segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

Escola sucateada,
teatro decadente

José Renato


Proponho alguns exercícios de raciocínio. Finalidade: lubrificar o cérebro! Estará a arte teatral em decadência ou as costumeiras queixas serão mais uma crise cíclica, como tantas que o teatro já atravessou? Estará a escola, base educacional do país, sendo sucateada, ou é apenas puro catastrofismo? E existirá alguma coincidência (ou maledicência) entre os dois fatos?

Pra começo de conversa: o que é o teatro?

Antes de mais nada, é o prazer! Prazer de estar junto, de rir junto, de sentir e de pensar junto. Sabemos que cada uma dessas sensações é pessoal, isolada, solitária; mas sabemos, também, que pode ser melhor vivida quando compartilhada! Torna-se uma sensação mais forte, dispõe de mais energia vital. Lembrando o que sabemos da origem do teatro, na Grécia antiga, em cada cerimônia onde as peças de Sófocles, Ésquilo e Eurípedes eram apresentadas, a confraternização de sentimentos motivou a reação da população que identificava sua vida e seus problemas nos temas propostos. E a cultura originária desses eventos alimentou a imaginação dos estudiosos de todos os tempos. E Aristóteles ainda deixou para a posteridade a análise do fazer teatral, cujos comentários filosóficos não se cansam de espantar os interessados em teatro e os amantes da cultura em geral.


TEMPLOS

Com o decorrer dos séculos, o "aprimoramento" do homem criou grandes templos para o exercício dessas cerimônias. Daí, no romantismo, os teatros monumentais da ópera , e mais recentemente, os equipadíssimos teatros para grandes espetáculos musicais, ou modernos estádios cheios de parafernália técnica para apresentações musicais barulhentas etc. Mas o espírito do teatro sempre foi o mesmo: prazer de sentir junto.

Ouvi contar uma história dos Beatles: numa entrevista do grupo, alguém lembrou que, no começo, a técnica de som não devia permitir que fossem ouvidas todas as letras das músicas, e perguntou: "O que toda aquela gente ia fazer lá?". John Lennon respondeu: "Estar junto da gente!". Estar junto! Como esse prazer foi importante para o progresso do homem e seu verdadeiro aprimoramento!


IDÉIA

E para continuar o raciocínio, vamos tirar Sófocles de campo e colocar Sócrates em seu lugar, o professor-precursor. Na reunião de pessoas que Sócrates promovia é que se desenvolveu a idéia inicial de Escola. Como no teatro antigo, os professores desempenham, na sala de aula, uma função tão vital quanto a dos atores no palco. Alimentando a mística do "prazer das reuniões", essas duas instituições, Escola e Teatro buscam - e sempre buscaram desenvolver:

O crescimento da personalidade
O amadurecimento do raciocínio
O conhecimento da língua básica
A capacidade de distinguir valores reais de falsos valores
A experiência vital da descoberta de si mesmo


Pois é, acredito que essas são as características que aproximam, irmanam, o Teatro e a verdadeira Escola. E o que sentimos hoje? Que nenhuma dessas instituições pode ser deixada de lado, nenhum governo pode, impunemente, abrir mão do embasamento e da presença vitalizadora de nenhuma das duas, sob pena de destruir o próprio Estado pelo qual é responsável. Permitir, sob os mais variados pretextos, que a Escola, assim como o Teatro, sejam desvirtuados, e pela inércia de sua atitude, sejam contaminados pela inoperância e pela decadência, devia ser um crime inafiançável para os dirigentes políticos.

Já imaginaram o que significa para um país perceber que suas escolas estão em franca decadência? Quanto tempo mais de sobrevida restará a este país? Seus arquivos de memória serão em curto espaço de tempo nada mais que ruínas irrecuperáveis. E o irremediável é que, junto com a decadência das escolas, vem, inevitavelmente, a decadência das Artes, e portanto, do Teatro.


DIFICULDADES

Estamos lendo nos jornais dos últimos tempos (assim como sentindo na convivência com nossos filhos) que a Escola atravessa um período de enormes dificuldades. Professoras mal pagas, ensino mal administrado, alunos insatisfeitos. Assim como no Teatro: corajosos exemplos de vitalidade, mas pouquíssimo público. Será que a raiz dos problemas dessas duas sacrossantas instituições não será a mesma? O fato delas não fornecerem, a curtíssimo prazo, uma exposição de resultados que valorizariam os seus mentores? Porque resultados brilhantes, a curto prazo, são a meta essencial dos nossos salientes dirigentes.

