terça-feira, 22 de dezembro de 2009

Reflexões
sobre a música e o teatro

Caique Botkay


A partir do momento em que fui convidado para escrever o que me conviesse sobre Teatro, o natural é que eu pensasse imediatamente na música. Afinal, são mais de 20 anos compondo. Como eu não me considero um músico que faz teatro, mas sim um homem de teatro que faz música, neste momento me seria mais interessante falar sobre outros aspectos que me atraem, como a direção, a dramaturgia, os grupos. Mas, afinal, todas essas vertentes se encontram em seu lugar comum: o palco.

Um dos aspectos que sempre me interessou é a capacidade de harmonização entre as mais diversas linguagens artísticas em um mesmo espetáculo. E somente as artes cênicas - teatro, ópera, balé - possibilitam essa convergência em uma mesma direção: o espetáculo vivo. Único, indivisível.

Autores, diretores, atrizes e atores, coreógrafos, cenógrafos, figurinistas, contra-regras, bonequeiros, músicos, iluminadores etc. É uma gama imensa de fatores que une um determinado grupo de pessoas, profissionais ou não, em determinado tempo e lugar. Pode-se dizer que esses artistas se reúnem por algum motivo, dependendo das circunstâncias: disponibilidade, mercado, ideologia, afinidades, narcisismo, afeto...enfim, o espetáculo que resulta de tal encontro toma a dimensão de um grande "acaso", conseqüência lógica das características de cada uma das personalidades envolvidas no projeto, em determinado momento de suas vidas.

Somo a essas características do teatro uma outra consideração que nada tem de original: a comparação com o nosso apaixonante futebol. Mas no caso, desejo ressaltar não os grandes astros, mas os obscuros jogadores que contribuíram decisivamente para, mais do que a conquista de títulos (prêmios), formar equipes que jogavam na mais absoluta harmonia.

Cito exemplos: a linha do Santos bi-campeã mundial tinha dois artistas indispensáveis para que aquele time jogasse tanto, que eram Coutinho e Pepe. O Fluminense de 64 contava com um meio de campo formado por Oldair e Joaquinzinho, que armaram uma autêntica linha de passe contra o Bangu na final. Resultado: 3 x 1 em um jogo inesquecível. Ou, mais recentemente, a eletrizante final de 95, contra o Flamengo, em que Djair, Aylton e Marcio Costa foram os maestros do jogo.

Evidentemente não pretendo aqui desmerecer um Pelé ou um Renato Gaúcho. Mas a minha opinião pessoal é que um grande time, em um jogo emocionante, é aquele em que ninguém é menos importante, cria-se um casamento plural e divino entre todos os integrantes. Nelson Rodrigues dizia, nessas ocasiões, que estava escrito há cinco mil anos que aquilo ia acontecer. Porque tais conjugações harmônicas superam nossa expectativa formal e nos transportam para a emoção do inusitado. Está além do fato humano já conhecido. A criação se renova através desse encontro (ocasional?) de pessoas que transcendem a história.

E tudo isso é para me remeter novamente ao teatro. Os espetáculos que mais me marcaram certamente não foram aqueles em que determinado ator ou efeito de luz, cenográfico ou musical determinaram sua qualidade. Não me atrai tanto o espanto de um efeito genial quanto uma emoção que permeia toda uma peça coesa e íntegra, onde a generosidade da criação e da doação são infinitamente superiores às questões dos aplausos, dos truques e dos egos. Será que todos lembram mesmo o nome do diretor, do fotógrafo, da atriz e do compositor do filme O carteiro e o poeta?

Voltando mais uma vez ao futebol, bom juiz não é o que "aparece", mas o que permite que o jogo flua bem. Afinal, vamos à música. A partir dos pressupostos acima mencionados, penso na integração do universo sonoro criado por Tato Taborda, na montagem de Aderbal Freire-Filho de Senhora dos afogados. Na música de Pianíssimo, de Tim Rescala, que não foi tão comentada como deveria. As canções de Cecília Conde em Hoje é dia de rock, no Teatro Ipanema. Ainda a lembrança de felizes composições de Mauro Perelman para A terra dos meninos pelados. E minha própria música em espetáculos de Ilo Krugli e o Vento Forte, Lucia Coelho e o Navegando, Buza Ferraz e o Pessoal do Cabaré, Bia Lessa e antigo grupo, minha parceria com José Wilker em vários espetáculos, vídeo e TV, e, mais recentemente, o trabalho com André Monteiro, que rendeu espetáculos como A 5ª estação e O conquistador, sendo esta uma peça cujas análises nunca chegaram nem perto do resultado alcançado em cena. São exemplos notáveis de processos resultantes da intensa troca desenvolvida entre os integrantes de um mesmo grupo.

Constato, mais uma vez, que na maioria absoluta dos casos, o aprofundamento de algumas pessoas (grupos) com o imaginário umas das outras, vai depurando forma, estilo, dramaturgia. Enfim, a harmonia, essa palavra tão em falta nas relações humanas e tão fundamental nos desfiles de carnaval, no futebol, na música e no teatro. Uma questão que eu me colocava na grande maioria dos espetáculos que assisti como jurado do Prêmio Shell de Teatro era por que aquelas pessoas estavam montando tais peças. Mesmo que aparentemente "brilhantes". É realmente rara a empatia que vem dos palcos, aquela que nos toca e transforma definitivamente.

A música é apenas uma das peças integrantes de um espetáculo e nem precisa necessariamente aparecer muito. Basta ser coerente, o que já é o bastante. Mas sempre inesperada. Creio ser fundamental que as intervenções sonoras "pensem" o espetáculo, forneçam dados paralelos de interpretação e compreensão - emocionais e intelectuais. Assim como a fala (texto), a música habita o estranho espaço do invisível, do contato pelo ar. E como tal deve ser tratada.

Claro, há os musicais, mas não é deles que estou tratando. Aliás, usa-se o termo "musical" a torto e a direito, e poucos o são. Em um musical, a narração e o desenvolvimento vêm preponderantemente pelas canções. Mas de resto, todas as formas são possíveis, não há fórmulas definitivas na arte: música ao vivo, trilhas gravadas, músicas originais ou não, vozes, parafernálias, silêncios. O que for absolutamente necessário é o que importa. Não há manuais. Aceitam-se trocas.
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Artigo (1966) extraído do jornal Boca de Cena nº 9

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