Eduardo Wotzik
ENTREVISTA
Sucesso é bom e eu gosto
Corre a lenda de que ele, quando ainda era bem jovem e tinha a cabeça ornamentada por onduladas melenas – há muito desaparecidas - ao adentrar a praia de Ipanema esta literalmente “parava”. Será mesmo? E por que “pararia”? Ele se considera um bom jogador de vôlei (é possível), um mediano jogador de futsal (é provável) e um péssimo tenista (isso é irrefutável). Filho de pai polonês e mãe brasileira, cinco casamentos (um com o teatro e os outros com donzelas, naturalmente), pai de Maria Julia (16 anos, fruto de sua união com a atriz Flavia Guimarães) e de Gabriel (3 anos, nascido de sua união com Michele Fontaine, que ele pretende que seja eterna), ele não cultiva manias, não toma remédios para dormir e abandonou o cigarro. Mas o teatro, jamais. Com um invejável currículo como professor e encenador, possuidor de vasta coleção de prêmios, Eduardo Wotzik concedeu esta entrevista exclusiva ao Folha Zona Sul.
Lionel Fischer – Na qualidade de editor da revista Cadernos de Teatro, publicação do Tablado, te encomendei em 1997 um artigo para a edição 150/1, deixando a teu encargo a escolha do tema. Pois bem: a matéria saiu publicada com o título “O teatro acabou”, de sua autoria. Você continua pensando da mesma forma?
Eduardo Wotzik – Continuo. Pensando que o Teatro recuou como preconizou Dulcina de Morais e que naquele momento tive a nítida impressão de que tinha recuado para sempre, e que era preciso gritar para ver se alguém ouvia. O teatro a que estava me referindo não era o teatro entretenimento, aquele somente vinculado ao sucesso financeiro, ao sucesso de público, que pretende dar ao povo o que ele quer, ser espelho medíocre da realidade, mas o teatro enquanto expressão artística, que exige que você melhore, te recondiciona, que pretende ser espelho e motivo de mudanças internas e externas importantes, esse teatro acabou mesmo naquele ano. E de lá para cá vivemos um luto de mais de dez anos, com algumas pequenas exceções, claro, de um Teatro bem comportado, sem pegada, politicamente correto, do agrado.
LF – Peter Brook, o maior encenador vivo, define o teatro como “a arte do encontro”. Você concorda?
EW – Concordo demais. E digo ainda: só no Teatro, hoje, podemos encontrar o ser humano em estado de sangria, o ser humano colocado em cima de uma lâmina de laboratório com um microscópio ou mesmo uma lente de aumento em cima nos ajudando a nos ver. O Teatro é sem dúvida a maior e melhor exposição da fauna humana que habita o planeta. Todos os dias podemos observar em suas salas uma fatia dessa sociedade que chamamos humanidade. Aliás, eu concordo muito com ele. Muitos anos já tinha fazendo teatro quando um jornalista me disse que eu deveria ler seus livros teóricos (e eu que tinha ficado uma semana em silêncio depois de ver seu filme Mahabarata) comprei seus livros e então foi mais um desses encontros que só o Teatro oferece. O cara pensava o Teatro de um jeito muito parecido com o meu. E ele me fez ser melhor, esse tal de Peter Brook.
LF – Você começou sua trajetória artística no Grupo Tapa, no qual permaneceu dez anos exercendo múltiplas funções. Fale um pouco sobre este período.
EW – Dez anos dentro do teatro. Produzindo, atuando, operando som, dirigindo, mas principalmente perguntando, perturbando, me metendo, por que isso, por que aquilo, eu tinha sede, muita sede e foi com aqueles atores, diretores e técnicos maravilhosamente talentosos que eu resolvi que ia aprender. Tem gente que entende “de” Teatro, tem gente que entende “do” Teatro. Eu tinha me resolvido pela segunda opção.
LF – Em 1982, quando ainda estava no Tapa, você criou o “Projeto Escola” e o “Festival de Teatro Brasileiro”. Em que consistiam o Projeto e o Festival? E ambos contavam com a participação de artistas do Tapa?
