsky não é compartilhada pela maioria dos críticos em Moscou e São Petersburgo, que tentaram definir rapidamente a extensão lingüística e temática da Nova Dramaturgia — o que para muitos é um aprisionamento. “É o teatro contemporâneo que rompe os tabus normativos da linguagem e que discorre sobre liberdade sexual, drogas e injustiça social. E também sobre violência, escatologia e imaturidade juvenil”, escreve um crítico de Moscou. A criação de tais fórmulas, rótulos e definições pode ser insensata a esta altura, pois não abre espaço para a evolução da arte. O “movimento” é ainda muito jovem, instável e também interessante. Por outro lado, após ter lido cerca de 40 textos (organizados em um sofisticado CD-ROM no Festival da Nova Dramaturgia), acho que sou capaz de achar o ponto em comum compartilhado por todos esses autores em São Petersburgo, em 2004.

Ataque
Muitos deles querem atacar a atual guerra com a Chechênia e falar das suas conseqüências. Peças em que os soldados retornam para casa vazios física e emocionalmente não são apenas tributos aos horrores diários que a mídia russa costuma ignorar (oficialmente a guerra acabou), mas também explorações pensadas dos efeitos de longo-prazo que a guerra terá nessa geração.
O trabalho mais proeminente que segue essa linha saiu da “incubadora” de Kolyada: The dembel train, de Alexander Arkhipov (o título da peça faz referência aos trens que trazem os soldados dispensados do serviço militar, seja por razão de ferimento, seja por razão do término do seu contrato, de volta para casa).
Tikhon, Vanya e Evgenii estão esperando pela dispensa no hospital militar. Tikhon perdeu as duas pernas; Evgenii, a sanidade; e Vanya levou um tiro na barriga de um oficial superior que a pegou roubando comida. O começo da peça tem um clima bastante realista: Tikhon está escrevendo a estória em uma carta para mandar para casa. As sete cenas são chamadas de “vagões”. Os vagões do trem vão se embrenhando mais e mais numa combinação surrealista do campo de batalha com as memórias dos soldados e alguns absurdos existenciais. Através de encontros curtos e inquietantes dos soldados com o seu passado, o seu presente e o seu futuro, a platéia é capaz de montar o quebra-cabeça dos efeitos devastadores da guerra na mente humana. No meio da peça, começamos a nos indagar se aquilo que vemos e ouvimos faz, de fato, algum sentido.

Engenho
O autor nos manipula com tanto engenho que ficamos sem saber se é imaginação, especulação ou realidade. O inesperado suicídio de Vanya acarreta reações viscerais dos seus companheiros de hospital, que comparecem a um funeral para as três almas juntas. Eles estavam todos mortos já desde o começo? A ação, que antes transcorria no mundo real, passa ao mundo dos espíritos — o único mundo que abriga os que mataram e os que morreram, de modo que os espíritos vivos e os mortos ficam presos em um mesmo lugar entre o passado e o futuro. Os espíritos saem das páginas das cartas que escreveram e vão para o além, adentrando o último vagão da peça para enfrentar o cair das cortinas.

Direções
As direções de palco de Arkhipov são as seguintes: “Três soldados se enfileiram, e na escuridão atrás deles surgem outros corpos de garotos jovens. Uns vêem de uniformes camuflados, poentos; outros, de ceroulas com os pés descalços. Alguns trajam sobretudos. O ar está cheio do longo som do trem que passa. De avião, de trem, a pé, os garotos se apressam para chegar em casa: vivos e mortos. O trem da dispensa voa, serpenteia arrastando os vagões, fazendo andar as engrenagens da vida e do destino”. 1
Eduard Boyakov, que fundou o Festival da Nova Dramaturgia em 2002, descreveu recentemente o evento como uma tentativa de confrontar as tendências escapistas e covardes do teatro russo moderno. “A maioria dos diretores está assustada demais para encenar peças modernas, controversas e ousadas, preferindo se esconder atrás dos grandes nomes do passado ou se entregar à fantasia, à moda de Harry Potter. Não digo que a realidade deva ditar o que os artistas fazem, mas ignorar a vida concreta e dar as costas para as tribulações do seu próprio país é uma atitude desonesta. Devemos atentar para o fato de que vivemos em um país cheio de conflitos étnicos e violência selvagem, onde tragédias tais como a de Beslan são corriqueiras”. 2

