O Teatro de Bali
Antonin Artaud
O espetáculo de teatro de Bali, mistura de dança, canto e pantomima - e um pouco de teatro como o entendemos aqui - restitui, conforme processos de eficácia comprovada e sem dúvida milenares, ao seu destino primitivo o teatro, que ele nos apresenta como uma combinação de todos esses elementos amalgamados sob o ângulo da alucinação e do medo.
É notável que a primeira das pequenas peças que compõem esse espetáculo, que nos apresenta as censuras de um pai à filha rebelde contra as tradições, começa por uma entrada de fantasmas, ou, se quiserem, os personagens, homens e mulheres, que vão servir ao desenvolvimento do tema dramático mais familiar, aparecem no começo, em seu estado espectral de todo personagem de teatro, antes de permitir que as situações dessa espécie de esquete simbólico evoluam. Aqui, de resto, as situações são apenas pretexto. O drama não evolui entre sentimentos, mas entre estados de espírito, esses mesmos ossificados e reduzidos a gestos - esquemas.
Pureza
Em resumo, os balineses realizam, com o máximo rigor, a idéia do teatro puro, onde tudo, concepção e realização, só vale, só existe pelo seu grau de objetivação em cena. Eles demonstram vitoriosamente a preponderância absoluta do diretor, cujo poder se estende até a origem intelectual dos movimentos, dos gestos, e que elimina as palavras.
Temas
Os temas são vagos, abstratos, extremamente gerais. O que lhe dá vida é a super-abundância complicada de todos os artifícios cênicos, que se impõem ao nosso espírito como a idéia de uma metafísica tirada de uma nova utilização do gesto e da voz.
Curiosidade
O que há realmente de curioso em todos esses gestos, nessas atitudes angulosas e brutalmente cortadas, nessas modulações sincopadas de garganta, nessas frases musicais, nessas vozes de élitros, nesses ruídos de ramos, esses sons de caixas ocas, esse ranger de autômatos, essas danças de manequins animados, é que, através do dédalo de seus gestos, de atitudes e gritos lançados ao ar, através dessas evoluções e curvas que utilizam todo o espaço cênico, se depreende o sentido de uma nova linguagem física na base de sinais e não de palavras.
Hieroglifos
Esses atores, com suas roupas geométricas parecem hieroglifos animados. E não há até na forma de suas roupas que, deslocando o eixo do corpo humano, cria, ao lado das idumentárias desses guerreiros em estado de transe e de guerra perpétua, espécie de vestidos simbólicos, de segundas roupagens que não inspirem, essas roupas, uma idéia intelectual, e não se liguem, por todos os entrecruzamentos de suas linhas a todos os entrecruzamentos das perspectivas do ar.
Sentido
Esses sinais espirituais têm um sentido preciso, que só nos atinge intuitivamente, mas com bastante violência para tornar inútil qualquer tradução numa linguagem lógica e discursiva. E para os amadores do realismo a qualquer preço, que se fatigariam dessas alusões perpétuas a atitudes secretas e desvairadas do pensamento, resta o jogo eminentemente realista do double (duplo), que se sobressalta com as aparições do além. Esses tremores, esses ganidos pueris, esse salto que bate o chão cadenciadamente segundo o própri9o automatismo do inconsciente desencadeado, esse outro duplo que, em dado momento, se oculta atrás de sua própria realidade, eis uma descrição do medo que vale para todas as latitudes e mostra o sobre-humano; os orientais podem nos ensinar muito em matéria de realidade.
Eficácia
Os balineses, que têm gestos e uma variedade de mímicas para todas as circunstâncias da vida, dão novamente à concepção teatral o seu preço superior, e nos demonstram a eficácia e o valor supremamente ativo de um certo número de convenções bem aprendidas e magistralmente aplicadas. Uma das razões de nosso prazer diante desse espetáculo reside justamente na utilização, pelos atores, de uma quantidade exata de gestos seguros, de mímicas exatas, e sobretudo no enroupamento espiritual, no estudo profundo e nuançado que presidiu a elaboração desses jogos de expressão, desses sinais eficazes, sinais cuja eficácia - é o que pensamos - não se esgotou apesar de serem milenares.