EW – Em 1982 o Grupo TAPA tinha um problema saudável: vários jovens entrando no grupo querendo fazer e sem espaço. Então criamos o que chamamos de “Projeto Escola” que consistia em levar às escolas particulares e públicas do Grande Rio espetáculos de autores brasileiros. Íamos no meu FIAT 147 com cenário e figurinos na mala, eu, Priscilla Rozenbaum, depois Denise Fraga, Marcelo Escorel, Tereza Frotta, depois Beth Berardo, Ernani Morais, Brian Penido, Susana Kruger, depois Renato Icarahy, Moacir Chaves, Orã Figueiredo, nossa... muita gente participou! Uma geração que aprendeu a fazer fazendo. Chegávamos nos espaços e cada dia era um lugar diferente – quadras de esporte, auditórios, pátios, teatros, - com um publico diferente – sempre lotado, gente acostumada ao teatro e muitos que estavam vendo teatro pela primeira vez. Era bom demais. E não era uma sessão que fazíamos, não. Muitas vezes duas e outras quatro - duas de manhã e duas à noite em supletivos. Fizemos também na Penitenciária de Bangu, na Escola de Formação de Oficiais, no Hospital Pedro II, enfim, fizemos. Depois de uns anos percebemos que estávamos formando um público que ficava esperando o teatro em casa, e então invertemos a situação e começamos a fazer os espetáculos no teatro e trazer as escolas para dentro das salas, e assim acostumar e formar o público a ir buscar o Teatro e o conhecimento divertido. Surgiu então o “Festival de Teatro Brasileiro”. Teve um momento que eu sabia o nome e telefone de cor de todos os professores e coordenadores da área de Português, Literatura e História das principais escolas do rio.
LF – Passados oito anos, em 1990, já não estando mais no Grupo Tapa, você fundou o Centro de Investigação Teatral, com sede na Casa de Cultura Laura Alvim. Ali você produziu espetáculos e manteve oficinas de pesquisa e formação de atores. Que importância teve para você essa experiência? Quanto tempo ela durou e por que terminou?
EW - Um dia o GRUPO TAPA embarcou para São Paulo em busca de novas aventuras e eu que já começava a dirigir; resolvi que queria ficar aqui e aos poucos me emancipar. Entrei na casa de Cultura Laura Alvim recém inaugurada, perguntei a um rapaz que estava na secretaria: quem dirige a casa? Ele me disse Stela Marinho. E eu: Ela está? Ele disse: vamos agendar. E eu mais que metido: quero falar com ela. Agora. Por favor, veja se ela pode me atender. E ela podia. E me atendeu, e imediatamente abriu as portas da Casa para mim, para meu projeto, e eu saí de lá nem acreditando, pulando pitocos, cantando, celebrando pela Viera Souto, socando o ar, feliz demais. Stela Marinho foi a primeira pessoa que me disse: Eduardo, eu acredito em você. No seu talento! E isso foi muito importante naquele momento de orfandade do TAPA e de indecisão na carreira. Devo muito a ela. Lá fiquei dez anos. Sou o diretor que mais ocupou aquele Teatro (“Javanês”, “João e Maria”, “Geração Trianon”, “Opereta”, “Bonitinha, mas ordinária”, “Tróia”, “Emily”, “Só in Cena”, “Um ensaio aberto”, “Millor”, “O interrogatório”, dentre outras). Fomos nós que construímos o camarim do Teatro, o armário de luz do palco, a bilheteria, a cortina do palco; juntos, eu e Stela abrimos ainda um curso para terceira idade e organizamos os cursos de Teatro da Casa. Um dia pedi a Stela que me deixasse usar o espaço onde hoje funciona um dos cinemas e que estava vazio e então ficava lá três vezes por semana durante seis horas diárias pesquisando e investigando a teatralidade com atores convidados. Desses encontros descobri o processo que muitas vezes uso para formação do instrumento do atores e que chamo “aspiração”. Esse protocolo de exercícios técnicos foi usado em muitos espetáculos que fiz e são o principio que rege todo o meu trabalho de formação de atores. Eu saí de lá porque, por que mesmo que eu saí de lá? Eu saí de lá? Hoje sou parte de um Conselho de Cultura da Casa do qual muito me orgulho.