Questões
O fato de que 30 peças no festival de 2005 falavam das questões mais sensíveis e doloridas da Rússia, tais como terrorismo, corrupção, alcoolismo, drogas, migração e iniqüidade social, é significativo. Embora sejam jovens, os autores não retratam a sua própria geração de maneira idealizada; as personagens da sua geração são observadores indiferentes, frios, sarcásticos da diabólica fruição pós-socialista do livre-mercado. A agressividade se junta à apatia, à nostalgia e à emoção. Muitos embarcam em uma jornada religiosa e filosófica, buscando Deus e debochando de sua ausência. John Freedman do Moscow Times diz o seguinte a respeito da oficina para novos autores que é o festival Lyubimovka de teatro contemporâneo: “Estas pessoas sempre conviveram com a presença da televisão: a berrante veracidade dos talk shows e dos reality shows; a superficialidade de uma crise mundial complexa reduzida a curtas entrevistas com peritos no assunto... Criados à base de programas ingênuos para agradar o público, eles estão prontos para fazer as perguntas mais duras, mas preferiam não ter que respondê-las”.3

Contradição
Laura Sintija Cerniauskaite, uma lituana de 24 anos, pode contradizê-lo. Sliding Luche é, ao mesmo tempo, uma jornada amorosa tragicômica e sentimental e, também, uma peça sobre memórias de família que oferece uma inquietante cartografia do destino e da circunstância. Luche desliza sobre a superfície de um ringue de patinação no gelo (onde ela persegue o homem casado por quem se apaixonou) e também sobre o seu distorcido plano de existência. Em uma série de coincidências bizarras, dois casais se separam, encontram um o parceiro do outro e seguem em busca das intangíveis — e, no entanto, intoxicantes — regras do amor. A primeira cena no supermercado estabelece, em poucas linhas, a identidade do casal, quando Luche e Felix ancoram os seus carrinhos de compra no caixa:

Luche: Tá tão quente aqui, tão abafado, tá me matando.
Felix: Morre então; quando o caixa abrir eu ressuscito você.
Luche: Obrigado, Jesus! Merda! Eu esqueci o molho de tomate, vai pegar pra mim, vai. Mas não pega o picante, não. Eu vou fazer peixe hoje à noite.
Felix: De novo?
Luche: Como assim? Você não gosta?
Felix: Peixe de novo...
Luche: Então você vai dormir de barriga vazia. Eu como sozinha. O molho! Vai pegar o molho!
... Felix desaparece e depois retorna com uma lata de graxa de sapato. Põe a lata no carrinho.
Luche: O que é que é isso?
Felix: Eu pensei assim, ó: por que não vestir o peixe com molho de luto?... Já que é a sua última refeição.
Luche: Você não tem jeito. Pra que isso?
Felix: Pra que comer peixe todo dia?

Quando Luche o abandona, Felix fica apenas com as memórias de infância de um pai moribundo, acamado e de uma mãe que se tornou severa por causa das próprias obrigações. Uma estranha teia de amor e frieza, violência e carinho cobre o mundo da imaginação da autora. A jovem lituana mantém-se afastada das relações políticas hostis entre o seu país e a Rússia e, também, das questões da União Européia, que recentemente admitiu países bálticos. Mas Sliding Luche ainda comove os dois lados do Mar Báltico.