Quem, nestas linhas, procura desenvolver esses pensamentos, é alguém que convive com o teatro há mais de 50 anos. Já vi vários estilos de governo se sucederem, várias promessas deixarem de ser cumpridas, muitas exaustivas reuniões acontecerem, muitos planos irem por água abaixo. E vi, ao mesmo tempo, a escola do meu tempo se deteriorar e empobrecer. Tive quatro irmãs e um irmão, todos professores, com muito orgulho - naquele tempo. Relembro com prazer, muitas aulas que recebi, ministradas por professoras primárias brilhantes e generosas, tal como fascinantes atrizes de passado não tão remoto. A mesma generosidade das professoras está presente num espetáculo teatral executado com amor e competência.


PARTICIPAÇÃO

Dizem que, hoje em dia, o mercado, a competição, a luta pela vida, exigem um dinamismo a que, talvez, nem o Teatro, nem a Escola se submetam. Será verdade? Por exemplo: desde quando o Teatro necessitava incluir em seus orçamentos uma importância para a publicidade maior do que a necessária para a montagem de todo o espetáculo? Mas a presença da técnica moderna, dos recursos da tecnologia, estão vivos na maioria dos espetáculos em exibição no país. E as Escolas substituem a presença de professores dedicados por vídeos educativos!? Mas na verdade, o que marca a palpitante vida de uma atividade é a participação efetiva dos seres humanos presentes. E pensantes, como os professores e os atores.

Evidentemente, os hábitos evoluem, se transformam; mas os conceitos básicos de formação da cidadania permanecem os mesmos da Grécia antiga. Hoje, porém, os meios de indução então muito mais agressivos; a população pode ser induzida a escolher caminhos que nem sempre são os melhores. Notem bem: quando digo induzida, não pretendo defender nenhuma política autoritária que obrigue as Escolas a só ensinar a versão oficial de determinados assuntos, ou aos Teatros somente encenar determinados espetáculos de autores da moda. O conceito de liberdade na escolha dos caminhos, fundamental na orientação educacional, não passa, absolutamente, pelos escritórios de uma empresa de comunicação, assim como também não está presente em alguns desorientados espetáculos teatrais.


INVASÃO

Até que ponto, portanto, as transformações da vida moderna teriam afetado esse sadio hábito de aprender em conjunto, como se fazia na escola, para aprender, escondido, egoisticamente, na sua salinha de visitas, diante dessa máquina invasora, verdadeiro tanque de guerra que se instalou dentro da casa de cada um, e que dita o comportamento e determina o uso da marca de sabonete, da cueca e da calcinha e, o que é mais triste, do voto que devemos emitir nas próximas eleições? Ninguém leu George Orwell e suas professias? Ninguém percebe que estamos sendo transformados em robôs úteis e, daqui a algum tempo, inúteis?

O cinema, quando a tecnologia invadiu o planeta, também sofreu a mesma investida. Mas os tremendos recursos econômicos americanos criaram atrações que respondiam com as mesmas armas com que estavam sendo atacados; e surgiu o cinema catástrofe. Alguns grandes (e poucos) diretores europeus conseguiram transpor igualmente os obstáculos, graças ao ambiente cultural que os envolvia. E aqui, no Terceiro Mundo? Quem vai poder resistir ao desmonte da nossa soberania cultural, que começa exatamente assim: na telinha, alguém diz, com voz envolvente: "Não saia de casa, não se levante da sua poltrona! É muito perigoso! Não se mexa, porque você pode ser alvo de uma violência inominável! Não se preocupe. Não precisa ler nada. Tudo o que você precisa saber, nós mostraremos para você. Estaremos sempre aqui".


INSEGURANÇA

A quem interessa esse quadro? Quem tem a lucrar com o solapamento de instituições tão importantes para a formação da cidadania e da consciência cultural de um povo? Até quando teremos governantes que só se interessam em ver aumentar os índices da economia globalizada e não no aumento dos índices de desenvolvimento social e cultural? Sabemos que a insegurança existe e deve ser combatida. Mas o combate passa pela vontade política adequada e pela atuação decidida de quem é responsável por ela. A cultura da inteligência e do conhecimento não pode ser substituída pela cultura do medo. A Educação é o caminho fundamental. Ela está presente na verdadeira Escola e no verdadeiro Teatro, instituições que tentam recuperar o prazer de estar juntos, de pensar juntos, de rir e de aprender juntos.
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O presente artigo consta da revista Cadernos de Teatro nº 166/2001. José Renato é diretor teatral e foi um dos fundadores do Teatro Arena.

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