LF – Você participou de um total de 43 espetáculos, exercendo variadas funções. Mas sua trajetória é fundamentalmente marcada pela direção. Dentre todas as montagens que você dirigiu, quais você destacaria? E por quê?
EW – Sou pai de muitos filhos desse longo e único casamento que vem durando com o Teatro. E todos eles me são muito caros. Mas para não deixar a pergunta sem resposta, devo admitir que alguns tocaram mais fundo o silêncio do espectador e são filhos que se eu fosse refazer hoje, os faria iguaiszinhos. “Geração Trianon” eu faria igualzinho. “João e Maria” também. “Tróia”. “Bonitinha”. “Escola de Mulheres”. “Sonata Kreutzer”. “Um equilíbrio delicado”, “O homem que sabia javanês”, “O pássaro azul”, “Só in cena”, “O interrogatório”, e agora “Estilhaços”. Sou dos poucos diretores que podem dizer sem medo e com orgulho que tem pelo menos cinco espetáculos que marcaram ou mexeram de alguma maneira com a cena. E eu digo isso sem nenhuma pretensão, já que não tenho modéstia nem com as qualidades nem com meus defeitos.
LF – E quanto a eventuais fracassos, seja de público ou de crítica – ou ambos: foram muitos? Poderia citar alguns?
EW - Eu montei “Yerma” com a Clarice Niskier, Camilla Amado, Dedina Bernadelli, Clemente Viscaino, Henry Pagnoncelli, Bianca Ramoneda, Helio Eichbauer, Emiliano Ribeiro que eu não gostei do resultado. É que às vezes você pesquisa e não encontra, nem sempre a investigação resulta. E no caso da “Yerma” foi assim. E tinha tudo. Um puta elenco, dinheiro suficiente, Teatro I do Centro Cultural Banco do Brasil, equipe técnica de primeira, inteligência à beça, condições as melhores, mas chegamos a um lugar que não comunicava. Ao mesmo tempo, esse espetáculo me deu o mais bonito prêmio de toda minha carreira quando, cinco anos depois, resolvi que iria remontar o fracasso em busca de novos resultados e dois dias depois todo o elenco estava na minha casa reunido e pronto para a luta. Tem coisas nessa profissão que não se esquece. Aliás, tem muitas coisas nessa profissão que não se esquece. Atitudes que valem a vida.
LF – E já que tocamos na crítica: ela é importante para quem faz teatro e para quem o assiste? Qual seria o papel ideal da crítica no teatro contemporâneo?
EW - A crítica (não os críticos) como é exercida hoje por apenas uma pessoa, em apenas um jornal, num formato pequeno, esquemático e banal, determinando se as pessoas devem ou não assistir àquele espetáculo, é a ultima reminiscência da ditadura no Brasil. E a tendência é ela acabar e espero seja rápido, que já há muito ela tem feito um mal irreparável ao teatro. Os críticos de Teatro tem de ter mais espaço em todas as mídias. Para poder discorrer mais sobre uma obra. Divulgar e estimular no público o pensamento cênico, olhar uma obra de arte, levantar a polêmica, energizar o leitor, dialogar sem medo com artistas e espectador. E só deveriam escrever sobre aquilo que gostaram, sobre aquilo que consideram valer uma observação, um pensamento a mais, uma obra que instigue, que acreditam interessante, que sirva ao próximo. Fora isso deixa quieto. Deixa o publico escolher, exercer e praticar a democracia cultural. Assim que eu acho.