Renome
Uma estréia especial, uma indicação do júri do festival para a categoria de até 25 anos, deu renome a um outro aluno de Kolyada, Anton Valov. Sua peça Swings behind the glass evoca a linguagem do niilismo bipolar. Um casal de meia-idade e o seu filho portador de deficiência física vivem apertados em um pequenino apartamento tipo estúdio. Depois de um diálogo sexual excessivamente carinhoso e compulsivo — seguido de apalpadelas explícitas —, o casal se volta para as tarefas mundanas de lavar a roupa e aspirar o pó, enquanto o garotinho de 7 anos absorve as polêmicas dos pais e reage a elas. Valov cria um círculo terrível e inquietante de abuso doméstico. Suas personagens são o produto da revolução econômica que deixou milhões de cidadãos russos abaixo da linha da pobreza. Quando Tolya sai de casa para comprar cigarro, Ksusha reage assim à persistente dor de cabeça de seu filho:

É porque o seu pai é um beberrão, um malandro. Ele não conseguiu fazer um filho saudável. Ele não sabe fazer nada. Só “mô, mô, meu ‘môzinho”, mas ele é um zero à esquerda. Não trabalha. Tá de vagabundagem faz quase um ano. Fica dizendo: “Eu tô doente, alguém me rogou uma praga”. Um vampiro, algo do tipo! Mas aposto que não amaldiçoaram a cerveja dele! Não é nada, queridinho. Papai já volta e, aí, a gente vai tomar um pouquinho de sopa. Tá rala, sem carne — é vegetariana... A gente vai ficar bem.

Eles ficam bem até que Tolya retorna em um estado de estupor alcoólico e espanca Ksusha sem dó nem piedade. O desenrolar da cena é como uma danse macabre; Tolya repete o seu monólogo anterior só que, agora, em vez de beijinhos, risadinhas e beliscões, ele devolve socos, sangue e mutilação. O quarto é tão pequeno, e a cama em que dormem os três ocupa tanto espaço, que o público só percebe que o garoto anda de muletas já quase no final da peça. O poderoso elo entre o pai e o filho culmina em uma tentativa de “voar” da parte do garoto. O pai o levanta do chão e o põe no colo: “Isso, como um pássaro grande, vai, Mike, você tá voando. Você tá voando, Mikhail; quem tá caindo é a gente”.

Peso
Dado o peso desses temas sociais, não é surpresa que a comédia continue sendo o gênero mais forte da Nova Dramaturgia. Danila Privalov (autor de Cinco — vinte e cinco) retrata um tiroteio entre bandidos e policiais à moda de Tarantino em People of ancient professions. Oleg Bogaev (formado na escola de Kolyada, agora, membro de seu corpo docente) nos conta uma estória filosófica, Dead ears, a respeito do declínio do interesse pela literatura e dos valores culturais, mantendo o tom leve até mesmo quando as hilárias personagens de Púchkin, Gogol e Tchekhov vão morar em uma cidadezinha pequena cuja biblioteca está para fechar porque ninguém mais as lê. Andrei Kureichyk, um jovem dramaturgo da Bielo-Rússia que ganhou recentemente um prêmio no Festival Eurásia 2005 por sua comédia Theatrical play, também se vale de um fantasma clássico — Konstantin Stanislavski — para criar uma comédia de humor negro sobre atores sedentos de sangue que tentam recrutar um dramaturgo para o seu exército imortal de vampiros.

Lembrança
As pessoas com mais de vinte e poucos anos lembram-se de ter experimentado, em primeira mão, a relativa liberdade que sobreveio à Rússia depois da queda do Muro de Berlim. A economia ocidental infiltrou-se no mercado, e o país que antes era uma ilha foi inundado por ondas e mais ondas de produtos e capital estrangeiro. A abertura das fronteiras permitia parcerias e trocas culturais; para o teatro russo, isso foi de grande importância, porque o Conselho Britânico levou uma poderosa filial para Moscou, com verbas reservadas para a tradução e a publicação de peças inglesas, daí a enorme popularidade de Mark Ravenhill, Sarah Kane e a sua posterior influência no teatro russo. O Conselho também organizou um laboratório de escrita teatral e um programa de intercâmbio cultural no teatro Royal Court, permitindo que escritores tais como Sigarev, os Presnyakov e Vyrypaev viajassem para Londres por um período de residência e publicassem traduções dos seus textos para o inglês, aumentando, assim, o escopo das suas peças para além dos limites da Rússia.

