Choques culturais
Moacir Chaves
Em abril deste ano, viajei, trabalhando como ator em uma versão reduzida do espetáculo Bugiaria, pelo interior de Santa Catarina, em um projeto do Sesc chamado Palco Giratório. Um projeto muito bonito e importante. Além das apresentações do espetáculo nas cidades, debatíamos a obra com a platéia, ao final de cada sessão, e realizávamos oficinas para o público local - em uma das cidades, Itajaí, fizemos um intercâmbio com um grupo. Ao todo, percorremos 15 cidades em 29 dias. Das quinze, eu fui a nove - não pude continuar com a companhia porque fui participar de um seminário de teatro em Berlim, intitulado Fórum Internacional de Jovens Profissionais de Teatro, dentro do festival de teatro chamado Theatertreffen.
O festival, anual, encontra-se na sua 39ª edição, e apresenta as dez melhores produções de língua alemã do ano anterior. Nesta edição, foram selecionadas três produções de Zurique, duas de Berlim, duas de Munique, uma de Stuttgart, uma de Hannover e uma de Basel. O fórum, na sua 38ª edição, contou com 54 participantes, alemães em sua maioria, e de mais 17 países. Constava da programação do seminário quatro diferentes oficinas, dentre as quais deveríamos escolher a que mais nos interessasse, ministradas diariamente das 10 às 14 horas. À tarde, eram realizadas discussões diversas entre os participantes e convidados, além de exposições dos estrangeiros sobre o funcionamento do teatro em seus respectivos países. À noite, assistíamos as peças do festival, que eram temas de nossas discussões vespertinas, e aconteciam as “Conversas com o Público”, com a presença de atores, do diretor e de outros participantes da montagem apresentada em cada noite.
Desinformado
Voltando a Santa Catarina. Em uma tarde, em Jaraguá do Sul, havíamos acabado de chegar na cidade, e fomos procurar o teatro onde nos apresentaríamos naquele mesmo dia. Perguntamos a um senhor onde ficava o teatro da cidade e ele respondeu que ali não havia teatro. Era uma cidade onde se trabalhava - não tivemos tempo para esclarecer que estávamos ali, coincidentemente, a trabalho, e em teatro, palavras que na mente daquele senhor não passam muito bem juntas. Além de tudo, ele estava mal informado.
Jaraguá do Sul está terminando de construir um belíssimo centro de cultura, chamado SCAR, com dois grandes e bons teatros, um deles já em funcionamento. Esta obra de grande dimensão foi feita por iniciativa de um grupo de cultura local, apoiado, através da Lei Rouanet, por indústrias da região. O grupo de teatro da cidade, amador, participou do projeto de construção do centro cultural. E apesar de ter sido um dos responsáveis por esta obra, de dar inveja a qualquer teatro no Rio de Janeiro, sequer cogita a possibilidade de se profissionalizar.
Surpresa
De novo em Berlim. Quando fui falar sobre o teatro no Brasil, e em particular no Rio de Janeiro, o organizador do seminário, um homem de cerca de 70 anos, inteligente, culto, bem informado, se surpreendeu ao descobrir que falávamos português e não espanhol, no Brasil. A surpresa foi grande, também, quando disse o custo de algumas produções daqui, cujas imagens exibi em vídeo. Os valores eram exorbitantes para eles, porque inicialmente não entendiam que serviam para pagar também o salário dos atores. Na Alemanha, o custo das produções exclui esse gasto, visto que os atores são geralmente contratados dos teatros, e estão à disposição para atuar nas peças que a direção das casas acha que devam fazer.
Há, além disso, atores convidados para determinados espetáculos. Desta forma, por exemplo, um teatro como o Deutsches Theater de Berlim conta com 40 atores contratados fixos e mais 50 especialmente contratados para a temporada 2001/2002. Com estes atores, o teatro apresenta, em suas duas salas, o seu repertório de 36 peças, algumas delas há mais de dez anos em cartaz. Este é apenas um dos teatros estatais de Berlim. Em toda a Alemanha, há cerca de 150 teatros como esse, teatros públicos com elencos contratados. Há ainda mais de 200 teatros particulares, com seus elencos, muitos dos quais subvencionados pelo governo. Cada teatro, para fazer funcionar o sistema de repertório, conta com um grande número de profissionais, de marceneiros e costureiras a engenheiros. Além disso, constroem os cenários, imprimem programas e livros, confeccionam e lavam os figurinos.
