quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

A grave responsabilidade
do Teatro Infantil

                                                                                                                                             Barbara Heliodora

           
            Nunca tivemos tanta atividade no que se chama teatro infantil - ou seja, um teatro realizado por adultos para um público infantil - como atualmente. Entretanto, em lugar de nos proporcionar um panorama de esperança e otimismo, esse movimento deve causar a todos os que se interessam pelo desenvolvimento do teatro e pela formação cultural de nossa infância não só preocupação como mesmo alarme, já que os grupos de “teatro infantil” proliferam na razão direta de sua falta de qualidade e critério.
        
Dois erros básicos, muito embora totalmente opostos, são os mais comuns nesse gênero de atividade, e ambos se originam no desconhecimento da natureza do teatro como arte independente e legítima, bem como de suas características essenciais. Abandonando o caminho do teatro, os que erram descambam para dois campos opostos: o da suposta pedagogia e o da exacerbação emocional gratuita, ambos esquecidos de que o teatro é uma experiência artística, estética, uma experiência independente, autônoma, ligada ao que é definível especificamente como uma ação dramática.
        
Que o teatro educa, não há dúvida, ou melhor dizendo, pode educar, mas deve educar pelos seus próprios meios, pelo aprimoramento de conceitos estéticos, pela ampliação da experiência de conhecimento humano, e nunca pela lição de moral impingida, soletrada e empurrada goela abaixo a qualquer preço. Há pessoas que passam a vida a tirar citações de Shakespeare e encontrar aplicação para as mesmas, fora de contexto, em todos os assuntos, desde hábitos de higiene até as boas maneiras à mesa ou na sociedade, mas por certo a culpa não é de Shakespeare, que tratou de temas em termos dramáticos que expressaram determinadas idéias, mas que por certo não tinham a intenção de ensinar ninguém a usar o guardanapo. Dramatização de determinados acontecimentos como instrumento didático momentâneo é um outro assunto completamente à parte.
        
Do outro lado está alguma coisa de ainda muito mais comprometedor: o grupo que junta meia dúzia de frases feitas ou idéias apropriadas a contos de fadas ou similares, a partir disso apostam corrida em volta da platéia ou do palco, fazem concursos de potência vocal com os espectadores e, de modo geral, deixam-no num tal estado de super-excitação gratuita - sendo mesmo nefasta - que deve criar inúmeros problemas para os incautos, pois que pagaram seu dinheiro na busca de uma atividade dominical para a prole. Para tristeza da mui leal cidade, hoje mui sofredor estado, a segunda categoria ainda é muito mais numerosa do que a primeira.
        
Que foi que aconteceu com o teatro infantil, para que chegasse ao ponto de loucura a que chega agora? Não é difícil encontrar a explicação: não há por aqui nada o que se fazer com as crianças nos fins-de-semana, a não ser ir à praia (quando não chove) ou ao cinema (quando há algum filme de censura livre que não seja uma das monstruosidades nacionais que deviam ser proibidas por um juizado estético de menores), admitamos que não há pergunta mais angustiante do que aquela “o que é que eu vou fazer?” ilustrada pelo arregalamento de dois olhinhos sequiosos de saber o que é que este estranho mundo tem para oferecer a uma curiosidade insaciável. O resto do mecanismo é simples: um grupo começou a fazer teatro infantil bom, íntegro, e fez sucesso. Com a descoberta daquela fonte inesgotável de bilheteria, não houve quem não visse o golpe que era fazer teatro infantil e toca a fazê-lo, de qualquer maneira, para aproveitar o filão. Pior do que isto, inventou-se que escrever para teatro infantil é fácil, acessível a quem não consegue escrever para teatro sem limite de idade, e multiplicaram-se os textos que variam do estarrecedor ao inenarrável.
        
Não estamos a dizer que não foi feito, em meio a esta avalanche, teatro infantil de qualidade, mas o que necessita de reparo, o que deve ser objeto de atenção por parte dos pais, educadores e autoridades ligadas ao teatro é o que se faz impunemente de mau, de péssimo, de comprometedor para a formação da criança.
        
A mesma ausência de critério que rege os textos rege a realização dos espetáculos. Considerando - lamentavelmente - o fato de que as crianças em geral não têm um julgamento definido de qualidade, aproveitam-se os supostos realizadores de teatro infantil para fazer  um espetáculo de qualquer maneira, com péssimos atores, péssimos cenários, péssimos figurinos e sem ninguém saber o texto direito, e lançam-se irresponsavelmente à aventura teatral que, feita deste modo, sem quê nem porquê, sem um critério sério por si, pode ser e é altamente prejudicial à infância.
        
Senão, vejamos. É sempre muito mais difícil corrigir um mau hábito do que criar hábitos bons onde não os há. No período formativo, se a criança for sistematicamente corrompida em seus hábitos estéticos, se não for real e cuidadosamente incutido um critério de gosto, de seleção, se for alimentada com maus espetáculos, com más interpretações, maus cenários, maus figurinos, isso vai determinar sua formação de gosto, que a acompanhará pela vida toda e que, se mal formada, oferecerá obstáculo difícil de ser superado mais tarde. O cultivo do mau gosto já está suficientemente disseminado no país para que não se clame contra esta invasão do campo da infância.
        
