sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

E por falar em sonhos...

Lionel Fischer


Antes de mais nada, faço questão de esclarecer que o que se segue nada tem a ver com teatro. Trata-se apenas da materializão de um desejo que tive de partilhar com vocês, queridos seguidores deste blog, uma curiosa experiência que vivi esta manhã. Prometo ser breve, mesmo sabendo que dificilmente consigo cumprir o que prometo...ao menos em determinadas áreas.

Esta noite tive um sonho que me fez acordar bastante inquieto. O sonho, em si, nada tinha de inquietante - eu apenas "via", por um breve momento, um homem de idade indefinida caminhar por um inóspito deserto, sem pressa e sem destino, a expressão ao mesmo tempo serena e concentrada, sugerindo estar imerso em profundas meditações, às quais, lamentavelmente, não tive acesso.

No entanto, como já disse, ao libertar-me dos braços de Morfeu a inquietude se fez presente e teve a gentileza de ir progressivamente aumentando sua indesejada intimidade comigo. Mas resolvi ignorá-la e fiz o que faço, todos os dias, desde tempos imemoriais: peguei minha bicicleta e fui pedalar os 40 kms habituais, que consomem cerca de duas horas de meu precioso e sempre mal administrado tempo.

Mas a dita criatura - a inquietude - sugeria estar comodamente instalada em minha garupa e firmemente empenhada em minimizar o enorme prazer que sinto ao flutuar pelas ruas assim que o sol triunfa sobre as estrelas. Então, ao chegar à bucólica Urca, encostei a bicicleta numa mureta e decidi travar um firme embate com essa abstração que, naquela altura, já estava quase se convertendo em angústia.

E logo, para minha total surpresa, me veio a resposta: havia tido o mesmo sonho que tivera, aos 12 anos, após ler "O profeta", de Khalil Gibran Khalil, durante significativa parte de uma madrugada, despezando por completo uma prova que teria no dia seguinte, não me lembro a matéria, mas sem dúvida muito menos interessante do que o livro. Este o peguei ao acaso, na enorme biblioteca de meus pais, e nunca mais o reli. Mas levei-o comigo ao longo da vida.

Ao constatar, portanto, a curiosa coincidência, logo a inquietude se foi. E, ao mesmo tempo, me deu uma vontade imensa de reler o livro. Mas como encontrá-lo, já que minha portentosa mansão de dois quartos posssui tantos volumes e os mesmos se encontram "organizados" de tal forma que às vezes levo dias para achar o que desejo?

Tendo uma natureza obsessiva, só costumo desistir de algo quando realmente já esgotei todos os recursos disponíveis. Mas, desta vez, tomei uma decisão prosaica: ou o livro estaria soterrado debaixo de uma determinada pilha ou não o procuraria - ao menos hoje. Então, levado pelo acaso, fixei meu olhar sobre um amontoado de volumes de pequena dimensão e comecei a escavar, com esperança em tudo semelhante à de um arqueólogo que imagina estar prestes a encontrar um precioso tesouro.

E não é que "O profeta" estava ali? Meio esmigalhado, coitado, as páginas amareladas pelo tempo - será que, a exemplo das páginas dos livros, nós também amarelamos ao longo da vida? Enfim, seja como for, havia encontrado o que buscava. E após dar uma rápida folheada em algo que me fizera tão bem há exatos 48 anos, resolvi partilhar com vocês um pequeno trecho desta obra que marcou tanto minha pré-adolescência - quanto ao fato de o sonho ter se repetido igualzinho, deixarei a tarefa de interpretar tal coincidência para minha namorada, Eliana Helsinger, psicanalista brilhante e que me conhece pelo avesso.

Vago e nebuloso é o princípio de todas as coisas, mas não o seu fim. E gostaria que lembrásseis de mim como um começo. A vida, e tudo que vive, é concebida na bruma, e não no cristal. E quem sabe um cristal é apenas uma bruma em decadência? O que parece mais frágil e confuso em vós é o mais forte e o mais determinado. Não foi o vosso respirar que erigiu e fortaleceu a estrutura dos vossos ossos? E não foi o sonho, que nenhum de vós lembra ter sonhado, que construiu vossa cidade e criou tudo o que há nela? Se pudésseis ver apenas as marés daquele respirar, cessaríeis de ver todo o resto. E se pudésseis ouvir o murmúrio dos vossos sonhos, não ouviríeis nenhum outro som. Mas vós não veis, nem escutais. No entanto, um dia o véu que encobre vossos olhos será levantado pelas mesmas mãos que o teceram. E a argila que obstrói vossos ouvidos será removida pelos dedos que a moldaram. E então vereis. E então ouvireis. E não lamentareis ter conhecido a cegueira ou a surdez, pois neste dia conhecereis os propósitos ocultos em todas as coisas. E abençoareis as trevas, como hoje abençoais a luz.

Um comentário:

  1. Oi Lionel!
    Nossa, ainda tenho q sentar pra responder o seu e-mail! Tenho tantas coisas pra te contar! Poxa, obrigada pela luz! E lendo esse seu post agora, quem ficou com vontade de ler "O profeta" fui eu. Só a primeira frase já mexeu comigo "Vago e nebuloso é o princípio de todas as coisas, mas não o seu fim."
    Bjs!
    Marcela Cabelo

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