Mercado
Há na Alemanha um grande mercado de trabalho para os atores, em todas as regiões do país. É possível ser um ator profissional, assalariado, e morar em uma pequena cidade, muitas vezes até mesmo em uma diminuta aldeia. Isso se reflete na formação dos atores. No Brasil, o padrão de interpretação é ditado pela televisão, nossa única empregadora fixa na atividade, cuja preocupação maior é de ordem financeira e não artística. À empresa televisiva importa ter retorno comercial e o sucesso ou fracasso de uma empreitada se mede pelo resultado alcançado neste parâmetro. A realização artística é secundária e pode às vezes inclusive ser concomitante ao sucesso comercial. A conseqüência disso é que a profissão de ator sofreu entre nós grave aviltamento.
Se for do interesse da indústria - e é um interesse justo do ponto de vista comercial, que tem resultados fabulosos, como sabemos - qualquer um pode ser aproveitado nesta atividade e se tornar, da noite para o dia, um ator ou uma atriz. E tornam-se realmente, no modo de perceber da maioria da população, e são socialmente reconhecidos como tal. Daí vem a percepção de que para ser ator não é necessária qualquer formação específica. Ninguém jamais poderia imaginar um pianista que não soubesse tocar piano, que não tivesse estudado e/ou praticado muito com seu instrumento. Mas para um ator brasileiro isso pode parecer normal. Para tornarmo-nos atores aqui precisamos de alguma outra coisa, que pode ser notoriedade (vinda, por exemplo, de ter sido o destaque de alguma escola de samba), ou beleza, ou o que for que os executivos da empresa televisiva achem que vá ser útil na conquista da audiência. O resultado disso é a desimportância dada ao estudo e ao trabalho diário na formação do ator.
Descrença
Ouvimos, muitas vezes, grandes atores afirmarem que não acreditam em escola para ator. Seria possível a um músico afirmar algo parecido? Neste caso, aquilo que distingüiria um ator de um não ator seria uma espécie de escolha divina. Alguns foram abençoados, merecem fama, prestígio, dinheiro. Já outros devem se resignar em não ter o que não merecem. Não foram escolhidos. E assim nos afastamos do trabalho, da persistência, da paciência necessários à formação de um artista.
A diferença entre os atores (de teatro) brasileiros e alemães é que entre nós não é raro encontrarmos alguns exercendo o ofício totalmente despreparados para a função, a despeito de serem por vezes muito famosos. Não digo que somos piores do que os alemães. Não se trata disso. Chamo a atenção para a urgência da conscientização, por parte daqueles malucos que ainda querem fazer teatro, da exigência de treinamento específico. O que ocorre, se compararmos nosso teatro com o alemão, é que a diferença está nos atores medianos, que lá possuem, no mínimo, um bom preparo básico para o exercício do ofício. Nossos grandes atores são tão bons ou melhores do que os deles, a despeito de terem tido, por vezes como única possibilidade, a prática constante como maior mestre. Ela é, de fato, nosso grande mestre, mas pode e deve ser ajudada com estudo e treinamento.
Dedicação
Em Santa Catarina, por outro lado, muitas vezes nos deparávamos com grupos de extrema dedicação ao teatro - nas horas que lhes sobravam da labuta diária pelo pão - e resultado muito insatisfatório, levando-se em conta a falta de referências práticas, trocas e intercâmbios, impossibilidade de ver coisas boas e novas, saber o que anda sendo feito pelo mundo. Isso não quer dizer que a qualidade humana é pior. Pode querer dizer, sim, que ela não teve condições de se desenvolver. No Rio, em menor escala, mas ainda assim de maneira incisiva, também padecemos disso. Uma das primeiras coisas a se fazer, quando se pretende ser ator, diretor ou qualquer coisa dentro desta atividade, é assistir a tudo o que for possível. Desarmar nossos preconceitos e ver tudo o que há para ser visto, apreender tudo que estiver a nosso alcance, entender o melhor possível onde estamos, o que fazemos e que caminho podemos pessoalmente construir. Não seguir, mas construir. E um contato com uma cultura alienígena pode ser um grande salto isso.
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Moacir Chaves é diretor teatral
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quinta-feira, 12 de março de 2009
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