Consumo, logo existo
Maria Clara Gueiros
Há muito tempo a televisão deixou de ser um simples passatempo e se converteu numa forma primordial de lazer de vários segmentos sociais, tornando-se um poderoso veículo de formação de toda sorte de modismos. As novelas, especialmente as das oito da Rede Globo, vêm se transformando numa vitrine, onde é possível ver o que se chama de "identidade nacional". As novelas vêm ensinando seu público - o que se chama de "aldeia global" - a falar, introduzindo neologismos e promovendo outras designações de personagens. O espectador consome desde peças de roupas até nomes próprios, com os quais batizam seus filhos. Um dos exemplos clássicos são as famosas meias coloridas usadas na novela Dancin' days. Até hoje é difícil saber sua marca; elas incorporaram o nome da novela. Essas meias vestiram os "pés nacionais" independente da capacidade econômica e condições climáticas.
MODISMO
A Tv é uma parte do que se chama de indústria cultural, tendo como meta a venda de produtos dos mais variados tipos. O modismo é um fenômeno eminentemente efêmero em que há um lançamento por parte das novelas de peças de roupa, objetos, cortes de cabelo, gírias ou nomes próprios. Alguns objetos já existem previamente à novela, mas somente através dela ganham popularidade e status. Não se trata de merchandising, no qual o produto possui uma marca anterior e tem um espaço vendido na novela. O objeto em questão é anônimo e no decorrer da novela se associa a um personagem. As cópias vendidas no comércio popular têm o mesmo valor simbólico daquele que se vê na tela. Isso torna o objeto acessível a todos; a posse de um objeto é suficiente para que se participe de um mundo.
Para se falar em indústria cultural, deve-se atrelá-la ao que é pregado pela sociedade de consumo, da qual ela é parte integrante. A cultura e as relações humanas são vistas como mercadorias. Com isso, os modismos são efêmeros, os objetos são descartáveis, havendo sempre uma necessidade de novos objetos de consumo a cada novela. A eficácia dos modismos se deve aos apelos que a indústria cultural faz na construção de seu campo, como por exemplo o apelo identitário, a formação de ideais e o papel das ilusões que este campo comporta. Nesse sentido, pode-se até pensar no peso que tem em termos de mercado a tão controvertida escolha de rostos bonitos para protagonizar novelas, tornando-se modelos a serem desejados, seguidos e consequentemente consumidos.
As telenovelas - em especial a das oito da Globo - fazem alusões ao cotidiano e procuram enfatizar o coloquialismo. O esforço é o de integrar as imagens no ambiente das relações íntimas e pessoais do espectador. O rosto televisionado não deve exibir qualidades de excessivo mistério ou charme; deve buscar o efeito televisivo, que é o estabelecimento de relações afetivas com o telespectador.
SEDUÇÃO
Uma questão importante nesse assunto é o discurso baseado na sedução e não na imposição, ou seja, a venda de imagens em última instância é disfarçada. Diferentemente das propagandas de TV, onde o produto é mostrado claramente em sua embalagem e preço, o objeto da novela é integrado a um contexto e glamourizado, passando a fazer parte de uma história acompanhada de emoção. A novela não impõe o produto, ela o oferece por sugestão e fascinação. Ela humaniza o produto, inserindo-o numa rede de relações humanas. É possível encararmos o sistema de consumo e da moda em que a novela se encaixa como uma espécie de linguagem que circula e de certa forma guia os indivíduos; a comunicação se daria através da posse dos objetos.
A partir dessas idéias, podemos pensar a questão da manipulação simbólica de valores que está em jogo neste veículo que é a TV. O que se encontra de um lado é uma sociedade de consumo - ilustrada pela novela - produtora de símbolos e valores e geradora de necessidades. Do outro lado encontramos uma massa de consumidores desses símbolos, ávidos por se intregar e se reconhecer como pertencentes a um grupo social. É como se a posse de um objeto representasse o reconhecimento de si mesmo como parte de um todo. Entra-se em comunhão com a efervescência geral, via Embratel.
SÍMBOLOS
Esse sistema de consumo em que os indivíduos se reconhecem como participantes é regido por uma total mobilidade de valores, ou seja, o que é moda hoje certamente não será daqui a oito meses, quando a novela terminar. Pode-se ver de forma nítida como se lida com esses símbolos televisivos, como se consome esses símbolos. Seu tempo de vida é absolutamente contado. A mobilidade dos valores e sua descartabilidade são o modo pelo qual se dá a relação com a imagem televisiva. Isso vale tanto para os objetos, quanto para os atores que vivem esses personagens e que magnetizam o espectador, fazendo-o consumir revistas em busca de conhecer suas vidas, seus hábitos etc.
Essa forma descartável de se relacionar com as imagens, que o mercado de consumo impõe, faz com que seja sempre necessário haver coisas novas a serem consumidas, para que o mercado esteja sempre vendendo. Dentro desses objetos estão incluídos os atores e atrizes novatos que são jogados no mercado a cada novela e que parecem - com exceções - serem substituídos por outros nas novelas seguintes, de modo que o sistema continue em atividade, tendo sempre um novo produto no ar. Artur da Távola já havia dito que as telenovelas vivem uma fase extremamente mercadológica. O autor de novelas passa a ser responsável por um produto industrial. E o público parece só ter emoções à medida que as consome.
IMAGEM
A questão da relação do homem contemporâneo com a imagem televisiva torna-se cada vez mais um tema a ser pensado. É como se o telespectador procurasse uma imagem de si mesmo pela tela. Introduziu-se na casa um novo espelho - o da TV. A imagem, na era da televisão, se reinstala em carne e osso no pensamento atual. O ícone plasma da vida psíquica e social dos cidadãos. Nessa era, dá-se a vitória do audiovisual sobre o pensamento, do presente sobre a história, e do consumidor sobre o cidadão.
A busca por modelos a serem seguidos, por uma iamgem que esteja em consonância com um grupo, qualquer que seja ele, é própria do ser humano e torna-se uma forma de - em última instância - existir socialmente. Essa peculiaridade humana vem se ajustar perfeitamente à era que vivemos atualmente: a do audiovisual. A eleição por parte da novela de uma imagem a ser vendida traz a possibilidade do espectador, à medida que a consome, sentir-se em harmonia com seu grupo. A imagem que o telespectador que consumir/incorporar aparece como um ideal a ser perseguido, pela via do consumo.
Necessitamos, como duiz Freud, do suporte de uma imagem corporal para existirmos. Daí o encantamento de Narciso ao se ver refletido nas águas de um lago. A "existência" através do consumo é uma forma de nos sustentarmos numa imagem refletida num espelho: o da aldeia global. O fato de toda imagem ser temporária e fugaz, faz com que o ego - sede de nossa imagem e de nossa fantasia - tenha esse mesmo destino. Ao final de cada novela, no qual os modismos se desvanecem juntamente com a imagem a eles associada, é como se o ego, ao partir para mais uma busca de imagem, dissesse: "Esta é mais uma obra de ficção. Qualquer semelhança com fatos, pessoas ou acontecimentos reais terá sido mera coincidência".
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Artigo extraído do jornal "Boca de Cena" nº 10. Maria Clara Gueiros é atriz e Mestre em Psicologia Clínica pela PUC-Rio
quarta-feira, 23 de dezembro de 2009
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