LF – Você já dirigiu espetáculos com jovens iniciantes e outros com “medalhões”, como ocorreu, por exemplo, em “Um equilíbrio delicado”, de Edward Albee, que tinha no elenco Walmor Chagas, Tônia Carrero, Luis de Lima e Camilla Amado. O teu processo de ensaio é sempre o mesmo ou exige, digamos, algumas “adaptações” em função do elenco ou texto?
EW – Quem manda nos meus projetos, quem determina como vão ser os ensaios, o local do ensaio, o tempo de ensaio, o que se vai comer nos ensaios, qual o formato, enfim, todo o processo, é o conteúdo da obra em questão. Ele é que me dirige e a partir dele oriento os demais. Toda vez que me repito desconfio.
LF – Durante os ensaios de “Sonata Kreutzer”, monólogo interpretado por Luis Mello, houve um momento em que aconteceu algo de muito importante e que acabou determinando tanto a forma de atuar do ator como a linha do espetáculo. Poderia nos contar o que ocorreu?
EW – Tantas coisas aconteceram. Me lembro de que enquanto eu fazia a adaptação da peça, tinha uma revista chamada “Teatro na Europa” que ficava sempre assim do meu lado e que tinha na capa um homem, um ator fazendo nem sei que peça era. Ensaiamos meses e um dia olhando para Luis em cena, de figurino, já no ensaio geral, sem que jamais tenha sequer feito qualquer referência, percebi que ele estava igualzinho à foto que me acompanhou durante toda a adaptação. Outra história da “Sonata” é que quase levei a cenógrafa à loucura, quando queria porque queria um tom de preto no chão do palco. Ela já tinha dado umas quatro mãos de tinta, e não chegávamos ao preto que eu queria. Os funcionários do teatro de saco cheio, o cheiro de tinta cada vez mais insuportável, e eu dizendo que não era aquele preto que eu queria. “Mas preto é preto!” “Não”. “Então, vai ver que você quer branco”. “Não”. “Eu quero preto, mas é um preto que espelha”, e lá ia mais uma mão de outro preto. Outro tipo de tinta, e tempo pra secar, e lixa, e o ensaio atrasando, os dias passando, e tinta, e lixa, e tempo pra secar. Todos já desesperados, intoxicados, inclusive a produção que gastara mais do que previsto. Ela achava que o cenário não ia custar nada, visto que o plano de cenografia era simplesmente um chão pintado de preto, e um banquinho de piano ao centro. Até que chegamos finalmente ao preto que eu queria. A “Sonata Kreutzer” é uma adaptação do romance do Tolstoi, que contava a história de um homem que matara a esposa, porque se sentia traído pela mulher pianista, e seu partner que a acompanhava ao violino. O chão que eu tanto queria, só reparei mais tarde, quando tudo ficou pronto, era o preto da tampa de um piano de cauda, e fazia todo um sentido que eu na época apenas intuía. São esses os momentos mais difíceis para mim no processo de criação. Porque me torno um chato, um insistente, porque sei que não é aquilo que eu quero, e não sei explicar o que eu quero, e só há uma forma de chegar ao acerto, que é tentando, o que venhamos e convenhamos, é um processo totalmente fora de moda nesse mundo mediocremente prático e objetivo em que vivemos, além do que, chega a um momento de exaustão, que é preciso que todos, inclusive eu, confiem demais na minha intuição.
LF – Sempre sustentei, ao longo dos últimos 21 anos exercendo o ofício de crítico teatral, que este país pode carecer de tudo, menos de grandes intérpretes. Você concorda?
EW – Tem toda a razão. Temos grandes intérpretes. Grandes fingidores. Mentirosos. Sonsos. Maus caráter. Grande atores. Mas a sociedade civil, invejosa, anda roubando nossas características, nossa função de condicionar, de ficcionar, de iludir, de representar.
LF – Você ganhou praticamente todos os prêmios como diretor, dentre eles o Mambembe, o MEC-INACEN, o Molière, o Ibeu e o Shell. Mas se tivesse que citar aquele que te deu maior alegria, qual seria? E por quê?
