quinta-feira, 12 de março de 2009

A aventura humana de Molière

Sábato Magaldi


Fazer a exegese de Molière seria decifrar o próprio mistério do teatro. Na história da atividade cênica, nenhum nome (com exceção talvez de Shakespeare, que orientou sua aventura artística em outro sentido, chegando a fins semelhantes) encarnou como Jean-Baptiste Poquelin toda a riqueza do fenômeno teatral, a ponto de poder ser considerado uma súmula dele. Quando se trata de estabelecer as verdades básicas, não há como fugir aos lugares-comuns, identificando a máscara de Molière à fusão das duas máscaras que simbolizam o teatro.
Jouvet reivindicou para Molière, assentando uma verdade essencial no seu entendimento, a primazia do ator sobre o autor homem de bom senso, do dramaturgo sobre o filósofo e o moralista. Recolocando-o dentro do teatro, ele alargou suas fronteiras, porque lhe reconheceu uma margem de imprevisto e de imaginação que rompem os conceitos de um naturalismo limitado e de uma estética burguesa. Molière despiu-se da sobrecarga dos valores eternos para viver de novo da magia de um teatro que se inventa no palco, herdeiro da Commedia dell’Arte.

Imagem
Mas é preciso compreendê-lo no seu todo, não omitir a inscrição histórica de sua biografia. Não há uma face reveladora de Molière, apreensível numa peça privilegiada: sua imagem se foi construindo com as numerosas experiências e ficaria incompleta com a omissão de um único texto, ou uma única iniciativa do ator-empresário. A maturidade, nos chamados anos difíceis, deu-lhe talvez uma forma próxima da síntese, com Le tartuffe, Dom Juan e Le misanthrope. Faltariam ao retrato, porém, as hesitações do início, as liberdades expressivas de muitas obras, o vôo genial de cenas soltas e a crise decorrente daquelas peças-limite, monumentos isolados que não poderiam conhecer descendência. Molière é o seu itinerário e nesse itinerário concentram-se todas as indagações a respeito do teatro.
Filho de família burguesa com acesso à Corte (seu pai era tapeceiro do rei e essa patente lhe seria transmitida), aluno dos jesuítas e freqüentador dos espetáculos populares, rompeu o círculo familiar e tentou o teatro parisiense, caindo na prisão, por dívidas. Esse o ponto de partida e a explicação para o mambembe que o manteve em excursão pelo interior da França durante doze anos, e onde solidificou o métier da companhia e fez as primeiras experiências como autor. Ao regressar à metrópole, Molière lançava uma cartada decisiva e tinha a seu favor o longo aprendizado na província, a lenta preparação de um elenco apto para os vários papéis do repertório.

Malogro
Se Molière, como intérprete, não fosse tão insuficiente na tragédia, talvez tivesse sido outra sua carreira. Sobretudo na última década da primeira metade do século XVII, o gênero “nobre” concentrava todos os interesses, não podendo equiparar-se a ele, em ambição artística, o divertimento dos cômicos italianos. A história de Molière foi assim, a princípio, a história de um malogro, de uma incapacidade para os altos cimos literários. Ao sair dos ensaios populares de La jalousie du barbouillé, Le médecin volant ou mesmo Les précieuses ridicules, tentou sem muito êxito uma contrafação heróica em Dom Garcie de Navarre. A fria acolhida encaminhou-o de novo aos seus arraiais, mas agora com a noção de que deveria encontrar neles um equivalente artístico da grandeza da tragédia.
L’école des femmes, posterior a L’école des maris e Les fâcheux, vem encontrá-lo já no pleno domínio de seu instrumento e consciente da elevada missão da comédia. Replicando aos seus detratores, Molière se manifesta sobre a tragédia sem nenhuma inferioridade. Dorante, a personagem que apresenta sua plataforma estética em Critique de l’école des femmes, não só concorda em que um gênero não é menos difícil que o outro, como acrescenta:
“Talvez não se exagerasse considerando a comédia mais difícil. Porque, afinal, acho bem mais fácil apoiar-se nos grandes sentimentos, desafiar em versos a Fortuna, acusar o destino e injuriar os Deuses do que apreender o ridículo dos homens e tornar divertidos no teatro os defeitos humanos”. Mais adiante, nessa fala, Dorante conclui: “Mas quando se pintam os homens, é preciso pintá-los como são; deseja-se que os retratos sejam fiéis, e não se consegue nada se não se faz reconhecer as pessoas do seu mundo. Numa palavra, nas peças sérias, basta dizer coisas de bom senso e bem escritas para não ser criticado; mas isso não é suficiente para as outras; é necessário brincar; e é uma estranha empresa fazer rir as pessoas honestas”.

