quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

Quero ver o bicho vivo

Eduardo Wotzik


Difícil escrever sobre o teatro em linhas gerais. Mais difícil ainda é escrever sobre o teatro que se faz. Pensar, então...Começo inclusive a ficar desconfiado quando se começa a pensar demais sobre o teatro. Mas sinal. Sinal de que estamos perdendo espaço de fazer. Mais ainda, a teoria começa a dominar a expressão artística e, não tomemos cuidado, ela nos devora.

Tenho dado um bocado de entrevistas sobre o meu trabalho e acabo ficando absolutamente confuso, procurando uma justificativa, e me perco da sensibilidade do todo e tenho que tomar um cuidado redobrado para não poluir o processo de criação com conceitos que nada mais fazem que aprisionar a vida e transformar a cena em um espaço morto. Arte é ser espontâneo. Quando abrir a cortina quero ver o bicho vivo.

Hoje eu acordei esquisito, com vontade de defender um teatro sem firulas, com menos rodeios, que não se desvie das questões essenciais. Um teatro sem subterfúgios, sem representações, que não fuja da essência através da aparência.


SEM MENTIRAS

Estou meio cheio de criatividade, de invenções, de gracinha. De atores infantilizados, de direções infantilizadas, de conteúdos infantilizados, de cenas infantis. O teatro tem de se tornar adulto. Um instante de refleão, de emoção e transformação.

Eu não estou escrevendo isso para agredir quem quer que seja, mesmo porque tudo que digo, digo antes a mim mesmo. Todo dia. Mas sinto que o teatro tem de se reencontrar com sua cidadania. Sua função neste mundo. Através dele podemos elevar o espírito de um povo. Sob pena de, se não o fizermos, padecermos do pior dos males, a miséria. Que os outros meios não o façam, mas no teatro, onde ainda é possível que um homem fale ao seu semelhante, ao vivo, não pode haver mentiras, não pode.

Uma sociedade doente. Um teatro sadio. O teatro a meu ver não deve retratar a realidade e sim recriá-la. Procuro um teatro que seja. Vivo. Onde o homem encontre o homem. De frente. Onde o espectador encontre o olho do ator. Onde o ator se apresente inteiro. Intérprete da criação. Sendo.


ESTRANHA EQUAÇÃO

O teatro vive hoje, salvo exceções, uma estranha equação. O ator finge que faz, o espectador finge que assiste. O espectador finge que gostou, o ator finge que agradece e vão todos embora pra casa felizes e contentes com a certeza do dever cumprido. O teatro há de ser honesto. Há de ser um espaço de recuperação e reavaliação de valores essenciais. De revelar as faltas, de ressentir nossa medida. Um lugar onde o que somos, o que pretendemos ser e o que jamais seremos, possam se encontrar em toda a sua grandeza.

Eu não pretendo defender este ou aquele gênero de teatro. Para mim o que existe é o Teatro. Ou ele acontece ou não. Seja de que gênero for. E, curioso, quando ele acontece todo mundo sabe, todo mundo pecebe, do ator ao guardador de carro. Fora disso temos as intenções, que resultam em experimentações ou pesquisas parciais, que são aqueles espetáculos que apontam um caminho, mas que ainda não se encontram totalmente amadurecidos. Então percebe-se nele um caminho, mas ainda certa inabilidade na realização de suas descobertas.

Levando em conta que vivemos em 1995, final do século, acredito que o teatro tem de acompanhar o desenvolvimento tecnológico por que passa a sensibilidade (os sentidos) de nossos contemporâneos. Assim, busco uma cena que transpareça essa era tecnológica. Uma cena que contenha clareza, síntese, contraste, limpeza, brilho, nitidez, alta definição. Para tanto seus instrumentos (atores, cenografia e tudo que entrar na caixinha mágica) devem procurar se apresentar com esses predicados. Sem ruídos.

Por que estou dizendo tudo isso? Não sei.
Para que estou dizendo tudo isso? Não sei.
Para quem estou dizendo tudo isso? Menos ainda.


SONADO

Acordei sonado. Tive um pesadelo onde fechavam todos os teatros e ninguém sentia falta. Aliás, um ou dois, mas que logo depois...Acordei. Será? Mesmo assim continuo a me fazer perguntas. E feita a pergunta, pronto. Me disseram certa vez que ela só aparece quando já existe a resposta. Então, lá vou eu...

Acho que o teatro está meio fora da tomada. Meio sem jeito, meio pedindo licença. Esse fim de século promete. O mundo não gira mais, o mundo clicka. Então, como alcançar a síntese, como recriar o que acabou de ser e já não é? É. Não é. É. É. Não. Já foi.

Essa resenha não contém a menor coerência, como a vida. Lógica, só a ficcional, a cênica. A realidade...Aí sim, me lembrei do Bergman: "Dirijo teatro porque não consigo dirigir a vida". Eu, para não ver o Jornal Nacional. Há quantos anos digo isso, há quantos anos tem Jornal Nacional. A Renata Sorrah me disse que não. Ela tem tesão. É isso que falta. É incrível como o tesão do Zé Celso não se acaba. E o do Antunes. E o do Domingos. E a minha turma tá numa moleza que só vendo. Cheia de querer, mas com poquíssima necessidade.

Ah, a TV, como deve ser bão! Agora eu vou para a praia, correr, andar de bicicleta, patins, nadar, me perder na multidão, ser em natureza, tirar o mofo. Que gente de teatro se mofa. E se não tem cuidados...
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Artigo extraído do jornal "Boca de Cena" nº 4/1995. Eduardo Wotzik é encenador.

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