Impacto
Do ponto de vista prático, o programa do Royal Court foi um sucesso. Mas, para se dizer que impacto teve no teatro russo, é preciso analisá-lo melhor com o passar do tempo. Em um país onde a influência ocidental foi (e ainda é) mínima, a informação é filtrada pelos preconceitos daqueles que a disseminam, estando refém de tais preconceitos. É por isso que, quando os peritos em teatro contemporâneo do Royal Court impuseram as suas opiniões ao único programa do tipo, os seus valores estéticos alinharam-se aos dos novos dramatistas russos.
Por exemplo, em prol dos autores ligados às questões sociais, o Royal Court iniciou uma série de seminários sobre docudramas (tipo de teatro em que se encenam, com certa fidelidade, eventos históricos), que foram populares na Inglaterra durante a década de 60 do século passado, com o nome de verbatim. Os seminários privilegiavam certas tradições em detrimento de outras, descartando os autores alemães tais como Piscator, Brecht e Peter Weiss.

Precedente
Também há um precedente para isso na Rússia: os revolucionários do século XIX, tais como os narodovoltsi (a facção da “vontade do povo”), costumavam ir até o “povo” para reunir bordões ipsis litteris que, mais tarde, seriam publicados em manifestos e panfletos. Um estilo jornalístico parecido fazia-se notar em escritores tais como Leonid Andreev, que fora escrivão e anotara os depoimentos dos terroristas da facção dos narodovoltsi no tribunal, ladrõezinhos e assassinos do interior que, em dado instante, adentraram os textos do começo da sua carreira, influenciando a sua maneira de escrever. O realismo socialista soviético também é um gênero baseado no documentário, ainda que seu ponto-de-vista tenha descambado para um só lado; o governo espalhava contingentes de escritores para observar o dia-a-dia dos operários e campônios “rumo ao comunismo” para transpô-lo ao palco. Por isso, não é surpresa que os russos tenham reagido visceralmente aos Jovens Zangados da década de 50 e 60 do século passado, um grupo de escritores ingleses (tais como John Osbourne e Edward Bond) cujos valores conflitantes e atitudes políticas manifestas se opunham aos absurdistas europeus da mesma época, que eram mais metafísicos.

Legado
Os dramaturgos russos também se depararam com o legado dessa “onda inglesa” na década de 90, quando notaram que Sarah Kane, Anthony Neilson, Mark Ravenhill e outros mais se valiam de ferramentas e polêmicas parecidas. Linguagem forte, nudez, sexo homossexual, violência doméstica e frustração absoluta com a vida, tudo isso inundou os palcos. Na Inglaterra, esse tipo de teatro tinha um precedente; na Rússia, era coisa inaudita. A influência do Royal Court não pode ser subestimada. As personagens russas agora xingam, transam, matam e sofrem em assomos violentos, voltando-se para temas intrusivos e reais tais como a pobreza, a frustração, o alcoolismo e a injustiça social.
E, assim, o “novo” gênero foi passado de maneira entusiástica dos ingleses para os criadores do Teatr.doc — que se tornou um lugar de experimentação para os docudramas; os escritores coletavam centenas de gravações em fita e as convertiam em textos dramáticos variados. À medida que a idéia ganhou força, os dramaturgos viajaram para lugares cada vez mais remotos: Galina Sinkina visitou uma prisão de segurança máxima para entrevistar mulheres que assassinaram os seus parceiros no calor da paixão; Yekaterina Narshi foi a uma outra prisão para investigar o relacionamento de mães e filhas separadas pelas barras da cadeia; Olga Lysak entrevistou centenas de mulheres bonitas para montar um espetáculo chamado The beauties, uma pesquisa docudramática a respeito do que significa ser a pessoa mais linda do mundo.

Ganho
Em resumo, esse teatro à moda de documentário está, provavelmente, mais próximo dos reality shows do que do jornalismo e do drama, muito embora tanto os diretores quanto os atores saiam ganhando com essa experiência. Na pior das hipóteses, a tentativa de montar peças assim os induzirá à experimentação. Mas é impressionante que a influência do Conselho Britânico tenha caído tão rapidamente nas graças de todos, lembrando os esforços dos Aliados na Alemanha depois da Segunda Guerra Mundial. Enquanto a França, a Inglaterra e os Estados Unidos impunham cada um a sua própria lei e a sua influência na Alemanha derrotada, a British Broadcasting Company fazia do sistema televisivo alemão um réplica da BBC com o intuito de “re-educar a nação”, e os executivos de Hollywood receberam incentivos fiscais para montar estúdios na região de Berlim Ocidental. Não digo que o Ocidente esteja se apoderando da Rússia assim tão rapidamente, mas nota-se que a cultura estrangeira, bem como Wall Street, está desempenhando um papel vital no futuro do país.