Guerra
Estava publicamente declarada a guerra entre a comédia e a tragédia. Molière abandona o herói, para fixar o homem. À humanidade ideal de Corneille, opõe uma humanidade real, nos seus vícios e nos seus ridículos. Mas o comediógrafo não se satisfaz com esse aspecto da questão, pelo qual sua obra poderia ser julgada uma paródia da tragédia corneliana. Procura imprimir à comédia uma dignidade superior, fazendo rivalizar a sua matéria com a utilizada pela tragédia. Na aparência, suas melhores obras valem-se do vício e do ridículo, com o objetivo de provocarem o riso; seu substrato, porém, é a tragicidade da condição humana, apreendida na observação do meio e de si mesmo. Ninguém pode deixar de ver, na irrisão de algumas das grandes personagens molierescas, a dolorosa imagem do homem solitário em face do destino.

Infidelidade
Casado com Armande Béjart (vinte anos mais jovem do que ele e não se sabe se filha ou irmã de Madeleine Béjart, sua antiga amante), perseguido pela idéia da infidelidade da esposa e vítima da cabala dos preciosos e dos falsos devotos, Molière purga-se na exibição das próprias dores, oferecendo-se em espetáculo para os outros. É inútil indagar até que ponto o homem se retratou na obra e ela caminha paralelamente à biografia: a coerência interna das peças e a unidade da dramaturgia dispensam esclarecimentos da vida real, porque se bastam na expressão artística.
Alfred Simon compôs no Impromptu de Molière o solilóquio do homem, feito das réplicas do escritor. Real ou imaginária, a personagem nascida das sugestões da obra tem existência própria, define-se como um ser autônomo. E, examinando a farta galeria dos tipos molierescos, será difícil fugir à tentação de ver os principais como variações de um mesmo homem, transmitido ora com preponderância de uma tônica, ora de outra. Os numerosos ensaios sobre Molière analisam com minúcia a natureza particular de Tartufo, Dom Juan e Misantropo. Apraz-nos divagar, porém, sobre esses textos, que poderiam ser englobados numa trilogia.

Problema
Em cada um deles, Molière põe o herói a reagir com empenho diante de um problema: em Le Tartuffe, diante da religião; em Dom Juan, diante do amor; e em Le Misanthrope, diante da sociedade e de si mesmo. É claro que essas distinções são simplificadoras e omitem conscientemente as outras coordenadas das obras, tanto assim que Tartufo e Alceste são movidos também por amor e Dom Juan faz terrível libelo contra a religião e a sociedade. A distinção didática serve apenas para mostrar como o dramaturgo, em suas obras-primas, quis aprender a substância humana, ao menos como ela se revelava ao século XVII.
Os censores de Le Tartuffe não se enganaram sobre a essência da peça e tudo fizeram para mantê-la interditada. De nada valeram os protestos de Molière, segundo os quais pintava um “impostor”, um “falso devoto”, um dos maus cristãos que se desgarravam do aprisco religioso. Tartufo contém mais verdade do que seria desejável num mero hipócrita. Seu caso, simplificadamente, poderia ser o de dupla personalidade. O homem apto a auferir as vantagens do prestígio religioso perde-se por causa das inclinações irreprimíveis. Eram-lhe presenteadas a jovem e a fortuna. Ele preferiu o risco de cobiçar a mulher casada. A razão o premiaria; a paixão o aniquilou. Molière faz saltarem no indivíduo essas reservas insondáveis que são a sua fatalidade. Tartufo é castigado menos por ser insincero no culto religioso do que vítima da fidelidade ao seu amor obscuro. É preciso resistir ao desejo de enxergar no texto a inviabilidade da devoção sincera, porque a carne é frágil e tem exigências escravizadoras.