Arquitetura
Esse girar mecânico dos olhos, esses movimentos de lábios, essa dosagem das crispações musculares, em seus efeitos metodicamente calculados e que desconhecem qualquer recurso de improvisação espontânea, essas cabeças movidas horizontalmente e que parecem girar de uma espádua a outra como se fossem encaixadas em glissadores, tudo isso, que responde a necessidades psicológicas imediatas, corresponde além disso a uma espécie de arquitetura espiritual, feita de gestos e mímicas, mas também do poder evocador de um sistema, da qualidade musical de um movimento físico, do acordo paralelo e admiravelmente integrado num tom. É possível que isso choque o nosso sentido de espontaneidade, mas não digam que essa matemática é criadora de secura nem de uniformidade.
Sensação
A maravilha é que uma sensação de riqueza, de fantasia, de generosa prodigalidade se desprende desse espetáculo. E as correspondências as mais imperiosas brotam perpetuamente da vista ao ouvido, do intelecto à sensibilidade, do gesto de um personagem à evocação dos movimentos de uma planta através do grito de um instrumento. Os suspiros dos instrumentos de sopro prolongam as vibrações das cordas vocais com um sentido de identidade que não se sabe se é a própria voz que se prolonga ou o sentido que desde as origens absorveu a voz.
Jogo
Um jogo de juntas, o ângulo musical que o braço faz com o ante-braço, um pé que cai, um joelho que se arqueia, dedos que parecem se separar das mãos, tudo isso é para nós como um perpétuo jogo de espelho em que os membros humanos parecem emitir ecos, músicas, em que as notas da orquestra evocam a idéia de um intenso viveiro. Em nosso teatro, jamais se vislumbrou essa metafísica do gesto, que nunca soube usar a música para fins dramáticos tão imediatos, tão concretos, nosso teatro puramente verbal e que ignora tudo aquilo que é o teatro, isto é, o que está no ar do tablado, que se mede e se cerca de ar, que tem uma densidade no espaço: movimentos, formas, cores, vibrações, atitudes e gritos poderiam, em vista do que não se mede e que vem do poder de sugestão do espírito, pedir ao teatro de Bali uma lição de espiritualidade.
Idéia
Esse teatro puramente popular e não sagrado, nos dá uma idéia extraordinária do nível intelectual de um povo que toma como motivo de suas festas cívicas as lutas de uma alma presa das larvas e dos fantasmas do além. Por que é bem, em resumo, o combate puramente interior de que se trata nessa última parte do grau de suntosidade teatral que os balineses foram capazes de nos dar. O sentido das necessidades plásticas da cena, que aí aparece, só tem correspondência em seu conhecimento do medo físico e de seus recursos para desencadeá-lo. E há, no aspecto verdadeiramente terrificante de seu diabo (provavelmente tibetano), uma similitude marcante com o aspecto de certo fantoche de nossa reminiscência, com as mãos cheias de gelatina branca, as unhas de folhagem verde, e que era o mais belo enfeite de uma das primeiras peças representadas pelo teatro de Alfred Jarry.
(Artigo escrito em 1931 e publicado na revista Spectacles. Este texto de Antonin Artaud está publicado na revista Cadernos de Teatro nº 47, 1970, edição já esgotada)
_________________________
sexta-feira, 27 de março de 2009
Assinar:
Postar comentários (Atom)
curso artes cenicas e achei seu blog, foimuito útil para um estudo que estou fazendo sobre teatro oriental, continue buscando e proporcionando conhecimento!
ResponderExcluirTambém curso Artes Cênicas e devido uma pesquisa para uma disciplina do meu curso,obtive muita informação sobre o Teatro Oriental:"Parabéns!!!!!!!"por seu blog!!!!!!!!!!
ResponderExcluirAline Lima-Mamanguape PB