Ironia
Ironicamente, o Instituto Goethe exerce uma influência parecida. Não mais restrita à Moscou, a organização global voltada para a cultura e para a literatura está patrocinando muitos projetos de tradução, está pagando os dramaturgos russos para que escrevam sobre a Alemanha e pesquisem sua história nas filiais locais. Algumas semanas atrás, eu compareci à leitura de uma peça em Togliatti chamada Why I remember this. Um dramaturgo da região me explicou como a peça tinha sido concebida: em um trem, ele conheceu por acidente um representante do Instituto Goethe que o encorajou a dar asas ao seu interesse por Marlene Dietrich, oferecendo-lhe uma viagem para Berlim para pesquisar os arquivos dela e para juntar material para uma peça sobre o assunto. Embora não falasse alemão, o dramaturgo foi a Berlim, falou com os familiares de Marlene e escreveu, sim, uma peça.
O teatro alemão tem sido uma presença constante na Rússia desde que Peter Stein montou As três irmãs, de Tchekhov, em uma turnê em 1990. A tradição experimental alemã e o costume de os diretores serem o centro do espetáculo foram muito bem recebidos no teatro russo, onde os diretores são tratados de maneira semelhante já há muito tempo. Thomas Ostermeier e Christoph Marthaler são louvados anualmente por conta das turnês de suas produções, e o controverso dramaturgo Marius von Mayenburg já foi traduzido e encenado na região que vai desde Moscou até a fronteira com o Alasca. O festival independente do Novo Teatro Europeu (o NET, jogo com nyet), que acontece anualmente, fundado pelos respeitados críticos teatrais Roman Dolzhansky e Marina Davidova, também promove esse tipo de teatro experimental e ajuda a exportar as produções russas.

Exigência
A Nova Dramaturgia parece exigir novas formas de se fazer crítica, e a arte da crítica, na Rússia, sofreu deveras grandes mudanças no decorrer deste novo século. Mas não são mudanças positivas: os críticos dos jornais, pessoas altamente qualificadas e treinadas em crítica teatral, ao contrário dos seus equivalentes ocidentais, subverteram o braço analítico do jornalismo teatral. Visto que a maioria dos periódicos acadêmicos está morrendo por causa das dificuldades econômicas e, também, por causa da redução de circulação e de material, a cobertura do teatro tem ficado nas mãos dos jornais e das revistas tais como a Time Out. Mas o mercado das editoras exige reportagens resumidas, vivas, fáceis de ler, que digam aos seus leitores aquilo que eles devem ou não devem conferir em tal e tal dia.
Um fenômeno relativamente novo é o sistema de avaliação por notas que força muitos críticos (se não todos) a “avaliar” as montagens (assim como também os diretores e todo o resto) de acordo com o seu gosto e a sua preferência, dando-lhes notas tais como A+, B- e por aí vai. O exemplo dos grandes sucessos de bilheteria de Hollywood está forçando o teatro a entrar numa disputa competitiva. Um novo jargão de marketing americano também entrou no léxico dos críticos: palavras como casting, PR e shopping estão invadindo, aos poucos, as páginas dos jornais. Ainda que os principais jornais de Moscou não tenham o mesmo impacto imediato na bilheteria que tem, por exemplo, o New York Times (os espetáculos não duram nem uma semana depois de uma crítica ruim), os leitores russos estão confiando cada vez mais nos críticos de renome, dando-lhes um enorme valor.

