quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

O ator no Group Theatre

Stella Adler


Na fase inicial do Group Theatre, seus atores diferiam quanto à origem social, ao nível de sua arte, talento e objetivos pessoais. Alguns eram idealistas, enquanto outros eram sonhadores ou carreiristas; havia, ainda, aqueles que conseguiam, com absoluta sinceridade, ser uma combinação de todos os três. Isso era comum em um bom ator.

Seria difícil encontrar um grupo de pessoas menos homogêneo; transformá-lo num todo integrado exigiria percepção, coragem e uma fantástica força de vontade. Tendo essa vontade, logo se descobriria que eles tinham várias coisas em comum desde o começo. Tinham uma necessidade intensa de continuidade de trabalho e de ganhar a vida. No nível artístico, tinham uma vontade e uma necessidade profundas de se desenvolverem como atores.

Nos primeiros estágios da formação do Group, alguns desses atores ficaram fascinados com as palestras inflamadas e entusiásticas sobre o teatro. O teatro era analisado, dissecado e reformulado, e o lugar dos atores neste teatro que estava sendo fundado prendeu a sua atenção desde o começo. Eles ouviam e tentavam entender. Disto emergiram duas idéias que os desafiaram e atraíram. Idéias imbuídas pelo que, mais tarde, tornou-se a marca registrado do Group Theatre. Os atores que se dispuseram a ouvir resolveram seguir essas idéias, e somente então aderiram incondicionalmente a esse teatro.

A primeira idéia pedia ao ator que se tornasse consciente de si mesmo. Ele tinha algum problema? Ele entendia esses problemas em relação à sua vida? À sociedade? Ele tinha algum ponto de vista em relação a essas questões? Era necessário ter um ponto de vista. O ator deveria começar a questionar e apreender a compreender várias coisas. O resultado inevitável seria uma melhor compreensão de si mesmo. Seria de grande utilidade artística para os atores ter um ponto de vista comum que pudessem compartilhar com os colegas. Dizíamos ao ator que era necessário e importante transmitir este ponto de vista através das peças para o público; que era preciso encontrar meios e métodos teatrais para alcançar este objetivo de modo artístico e verdadeiro.

A segunda idéia dizia respeito ao ator em relação à sua arte. Ele deveria se desenvolver como ator através de sua arte. Era necessário que todos os atores usassem a mesma técnica básica. Só assim poderiam se transformar verdadeiramenteem num todo, alcançando uma interpretação criativa de uma peça.

Quando essas duas idéias se mesclaram, os atores perceberam que este teatro exigia uma compreensão básica de um complexo princípio artístico; que todas as pessoas ligadas a esse teatro - o ator, o cenógrafo, o autor, o diretor etc. - precisariam chegar a um único ponto de vista, também expressado pelo tema da peça. E que cada um dos artistas expressaria melhor este ponto de vista através de sua arte individual. Essa idéia era reiterada de mil maneiras; nunca mudava em sua filosofia básica.

Cada ator deveria entender essa idéia, embora houvesse graus diferentes de compreensão. Contudo, era difícil perceber quando essa compreensão se tornava orgânica em cada um. Parecia interessante para a maioria dos atores que prestavam atenção, mas a forma como a idéia era útil para cada um, enquanto ator, variava de uma pessoa para outra. Havia os que certamente compreendiam. Os outros tentavam ser claros e várias vezes tentavam se ajudar. A maioria dos atores não fica realmente envergonhada quando uma idéia intelectual ou artística permanece além da sua compreensão. Porém, todos sabiam que seria de grande benefício se estas idéias pudessem ser colocadas em prática. De que forma? Certamente, através de seu desempenho.

E asim foi. Cada ator podia ver o objetivo geral sendo canalizado para dentro da arte de cada indivíduo: o dramaturgo no seu texto; o cenógrafo incorporando este texto em seus cenários; a visão do diretor com respeito à intenção básica da peça; e, no próprio ator, a compreensão da personagem que ele iria representar. Essas idéias agora dirigiam a concepção total do ator e, por conseqüência, o seu desempenho. Desta forma, vagarosamente, ao longo dos anos, o ator era capaz de afirmar que podia compreender a idéia organicamente. Foi principalmente essa prática e o novo uso de si mesmo em relação às idéias do teatro que permitiu ao ator sacrificar várias coisas importantes em prol do Group Theatre.

O método desenvolvido pelo Group para levar o ator a realizar esse objetivo era inédito na América. Supostamente, trabalhar-se-ia a personalidade total do ator. Era necessário que o ator se desenvolvesse. Ele tinha que se tornar um artista, adquirir uma arte onde pudesse colocar experiência, talento, intuição etc. Para isto, devia-se encontrar uma técnica básica.

