quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

         Da futilidade de planejar o futuro
                       Sêneca saúda o amigo Lucílio

Cada dia, cada hora mostram-nos o pouco que valemos e qualquer outra importante situação relembra nossa fragilidade esquecida. Nós, que sonhávamos com a eternidade, somos obrigados a encarar a morte.

Perguntas o porquê dessa introdução? Vê bem, conheceste Cornélio Senecião, brilhante cavaleiro romano e homem honrado? Sendo de origem humilde, fez fortuna com esforço próprio e abriu um longo caminho de sucesso. Com certeza, para a ascensão social, são essas premissas que contam.

E, do mesmo modo, o dinheiro chega lentamente onde há pobreza e permanece enquanto dela provém. Da mesma forma, Senecião alcançou riqueza graças a duas qualidades indispensáveis nesse domínio: a arte de adquirir e a arte de conservar. Tanto uma coisa como outra era suficiente para torná-lo rico.

Esse homem, de uma extrema sobriedade e que administrava da mesma maneira a sua pessoa e fortuna, veio visitar-me pela manhã como de hábito. Passou todo o resto do dia e parte da noite à cabeceira de um amigo enfermo, condenado. Depois de haver jantado alegremente, foi acometido de uma crise aguda de angina e, a custo, sobreviveu até a madrugada. Assim, poucas horas após ter cumprido seu dever de um homem de bem, ele morreu.

Ele, que estava investindo na terra e nos mares, que entrou para a vida pública, que se aventurou em todos os tipos de negócio, estando em plena realização de suas atividades financeiras, foi repentinamente arrancado dessa vida. Que bobagem fazer planos para o futuro quando não sabemos nem do dia seguinte. Que tolice planejar grandes projetos para o futuro. 

Creia-me, tudo é incerto mesmo para os mais felizes. Ninguém deveria fazer promessas para o futuro. Mesmo o que já possuímos pode nos escapar e, nessa hora, que pensamos estar bem, um mal pode nos arrasar. O tempo transcorre segundo leis imutáveis, é certo, mas obscuras. E que me importam as certezas da natureza se eu permaneço na incerteza?

Longas navegações e tardios retornos à pátria ao final de aventuras em lugares estrangeiros, esses são nossos projetos. E o trabalho de soldado e seu esforço tardiamente remunerado, as promoções. Durante esse tempo, a morte está ao nosso lado, mas como não pensamos nela senão com relação ao outro, a idéia de nossa mortalidade, passo a passo a nós ensinada, não causa efeito senão enquanto dura a surpresa.

Há tolice maior do que ficar admirado de ver acontecer o que pode ocorrer a qualquer dia? Com certeza, há um limite já fixado para nós pelo destino, mas esse final nenhum de nós sabe enquanto está vivo ou quão próximo será. Preparemos nossa alma, então, como se esse fim estivesse nos atingindo. Não deixemos nada para mais tarde. Acertemos nossas contas com a vida dia após dia.

O defeito maior da vida é ela não ter nada de completo e acabado, e o fato de sempre deixarmos algo para depois. Aquele que sabe levar sua vida no dia-a-dia não precisa do tempo. Essa necessidade aparece, bem como o medo do futuro, da fome desse futuro que corrói a alma. Nada é pior do que se indagar a propósito do que está por vir: "Para onde isso vai me levar? Quanto tempo me resta e como será minha vida?" É isso que agita uma mente atemorizada.

Como fugir dessa inquietaçãop? Há apenas uma maneira: não deixando nossa vida na pendência de um futuro incerto, mas que se concentre nela mesma. Em verdade, só se concentram no futuro aqueles que estão insatisfeitos com o presente. Ao contrário, se eu estiver satisfeito com o que tenho, quando a mente souber que não existe diferença entre um dia, a alma visualizará, do alto, o conjunto dos dias e dos acontecimentos que estão por vir e apenas sorrirá. De que maneira a inconstância e a mudança do acaso podem perturbar aquele que permanece estável na instabilidade?

Portanto, meu caro Lucílio, trata de viver cada dia como se fosse uma vida inteira. O homem que está assim preparado, aquele que viveu cada dia de sua vida plenamente, está tranqüilo. Contudo, quem vive na esperança do amanhã deixa escapar o presente. Assim, se aproxima de um desejo insaciável acompanhado de um sentimento miserável que torna as coisas mais miseráveis, ou seja, o pavor da morte. Daí o vil desejo de Mecenas, que não recusa as enfermidades, aceita as deformações e ainda ser pregado na cruz, contanto que, através desses sofrimentos, possa continuar va viver:

Faz de mim um maneta,
Estropiado de uma perna, reumático
Coloca em minhas costas uma corcova
Faz cair meus dentes:
Enquanto me restar vida, está bem;
Mesmo na cruz, sobre a estaca, conserva a minha vida.

Isso, se acontecesse, seria o cúmulo da miséria e é esse o desejo dele! Acredita estar pedindo vida, mas apenas está prolongando um tormento. Já o consideraria bastante desprezível se desejasse viver até ser crucificado, mas ainda diz:

Podem me aleijar, desde que ainda me reste um sopro de vida em meu corpo mutilado e impotente. Deixa-me aleijado e disforme, mas permita que eu viva um pouco mais. Podes até me crucificar e colocar em uma estaca.

Vale a pena aumentar o sofrimento, ficar dependurado com os braços abertos, tudo isso para adiar o que o suplício tem de melhor, o seu fim? Vale a pena conservar a alma para extingui-la no sofrimento? Que se pode desejar a esse homem senão que obtenha a complacência dos deuses?

O que significa esse vergonhoso poema, digno de um covarde? Esse pacto de pavor e loucura? Essa maneira ignóbil de mendigar a vida? Como imaginar que, diante de tal homem, Virgílio tenha lido um dia este verso: "É um mal assim tão grande o fato de morrer?" Ele deseja os piores suplícios, os mais penosos sofrimentos, deseja ardentemente que se prolonguem, que continuem. O que pode ganhar com isso? Viver um pouco mais? Mas que tipo de vida é essa morte lenta?

Vê-se, então, um homem que prefere se afundar em suplícios, que prefere morrer membro a membro e exalar sua vida gota a gota a deixar escapar, de uma vez por todas, seu último suspiro? Vê-se um homem que deseja ser pregado na cruz, que quer ficar muito doente, deformado, sofrendo, com o peito e os ombros feridos, e que ainda quer um sopro de vida em meio a toda essa tortura? Penso que já teria muitos motivos para morrer mesmo antes de ir para a cruz.

Não digas, portanto, que a necessidade de morrer não seja um benefício da natureza. Muitos estão preparados para pactos ainda mais abjetos, até para trair um amigo a fim de conservar a vida, a deixar os filhos na prostituição para desfrutar de uma luz que é testemunha de tantos crimes. Deixemos, pois, de lado a paixão pela vida e saibamos que importa pouco quando sofreremos aquilo que nos está reservado. O que realmente importa é viver bem, e não viver muito. Muitas vezes, o melhor é que a vida não dure muito tempo.
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Extraído de Aprendendo a viver, L&PM POCKET. Tradução do latim por Lúcia Sá rebello e Ellen Itanajara Neves Vranas.

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