Importância
Diferente de Nova York, onde uma crítica de Bem Brantley pode causar mais dano à produção do que a falta de verba da NEA, o Ministério da Cultura russo (sediado em Moscou) ainda é o principal patrocinador dos teatros municipais, dos festivais nacionais e da cultura russa nos países estrangeiros. Na última década, essa agência do governo foi de grande importância no desenvolvimento do novo sistema de repasse de verbas (financiamento das artes como na Europa Ocidental), estando envolvido atualmente na difícil tarefa da “Reforma Teatral Russa” — uma empreitada futura cuja realização não se sabe ao certo a quem se deve. Todos estão de acordo, no entanto, que uma reforma é necessária, pois há enormes discrepâncias nos salários dos atores e os “teatros acadêmicos” com três mil assentos, verdadeiros dinossauros em extinção, são alugados para shows de rock e espetáculos itinerantes.

Internet
A internet também gerou novas possibilidades para a crítica teatral e para a expressão dramática na Rússia. Após terem experimentados as salas de bate-papo comuns, os fóruns de discussão e os sites de busca na internet, os russos se viciaram na mais antiga das formas literárias: o diário. O site Livejournal.com, baseado no modelo americano, possui a maior comunidade virtual russa; às vezes, parece que todos com mais de 10 anos de idade têm um blog para escrever. Para os adolescentes e para as suas mães, não há nada mais chique do que documentar a comicidade, as frustrações e as preocupações do dia-a-dia. As comunidades da internet satisfazem a todos os gostos: desde um suspeito “Misóginos, uni-vos!” até o fórum da Nova Dramaturgia, que é estritamente literário. Muitas personalidades famosas, muitos escritores de peças, diretores e atores escrevem diariamente nos fóruns e postam comentários.
Essa cultura de vanguarda virtual costuma substituir os jornais e a televisão. As pessoas reagem a tudo: desde o ato de terrorismo em Beslan (Ugarov se valeu dos comentários, das impressões imediatas que achou na internet para criar a montagem de September.doc) até as discussões exaltadas do crescente número de adolescentes que se suicidam. Acresce que muitos críticos teatrais, embora estejam empregados em tempo integral nos jornais, nos teatros e nas companhias de produção, acham tempo para escrever críticas extras e recomendar peças que nem sempre chegam a ser assunto dos jornais e das revistas. Os dramaturgos costumam pôr contos na internet, e alguns dos links em seus sites nos levam a fazer novas descobertas. O diário virtual de Kolyada, por exemplo, está ligado a mais dez outros sites de dramaturgos mencionados nesse ensaio. É um espaço que promove a conexão das mentes produtivas do país, que permite que debatam questões em comum, que compartilhem informação uns com os outros e que construam parcerias.

Realidade
Mas, como era de se esperar, as comunidades mais importantes do teatro russo são reais e, não, virtuais. Vadim Levanov, ex-aluno do Instituto Estadual de Literatura de Moscou, saído do legendário festival Lyubimovka para jovens dramaturgos, fundou, em um lugar inesperado, mais um centro importante da Nova Dramaturgia. Foi pedido a Levanov que enviasse a sua primeira peça a Ugarov e Gremina em 1993, e eles logo atinaram para a sua personalidade ardorosa e para o seu talento literário. A cidade onde mora Levanov, a cidade industrial de Togliatti, no rio Volga, no sudeste da Rússia, é famosa por ser o centro da indústria automobilística do país, que é monopolizada pela VAZ.
A história de Togliatti é muito rica e remonta aos tempos medievais, mas reza a lenda que, durante o governo soviético, a verdadeira Togliatti foi inundada por causa da construção de uma represa no Volga, e que, portanto, em vez de uma cidade medieval, o que se tem agora é o mar artificial de Zhiguli. Do outro lado do rio, os soviéticos convidaram a Fiat, a empresa italiana, para ajudá-los a construir uma fábrica de automóveis. Na década de 50 nasceu a versão russa de Detroit cujo nome era uma homenagem ao líder comunista italiano — Togliatti.