Torna-se necessário chamar à responsabilidade os que fazem hoje teatro infantil como mera exploração comercial. Torna-se necessário lembrar aos pais que é necessário informar-se a respeito de um espetáculo antes de levar seus filhos para assisti-lo: só o repúdio público pelo que é de má qualidade é que pode forçar eficientemente a melhoria do nível.
        
O teatro pode ser um elemento educador em mais de um sentido, deve desenvolver tanto a capacidade de concentração da criança - pois, se não se concentrar no que acontece no palco, não pode entender o que está vendo e ouvindo - quanto servir como instrumento de cultura, seja por meio do texto, seja por elementos visuais e auditivos. O erro fundamental é o de se dar música de má categoria e mal executada a uma criança cujo ouvido ainda não conhece as possibilidades de boa música (muito pior, é claro, é obrigar uma criança a ouvir boa música com grandes avisos de que “você tem de escutar porque isto é um clássico”, o que cria as maiores barreiras contra a música erudita). Mas não se pode esperar que uma criança sente, fique quieta e preste atenção quando o que se diz no palco não passa de uma reunião mais ou menos desconexa de frases feitas ou gritarias que exigem outras gritarias em resposta e que são, com criminosa ingenuidade, chamadas de “métodos para se  obter participação da platéia”.
        
Participação não é, e nem deve ser, intromissão. Os extremos de resultados dessa noção confusa do que seja participar de um espetáculo são os inúmeros casos que se contavam, dantes, de pessoas que chamavam a atenção dos atores num palco para a presença de algum personagem escondido. Participação é, no caso do teatro, receptividade, é sintonia, é comunhão de idéias, é apreciação inteligente do que se desenrola no palco, e por isso mesmo são legítimos os casos de falas por intermédio das quais se transmite às crianças a idéia de que os personagens sabem que elas estão ali, têm noção de que estão trabalhando para elas - logicamente a criança se sentirá bem-vinda, se sentirá integrada no espetáculo e conseqüentemente mais estimulada a acompanhá-lo com atenção.
        
É preciso, é imperioso, que se lembrem todos de que no teatro infantil as platéias teatrais do futuro estão aprendendo as regras do jogo; cumpre aos adultos compreender o alcance dessa responsabilidade para não carregarem consigo a amarga culpa de ter ensinado errado, aproveitando e abusando de sua ingenuidade. Temática adequada, linguagem simples e acessível e aproveitamento dessa coisa maravilhosa que é a imaginação da criança devem reger a redação dos textos do teatro infantil. Cuidado especial deve ser dado à construção da peça, pois as crianças têm um sentido lógico surpreendente e, com toda a razão, não perdoam aqueles que sentem estar querendo enganá-las: fazem uma distinção absoluta e perfeita entre a imaginação, que é o faz-de-conta, e o engodo, que é apenas a negação da verdade.
        
Se devemos esperar disciplina de um a platéia, não é justo que o espetáculo em si não seja disciplinado, e por isso mesmo é ofensivo e cruel, para com um público que vem ao teatro de coração aberto, apresentarem-se espetáculos sem ensaios, em que metade dos atores não sabe o papel e fica a inventar frases que julga ótimas para “conquistar a criançada”, mas que nada têm a ver com o que o espetáculo teria a dizer. Se um texto de teatro infantil é realmente um texto então, de qualquer modo, ele merece tanto respeito quanto um texto dramático de teatro adulto, e os produtores, diretores e atores que assim não julgarem estão traindo a própria profissão.
        
É preciso que se dê um crédito de confiança ao público infantil, que o merece por todos os títulos. A grande maioria, será verificado, é perfeitamente capaz de tirar suas próprias conclusões do que viu, sendo dispensável essa “moral da história” que tantas vezes é incluída. Se a história é verdadeiramente uma fábula, se ela conseguiu expressar, em termos de teatro, a idéia do autor, estejam sossegados que as crianças entenderão; se, por outro lado, ela não disse nada, se em verdade o autor não tinha nada a dizer, então não há discurso final que a justifique. A responsabilidade do teatro infantil é enorme; é preciso que se zele pela infância, evitando que seja exposta ao mau teatro.
________________________________
Este artigo, escrito em 1965, foi publicado no nº 31 da revista Cadernos de Teatro, edição já esgotada. Barbara Heliodora é professora, tradutora e crítica teatral do jornal O Globo. Foi aluna de Maria Clara Machado e participou, no Tablado, da primeira montagem de A bruxinha que era boa, em 1958. No Tablado dirigiu uma leitura de Hamlet.


*     *     *

2 comentários:

  1. A palavra também se perdeu um tanto no teatro para publico adulto.

    ResponderExcluir
  2. Recuperando o comentário anterior que não seguiu.
    O artigo da Barbara é atualíssimo em muitos aspectos. Fica pra mim o que senti desde os anos 70 na minha primeira peça adulta. Teatro é teatro para qualquer platéia. Tem que se comunicar com simplicidade. O Palco sobre rodas na Cidade de Deus nos mostrou que uma história pode até ser contada para uma platéia mista e divertir/informar a cada um na sua medida.

    ResponderExcluir