sexta-feira, 5 de março de 2010

Teatro/CRÍTICA

"Hamelin"


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A trágica impotência das palavras


Lionel Fischer


"O jovem juiz Monteiro está determinado a provar que um importante membro da sociedade abusou sexualmente de uma criança. Na luta para reunir provas, descobre que não é nada fácil encontrar os culpados e distinguir o bem do mal. Com uma atmosfera próxima dos filmes de suspense e através de uma dramaturgia não convencional, Hamelin revela a impotência da sociedade em proteger a inocência das suas crianças e a impossibilidade de se chegar a uma única conclusão quando as palavras são tudo o que se tem para apurar a verdade".

O trecho acima, extraído do ótimo release que nos foi enviado, sintetiza o que de mais essencial ocorre na presente montagem, cabendo ainda acrescentar outra informação, também contida no release: "No espetáculo o autor aborda o tema da pedofilia para falar, como ele próprio cita, da formação e da deformação da linguagem." Este último tópico merecerá, em seguida, algumas considerações, que não sei se estarão em sintonia com o que o autor pretendeu.

Escrita pelo espanhol Juan Mayorga, "Hamelin" está em cartaz no Teatro II do CCBB, com direção assinada por André Paes Leme e elenco formado por Vladimir Brichta, Alexandre Dantas, Alexandre Mello, Cláudia Ventura, Oscar Saraiva e Patrícia Simões.

Como todos sabemos, a pedofilia vem assumindo contornos cada vez mais alarmantes e trágicos, sobretudo a partir das facilidades oferecidas pela internet. E em muitos casos, torna-se praticamente impossível provar que alguém é pedófilo, no caso da inexistência de provas concretas. Restariam, portanto, as palavras: as de quem acusa e as de quem se defende, cabendo salientar que a maioria das vítimas da pedofilia opta pelo silêncio, em especial quando esta abjeção ocorre no âmbito familiar.

Mas voltemos à afirmação do autor: formação e deformação da linguagem. Por um lado podemos interpretá-la no que concerne à linguagem cênica, já que a peça foi estruturada de forma tal que os atores interpretam seus personagens e ao mesmo tempo distanciam-se deles quando atuam como narradores, anunciam as rubricas ou se dirigem ao público, comentando a ação e estimulando a platéia a se posicionar. No entanto, algo me diz que a premissa básica não seria essa. Mas qual seria, então?

No meu entendimento (sujeito a todos os enganos, naturalmente), acho que "linguagem" talvez possa ser entendida como algo em processo de falência, pois cada vez mais se evidencia a impossibilidade de comunicação entre os homens através das palavras. Muitas vezes, ainda que empregadas corretamente, não conseguem traduzir com exatidão idéias ou sentimentos. E assim chegam "deformadas" aos ouvidos do interlocutor, que a elas reage como se tivesse escutado algo diferente do pretendido. Mas este não é o caso do juiz, que se vale de palavras claras e objetivas para tentar arrancar a confissão do suspeito, para fazer com que a criança se abra, para estimular os pais da suposta vítima a admitirem sua conivência e assim por diante.

Entretanto, todas as suas tentativas fracassam, não por falta de entendimendo do que ele diz, mas pela diversidade de posturas de todos os envolvidos no caso, direta ou indiretamente. Em sua obsessão pela verdade, o juiz parece não ter percebido que, em determinadas circunstâncias, a verdade é - ou passa a ser - a expressão da maioria. E por isso chega ao final da peça exibindo exasperante sensação de impotência.

Bem escrito, contendo ótimos personagens e uma trama que prende a atenção do espectador desde o início, "Hamelin" chega à cena em ótima versão de André Paes Leme. Austera, seca, plena de tensão e nervosidade, a montagem consegue materializar todos os conteúdos pretendidos pelo autor, também em função da atuação de todos os profissionais envolvidos neste instigante trabalho.

No elenco, Alexandre Dantas, Cláudia Ventura e Patrícia Simões exibem atuações seguras e convincentes em papéis com menores oportunidades do que os demais. Na pele do suposto pedófilo, Alexandre Mello consegue valorizar de forma irretocável todas as nuances de uma alma atormentada e dividida entre, digamos, o bem e o mal. Vladimir Brichta também atinge o mesmo grau de excelência em sua interpretação do juiz, exibindo grande carisma e forte presença cênica. Quanto a Oscar Saraiva, que dá vida tanto ao menino como a seu pai, acredito que esta seja a melhor performance de sua carreira, pois extrai de ambos os papéis o máximo que têm a oferecer, entregando-se de forma comovente e apaixonada à tarefa de materializar sentimentos e emoções tão dilacerantes.

Na equipe técnica, parabenizamos com o mesmo entusiasmo o trabalho de todos os profissionais envolvidos nesta mais do que oportuna e brilhante empreitada teatral - Renato Machado (iluminação), Carlos Alberto Nunes (cenografia), Luciana Maia (figurinos), Lucas Ciavatta (direção musical) e Patrícia Simões e Antônio Gonçalves (tradução).

HAMELIN - Texto de Juan Mayorga. Direção de André Paes Leme. Com Vladimir Brichta, Oscar Saraiva e outros. Teatro II do CCBB. Quinta a domingo, 19h30.

3 comentários:

  1. Vi a peça e realmente é maravilhosa!! Parabéns aos envolvidos.

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  2. O espetáculo e o elenco todo está muito bom mesmo. Parabéns pela crítica, muito criteriosa e contundente.

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  3. Vale ver logo.
    É um espetáculo todo muito bem apresentado.
    A montagem é simples e surpreendente.
    Os dialogos muito bem interpretados.
    E as atuações são muito boas, especialmente as do Alexandre Mello e do Oscar Saraiva.
    Abs,
    Fernando Lemos

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