Patrocínio
Até hoje, praticamente todo mundo na cidade trabalha para a VAZ; a fábrica tem até um estúdio televisivo próprio com talk shows matinais e cenários lustrosos. A VAZ patrocina muitos eventos culturais; alguns anos atrás, a empresa doou uma quantia significativa de dinheiro para a reconstrução de um teatro estatal grande conhecido como A Roda. Mas, por alguma razão, a VAZ não apoiou o festival anual Leituras de Maio — uma empreitada mais vibrante e mais criativa do que a do teatro estatal. O festival e os seus idealizadores, Vladimir Doroganov e Vadim Levanov, são cultuados pelos intelectuais do teatro russo. Agem por caridade e administram uma organização verdadeiramente não-lucrativa. Levanov estudou escrita teatral no Instituto Estadual de Literatura de Moscou e, depois de se ter formado, retornou para Togliatti. Foi aí que entrou para o Golosova-20, o centro comunitário onde trabalhou como chefe de produção teatral, e começou a divulgar a dramaturgia contemporânea.
Por causa do entusiasmo e do apetite que tinha pela vida e pela arte, Levanov conseguiu atrair para Togliatti os jovens artistas de talento. Conforme ele mesmo me disse no festival de 2005, seu objetivo é fazer com que todos escrevam peças de teatro. O único conselho que ele deu a esses jovens foi o seguinte: “à esquerda você põe o nome e à direita o que eles estão dizendo: escrever peças é isso”. Em 16 anos, o festival mudou: deixou de ser um mero pódio literário para poetas e escritores e se tornou um festival de teatro completo, com uma reputação ascendente.

Multidão
Em maio de 2005, me juntei à multidão para ver com os meus próprios olhos. A primeira surpresa que tive foi com as pessoas. Para um festival de porte tão grande, havia muito pouca competição profissional. Levanov chama o festival de “happening”, uma reunião de amigos e colegas. Os escritores corriam de um lado para o outro tentando arrumar, até o último instante, um elenco para a leitura das suas peças, e nem mesmo eu escapei disso. Os atores descansavam em um camarim confortável, que servia de centro de comando, e recebiam os participantes de outros estados com café fresco e cigarros do próprio bolso. Se a nova Moscou parecia uma combinação frenética de Nova York com a extravagante cidade de Los Angeles, onde o “quem você conhece” vale mais do que “o que você conhece” — Togliatti era tipicamente russa. oferecendo cafcafe comandoonfortamarins conforts peças at
Depois de uma semana de mesas-redondas, leituras e encenações de peças, ficou claro que Togliatti funciona como uma escola distinta, de onde saem artistas do gabarito de Yuri Klavdiev, Mikhail e Vyacheslav Durnenkov e Kira Malinina. Com Levanov incentivando os seus protegidos, e os irmãos Durkenkov surgindo de repente, vindos das ruas sombrias da cidade, notei que as peças novas caíam todas nas mãos de Levanov, o centro de gravidade, em cujo redor se formara um núcleo forte de pessoas, ligadas umas às outras por uma extraordinária devoção ao desenvolvimento da nova literatura.

Exemplo
O exemplo dos Durkenkov ilustra bem o sucesso de Togliatti. Seu trabalho costuma balancear baladas e parábolas com a linguagem simples e poética do dia-a-dia. As questões filosóficas mais profundas ficam escondidas de tal maneira que o público continua formulando novas interpretações, diferentes das formuladas durante a encenação. The cultural layer termina com a visão apocalíptica de uma jovem mãe que descreve a cidade envolta em fumaça. A peça é composta de três esquetes que se entrelaçam de maneira inteligente: o velho e o seu neto (que é artista); os dois corretores bandidos; e os recém-casados que, por coincidência, compraram o apartamento em que o velho e o neto moraram. O público tem que montar o quebra-cabeça traçando paralelos entre a noiva e as memórias de infância do neto, entre o velho e o corretor imobiliário. No final, esse esforço da platéia é pago com uma descoberta estarrecedora: se os recém-casados têm onde morar, isso se deve unicamente ao fato de os corretores terem acobertado o incêndio criminoso que matou o velho e o jovem artista. O humanitarismo e a destruição podem ocupar, confortavelmente, a mesma página quando o texto vem de uma cidade como Togliatti — onde morreu baleado o editor-chefe de um jornal importante que pôs a corrupção em evidência, e também o seu sucessor, morto a facadas.