O ator, como qualquer outra pessoa, tem problemas pessoais. Esses problemas deveriam ser compreendidos e respeitados, e, até certo ponto, resolvidos. Seus problemas econômicos, pessoais e artísticos eram preocupações diretas relacionados ao teatro. O crescimento do ator dependia, em parte, de ser compreendido e ajudado. Da mesma forma, esse teatro, por sua própria natureza, o envolvia em vários problemas, econômicos e artísticos, que o impossibilitariam de atuar sem compaixão e ajuda.

Se um ator, nesse teatro, era inconstante em seu desempenho, estava claro que havia um problema de disciplina que deveria ser resolvido. Se outro ator, através de alguma forma de intolerância, mostrava-se emocionalmente limitado, ele tinha de ser esclarecido, e algumas vezes reeducado. O talento de um terceiro ator, por causa de timidez ou insegurança, estava se tornando limitado. Esse problema afetava o seu desempenho, os outros atores, a peça e, na verdade, o teatro inteiro e o seu modo de funcionamento. Logo, essa abordagem era considerada necessária para que o ator pudesse colocar o máximo de si mesmo em seu trabalho e, conseqüentemente, para todo o teatro.

O Group Theatre não acreditava que, só porque um ator tinha talento comprovado ou alguma experiência, podia necessariamente ajudar a criar este teatro. Isso confundia vários atores que estavam ansiosos para trabalhar com o Group. Os atores que, desde o começo, estavam interessados na formação deste grupo, eram aqueles que aceitavam o conceito global do teatro - e, conseqüentemente, sabiam o seu lugar em relação a ele, especialmente no que diz respeito ao ego do teatro. A própria natureza do grupo exigia esta compreensão. Desde o começo, era inevitável que se fizessem vários sacrifícios, especialmente em termos de importância dos papéis atribuídos e na questão do salário. Os atores do Group tinham que ser fortes para sobreviver às dificuldades. Alguns sobreviviam; outros eram destruídos.

No início, apenas poucos atores tinham estudado o método de Stanislavsky. A maior parte do grupo tinha adquirido sua técnica atuando nos mais variados palcos e nas mais variadas circunstâncias: peças da Broadway, pequenos teatros, companhias de repertório etc. Os outros tinham ainda menos experiência ou algum estudo de qualquer tipo. Um novo método de intepretação tinha sido criado por Stanislavsky e praticado na Rússia no Teato de Arte de Moscou. Quando esse teatro veio para a América, ficamos cientes de um novo e alto padrão em termos de atuação de grupo. Foram dois de seus mais importantes discípulos, R. Boleslavsky e Madame Ouspenskaya, que primeiro ensinaram esse método a jovens atores americanos. Era, de longe, considerado a melhor técnica criativa para atores e foi usado pelo Group Theatre desde o início, embora de uma forma bastante especial.

O método Stanislavsky é complicado e difícil de explicar. O próprio Stranislavsky sabia o perigo que havia em tentar formular sua teoria desta maneira. Pode-se fazer uma tentativa honesta, porém limitada, ao afirmar que o ator é primeiro treinado a fazer um uso bastante real de si mesmo em relação a ações, ao senso de verdade, à imaginação, ao uso da motivação e à maneira de tratar a emoção. O ator descobre várias formas de construir sua arte e libertar suas emoções, cada vez de uma forma diferente, ao invés de imitar ou fazer uma aproximação. Isso porém faz parte do treinamento, não sendo um objetivo em si mesmo. O objetivo do uso dessa técnica é permitir ao ator interpretar verdadeiramente um personagem.

No início, por várias razões, o Group Theatre considerava necessário começar com os ensaios de uma peça. A peça era lida, analisada, e a intenção do autor esclarecida através de uma análise detalhada. O ator, então, via-se frente ao estudo de seu papel. Esses ensaios iniciais constituíam o primeiro aprendizado do ator no Group, no método adotado.

A abordagem analítica da peça, assim que os ensaios começavam, interessava e estimulava muitos atores. Porém, alguns preferiam se aproximar da peça mais devagar. Preferiam que a personagem se desdobrasse através do processo de ensaio, absorvendo o conteúdo do papel e da peça, de um ensaio para o outro. Esses atores sentiam maior satisfação em criarem, eles mesmos, a caracterização da personagem, ao invés de assimilá-la através da compreensão do diretor.

A análise de peças nesse nível diminuiu ao longo dos anos, pois o diretor achava que ela sobrecarregava muito o ator. O método foi imediatamente incorporado enfatizando o uso das ações, uma variedade de improvisações e exercícios chamados de "Memória Afetiva". O uso das ações permitia ao ator uma compeensão imediata do texto em relação ao seu próprio papel. Por seu intermédio, ele aprendia a representar o que realmente estava acontecendo no subtexto, isto é, por trás das palavras.

