O milagre do 'jeitinho'
Bernardo Jablonski
Completo este mês 22 anos como professor de improvisação/interpretação no Curso Livre de Formação de Atores do Tablado, sob a direção de Maria Clara Machado. A data em si não completa nenhum núnero redondo e nem vai haver nenhuma festa comemorativa a respeito. Mas como o "Boca de Cena" me pediu uma avaliação acerca do ensino de teatro entre nós, decidi começar me posicionando em números.
E o que mudou nestes vinte e poucos anos?
Bem, vamos começar pelo que não mudou. Continua difícil o apendizado do ofício, uma vez que nossos candidatos às artes cênicas não dispõem do tempo necessário (ou da verba necessária) para o treinamento intensivo básico: voz (dicção e canto) e corpo (dança e expressão corporal). Neste ponto as meninas se saem melhor que os meninos, uma vez que nossa sociedade permite (ou incentiva) que meninas se aprimorem nas academias de jazz ou de ballet clássico. Homens saem em desvantagem. Mesmo que o nosso teatro não seja a Meca do Teatro Musical, e que o Teatro de Revista tenha desaparecido (apesar de eventuais e malogradas tentativas de ressuscitamento forçado), os fundamentos da dança servem para o adestramento, o controle corporal, noções de ritmo etc.
Muitos de nossos diretores, quando montam musicais, ao disporem de mais tempo para ensaios contratam, otimista e esperançosamente, profissionais de dança para colocarem seus atores em plena forma. Mas sem o devido embasamento, acaba acontecendo o de sempre: dois ou três que dançam "ficam na frente e no meio". O resto engana mesmo, cabendo a nossos engenhosos coreógrafos procederem ao milagre do "jeitinho". Neste sentido, como dissemos, o panorama não mudou. Falta de tempo, de coragem ou de disponibilidade continuam limitando a formação de nossos atores.
BOLINHAS X LULUZINHAS
Dentre o que mudou, podemos começar citando outra diferença de gênero. Ao contrário dos anos (muitos) anteriores, um maior contingente de rapazes vem procurando o teatro. As aulas vem deixando de ser um reino de Luluzinhas, com os Bolinhas disputando as vagas em número crescente, pelo menos na faixa etária entre os 15 e 30 anos. Na faixa infantil e na terceira idade, o problema aparentemente permanece.
Essa igualdade se dá, acredito, em função da maior aceitação da sociedade. Quando comecei a dar aulas, muita gente vinha esondida de pai e mãe, dado o preconceito do mundo "civil" com relação ao teatro. Isto, pelo menos, diminuiu bastante e sem dúvida nenhuma graças à televisão.
Se por um lado a Tv criou uma fábrica de ilusões, levando jovens e adolescentes à infundada crença de que seria preciso muito pouco ou quase nada para virar estrela, por outro, ajudou a liberalizar os costumes entre nós, enfraquecendo as atitudes francamente contrárias ao teatro e a tudo que estaria a ele associado. É claro que a própria crise sócio-econômica contribuiu bastante. De repente muitos pais e mães urbanos descobriram que o sonhado diploma de médico, advogado ou engenheiro, não serviria para muita coisa, principalmente se comparados à aparente facilidade em fazer dinheiro que o mundo da TV (novelas e comerciais, artistas e modelos) parecia ajudar a fazer.
"Paquitas", jovens galãs de TV, modelos e manequins famosas (os) abriram os olhos da sociedade e emprestaram credibilidade e dignidade - por incrível que pareça - à nossa profissão. Pode-se questionar se um senso de dignidade que vem pelos bolsos merece este nome, mas a Moral costuma trilhar caminhos muito curiosos...
DEMOCRATIZAÇÃO
Outra mudança diz respeito à democratização do acesso ao teatro. Ao contrário de alguns anos atrás, quando só a classe média da Zona Sul procurava os cursos de teatro, o que se observa é que os alunos agora vêm também da Zona Norte e do subúrbio. O sonho de ser artista expandiu-se, ao menos, geograficamente.
O panorama não se alterou no que diz respeito às leituras e ao aprendizado teórico. Poucos se mostram motivados a encarar os textos necessários e a estudar teatro. Neste ponto, confesso que não percebi progressos significativos.
Quanto à ida ao teatro, nossos alunos não parecem muito inclinados a assistir os espetáculos em cartaz. Embora todos queiram ser vistos (e aplaudidos) em suas práticas de montagem, nos espetáculos infantis - ou alternativos/ adultos - em que estejam atuando, na hora de ver os outros a coisa muda de figura. O que, convenhamos, é um comportamento nada meritório. Muito narcisismo para pouca consciência da profissão escolhida.
Igualmente pouco recomendável é a ânsia de conseguir espaço na "telinha". Embora não sejamos ingênuos a ponto de negar a importância - quase vital, hoje em dia - de se conseguir um lugar ao sol na TV, lamentamos que as energias estejam pouco voltadas para o esenvolvimento gradual, suado e meticuloso, acompanhado de muita poeira de palco.
O brilho da TV ofusca nossos jovens atores e rouba a motivação para o necessário trabalho de aprimoramento, que só a prática teatral regular (e cansativa e difícil) poderia trazer. Sem querer cair na esparrela de uma análise apressada, talvez esteja aí a principal causa da vitalidade teatral são-paulina: lá não há uma TV Globo seduzindo e sugando os principais talentos em atividade.
Enfim, foram estas as principais mudanças que pude perceber ao longo destas últimas duas décadas. Umas para melhor, outras nem tanto. Estas considerações foram feitas a partir de minhas observações em Cursos Livres, mas creio que elas também se apliquem - em menor ou maior grau - aos estudantes de escolas regulares.
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Artigo extraído do jornal "Boca de Cena" nº 3
segunda-feira, 28 de dezembro de 2009
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