Idéia
No festival, a companhia de teatro local, a Vária, também estreou a peça Mütter, de Vyacheslav Durkenkov, dirigida por Galina Shvetsova-Skripinskaya. Segundo Durkenkov, a idéia para a peça lhe veio em um asilo local, onde prestou serviço comunitário por ter cometido um delito de pouca importância. Lá ele conheceu heróis da Segunda Guerra, todos inconscientes, bêbados, olhando para o nada, o peito luzindo as muitas medalhas de bravura. Mütter retrata, com lirismo e crueza, os avós que, descartados e esquecidos pela sociedade, têm que criar um mundo à parte para escapar da monotonia de suas próprias vidas. Mütter se vale de artifícios tipicamente teatrais: uma peça dentro da peça — que os velhinhos escrevem e encenam em uma competição regional — cujo tema é a brumosa cidade de Bruxelas. Na montagem da companhia Vária, o humor azedo dessa farsa trágica foi muito bem encenado. Espantei-me ao saber que os atores não eram profissionais; alguns eram alunos, e havia até funcionários da VAZ.
Imagens
Yuri Klavdiev, também nascido em Togliatti, faz teatro como quem faz cinema, fragmentando o seu próprio texto em uma série de imagens impressionantes. Suas personagens são arquetípicas, molecas e agressivas; estão quase sempre com a corda no pescoço. A violência faz parte das suas peças, chove sangue para todo o lado. Mas é uma violência exagerada de propósito, uma violência icônica. Chamam-no de “hiper-realista”, mas Klavdiev é tudo menos isso. A sua obra é como um desenho animado para adultos, uma revista em quadrinhos com super-heróis, vilões e conflitos tão óbvios quanto a diferença entre o dia e a noite, nos quais tudo está em jogo, inclusive o triunfo do bem ou do mal. Assassinato, suicídio, lembranças de estupro, tudo isso é retratado com indiferença, como se fosse um grande pôster com esboços distorcidos e cores fortes.
A maioria dos dramaturgos que eu conheci em Togliatti tinha em comum uma enorme ânsia pelo metafísico e uma dramaturgia baseada na fragmentação — a imagem do século XXI refletida em um espelho. Com Goodbye, piano tunner!, de Levanov, cuja personagem central é uma figura visceral,“lolitesca”, a coisa não é diferente. Poucos são os dramaturgos da Nova Dramaturgia (a maior parte é de homens) que ousam falar de amor, mas essa peça causa espanto por causa da sua voz singular, apaixonada. Levanov também escreveu outras peças com personagens femininas: 1,2,3 é um relato assustador do abuso sexual e do suicídio entre os adolescentes. E 100 pounds of love expõe de maneira comovente uma série de confissões de amor obsessivo, contadas a partir das cartas enviadas pelas fãs aos seus atores e cantores favoritos.

Torcida
Resta-nos apenas torcer para que Levanov continue a guiar e a educar a juventude de talento de Togliatti. O governo local até poderia construir um Levanov-Teatr no futuro se fosse capaz de vislumbrar os benefícios que o festival trará a longo prazo. Mas, infelizmente, até mesmo Nikolai Kolyada, um mestre renomado, tem que lutar para garantir seu lugar na Rússia de hoje. O seu Kolyada-Teatr quase fechou em abril de 2004, porque o governo implicou com os termos do contrato de arrendamento.
“Nova Dramaturgia” é um nome volátil demais para um país tão cheio de incertezas. A Nova Dramaturgia é uma zona de risco — uma guerra medíocre entre os diretores e os autores. Está revelando um território excitante, desconhecido, em que muitos vão cair, e de onde poucos vão se levantar. Kolyada, Loevsky, Levanov e Gremina continuam a perseguir a sua paixão, assim como o fizeram Jarry, Artaud e Vitrac na virada do século XX, quando os críticos, espumando de raiva, caíram em cima da sua linguagem desajeitada, desigual, absurda e até mesmo surreal. A próxima geração da Rússia precisa de um palanque para falar, assim como também precisa de algo para criticar.

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Notas:
1. As traduções para o inglês dos textos em russo foram realizadas por Yana Ross.
2. Pronunciamento de Boyakov na coletiva de imprensa do festival, São Petersburgo, 2004.
3. Moscow Times, 9 de Julho de 2004.

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