Através de improvisações, essas ações tornavam-se vivas nos atores antes que as palavras do texto fossem estudadas. Também eram usadas várias formas para o desenvolvimento da caracterização e para esclarecer a situação real da peça. Os exercícios de "Memória Afetiva" eram usados principalmente para captar uma emoção específica necessária para compor o clima, a autenticidade e a caracterização.

Em aulas fora dos ensaios, alguns atores trabalhavam outros aspectos do método ou suas interpretações do mesmo, com o objetivo de desenvolver a imaginação e a caracterização. O Group Theatre usou esse método durante três anos, ao longo dos quais produziu seis peças, e só em 1934 veio a modificá-lo radicalmente.

A forte ênfase colocada na manipulação consciente das emoções específicas do ator foi abandonada pela maioria dos atores. A partir desta data, o método Stanislavsky foi reinterpretado pela pressão vinda de sua própria afirmação. Isso esclareceu a área na qual o Group havia interpretado erroneamente suas teorias. Mudou-se, então, a ênfase, que passou a ser colocada nas circunstâncias da peça e em um uso mais efetivo da necessidade por parte do ator de justificar melhor o uso destas circunstâncias, e de um modo mais consciente.

O método, principalmente através da clareza de ações que ajudavam o diretor e o ator, tinha tanta força em si mesmo que, mesmo antes de implementar essas mudanças importantes, já havia, desde a sua primeira produção, gerado o grupo mais importante que a América conhecera até então. E depois, consistentemente, durante todos os anos, o conjunto do Group Theatre nunca caiu abaixo do padrão que tinha estabelecido para si próprio. Dizia-se deste grupo que era "talentoso e inspirado", que o seu desempenho era a expressão de um ideal, que o método do Group Theatre era o único modo de se preparar uma peça.

Também podia-se afirmar que o credo original do Group Theatre foi absorvido por todo o organismo teatral desde a primeira produção, ao invés de ser assimilado pelos atores isoladamente. Devido ao esforço coletivo, à total seriedade do grupo, ao fervor, entusiasmo e dedicação a um objetivo, cada peça era imbuída de um espírito que lhe dava um significado artístico maior do que qualquer contribuição individual.

Muitos atores sofreram pressão desde o começo, apesar da importância do relaxamento no trabalho do ator. Até certo ponto, isso acontecia porque exigiam que, através de sua "Memória Afetiva", ele lidasse conscientemente com a parte de si mesmo prevista para permanecer inconsciente. O método Stanislavsky tem um objetivo global em relação ao ator. Ensina o que fazer conscientemente para que possa ser emocionalmente livre e espontâneo. Portanto, desde o começo, o método beneficiou principalmente os atores mais experientes. Eles sabiam que podiam representar, pois já tinham feito isso - tinham preenchido os requisitos necessários para o teatro profisisonal.

Desta forma, eram capazes de trazer uma independência que haviam conquistado através da experiência. Sua confiança era fruto do desempenho, por mais auto-críticos que fossem. Eles usavam o método nesse contexto, somando estes novos elementos à sua técnica de representação. Conseguiam se sentir mais vivos, mais fluentes emocionalmente, do que antes. Tornavam-se cônscios desse crescimento e podiam, agora, recriar um papel em cada representação.

Os outros, menos experientes, menos calejados, aceitaram o novo método literalmente. Vários falharam em seu desempenho como atores e perderam a confiança em suas técnicas antigas. Acabaram confusos. Porém, seus desempenhos individuais costumavam ser excelentes por causa dos seus métodos de ensaio; cada cena era construída com uma solidez arquitetônica difícil de ser abalada; e, independente dos tipos de problemas de interpretação individuais, esses atores ajudaram muito o grupo a alcançar seu nível de excelência.

No começo da temporada de 1934, as pessoas que ingressaram no Group, os atores mais jovens, os aprendizes, e até mesmo os "parasitas", começaram a crescer como artistas nesta empreitada. A essas novas pessoas eram dadas a chance de trabalhar mais devagar, antes que lhes exigissem assumir papéis de responsabilidade. Através de sua arte, eram capazes de criar uma estrutura consciente para a abertura espontânea do inconsciente. Só então um ator individual tornava-se um criador independente. Esses anos produziram alguns dos melhores e mais típicos talentos do Group Theatre, os quais, juntamente com os atores mais velhos, muito influenciaram, quer atuando, dirigindo ou ensinando, no progresso de nosso teatro.
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Artigo extraído de Actors on Acting, Crown Pub inc, N.Y. 1970. Tradução de Kézia L'Engle de Figueiredo. Este artigo está publicado na revista Cadernos de Teatro nº 149/1997.

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