Procura
Dom Juan mostra a alucinada procura de um homem que só repousará na morte, porque a vertigem terrena nunca lhe permitiu encontrar a própria unidade. As múltiplas mulheres representam o desespero de não ter descoberto a única, bem como a blasfêmia o fardo por não se ter conseguido entregar à religião. O desafio ao desconhecido e o conseqüente silêncio põem termo a uma existência que não se explicou. A atribulada vida sentimental de Molière tinha na figura do burlador uma imagem ampliada de seus descaminhos.
O retrato do Misantropo parece mais fiel ao do escritor - homem que procura integrar-se no meio e acaba no refúgio da solidão. Sua intratabilidade está aí caracterizada. Célimène não correspondeu à total oferta de Alceste e este recusou-se aos compromissos menores. Se as relações só podem ser mantidas com base em melancólicas transigências, o melhor é fugir do comércio humano. O indivíduo choca-se contra a sociedade e não se ajusta à sua impostura. Com a ascensão da burguesia, desenhava-se já a crise íntima do homem vitorioso. A integridade de Alceste não se conciliava com as concessões e as máscaras da convivência social. Molière, depois do Misantropo, se retiraria do mundo ou acertaria seu passo ao ritmo dos demais.

Tragédia
Conclui-se sem dificuldade que as obras-primas do gênio da comédia não são peças cômicas, e testemunham antes uma inequívoca visão trágica. Se os autores trágicos buscavam modelo nas personagens envoltas pelo prestígio da História ou da condição social, Molière descobriu tragicidade nos pobres-diabos atrapalhados com as suas mazelas e apresentando para os circunstantes uma aparência cômica. Dificilmente haverá no palco uma combinação mais eficaz.
Mas, se o homem é cético na atitude pessoal, pode encontrar alento na realização artística. E a encruzilhada do Misantropo, derrotando o indivíduo, salva o escritor. Vem a “escapinada providencial”, com uma série de variações entremeadas de bailado. Triunfa o comediógrafo oficial de Luiz XIV, embora outros competidores começassem a turvar um brilho que antes não conhecia rivais. Atrás das farsas mais desabridas, como podem parecer Les fourberies de Scapin ou Le bourgeois gentilhomme, há uma ponta indisfarçável de amargura. Georges Dandin é muito mais agressivo e revela, em toda a sua nudez, a repetida desgraça que atinge o trânsfuga de sua classe: os aristocratas decadentes querem o dinheiro do burguês mas o desprezam, e a mulher o trai nas barbas, com a secreta aprovação da família. Só lhe resta reconhecer: “Quando alguém casou, como eu, com uma mulher má, a melhor solução é se atirar de cabeça na água”. Talvez Molière tenha feito aí a catarse definitiva da tragédia matrimonial.

Morte
Faltava ao doente do peito, que há muitos anos carregava o fardo da moléstia, brincar com o instrumento da morte. E, num prenúncio do fim, ele escreveu e interpretou a comédia de Le malade imaginaire, ironia com o próprio destino. O doente que se queria imaginário estava de fato com a saúde precária e, antes de encerrar-se a quarta representação da peça, foi transportado para casa, expirando uma hora depois. Com 51 anos de idade (1622-1673), cumpria-se a sua biografia.
Afirmar que a obra de Molière não envelheceu e guarda intacta a pujança da criação inicial é pouco para exprimir as sugestões que se vêm renovando inesgotavelmente à cada exegese. Não há um homem eterno, mas existem características humanas com o dom de impor-se às demais. Molière, dentro de rigorosa historicidade, foi aos arquétipos e desvendou um, mais válido e genérico: o homem.
__________________________________
Este artigo, escrito em 1959, foi extraído do volume Temas da História do Teatro, publicado em 1963. (Curso de Arte Dramática, Faculdade de Filosofia, Universidade do Rio Grande do Sul, Porto Alegre)


____________________________

Nenhum comentário:

Postar um comentário