EW - A credibilidade é o meu maior prêmio. Toda vez que me senti honrado pelo crédito do alheio fiquei sorrindo um dia inteiro. Toda vez que consegui vencer - mesmo sendo honesto - me dei uma medalha de honra ao mérito.
LF – Entrou recentemente em cartaz o espetáculo “Estilhaços”, que adorei, como fica claro na crítica que consta desta edição. Ao que me parece, você tinha guardadas cerca de 400 crônicas, depois as reduziu a 100 e finalmente chegou nas 45 que constituem a montagem. Pois bem: qual a importância de “Estilhaços” na sua trajetória? Este é o primeiro texto seu que você encena?
EW – “Estilhaços” é meu terceiro texto, talvez o mais autoral. Onde me exponho mais. O primeiro era sobre a notável Aracy de Almeida e chamava-se “No país de Araca”. O segundo eu me escondia sob quatro jovens atores que ensaiam, ensaiam, ensaiam, ensaiam... só ensaiam, não realizam nada, ficam lá ensaiando suas vidas. Eu não sei ainda qual importância que “Estilhaços” terá na minha vida, ainda é muito cedo para avaliar, mas tenho que admitir que estou muito satisfeito. Feliz mesmo com os acertos do processo e grato demais a todos que me premiaram com sua fé. Que sucesso é bom e eu gosto. E tomara me acostume.
LF – E agora passemos ao delicado campo dos patrocínios, incentivos, captações etc. É possível se fazer teatro, hoje em dia, sem estar amparado por estatais, bancos ou órgãos federais, estaduais ou municipais ligados à Cultura? A bilheteria tem ainda alguma importância?
EW – Não. Não é possível. O teatro hoje não se faz possível. Se faz no impossível. Quer saber como é isso? Nem eu mesmo sei. Sei que tudo conspira contra. Para que você se sinta um estranho, porque quer fazer arte num lugar onde ninguém se interessa por isso. Isso inclui a Presidente da República, a Ministra da Cultura, o Governador do Estado, a Secretária de Cultura, o Prefeito, a funcionária do teatro, ninguém tem interesse na arte, mas sim nos benefícios políticos que podem extrair dela. Tratam os artistas como se estivessem lhes fazendo um favor. Até a funcionária do teatro acha estranho sua presença lá. A verdade é que estão todos falidos. Se pensarmos que somos 0,23% do orçamento dá para imaginar a importância que a Cultura tem para essa gente. Então mesmo os que querem fazer alguma coisa ficam lá amarrados a uma máquina falida e miserável. É triste de ver. Essa gente deprimir. E a maior parte dos financiamentos, prêmios e patrocínios compram o silencio da classe artística com uma quantia mínima, mas não dignificam nem valoram a importância que deveria ter a arte para um povo tão espiritualmente miserável.
LF – Se você fosse convidado a assumir a Ministério da Cultura. Você aceitaria? E caso aceitasse, que mudanças promoveria na política cultural do país?
EW – Antes de aceitar teria que me certificar de que a porcentagem destinada à cultura e à arte nesse país seria elevada em pelo menos dez vezes o valor de hoje. Senão eu me transformaria em mais um bonequinho engravatado que fica indo a jantares, encontros, protocolos, tendo que aprender diariamente a dizer não para tudo e todos que queiram realmente fazer algo de útil por esse país. E em pouco tempo me transformaria numa caricatura de mim mesmo, como vem acontecendo nos últimos anos. Não há política se não há verba.
LF – Em quase todos os países do Primeiro Mundo, um bom ator de teatro pode viver dignamente de seu trabalho no teatro. Aqui, no entanto, é obrigado a fazer televisão, comerciais, filmes, dar aulas etc., caso não queira morrer de fome. Haveria uma forma de mudar este quadro? Ser “ator de teatro”, afinal, é um ofício ou não passa de um passatempo ocasional?
EW – Eu vivo de Teatro. Sempre vivi. Como uma formiga trabalhando sem parar, sempre patrão de mim mesmo, funcionário dos meus sonhos. E um dia tem, no outro não, então tenho que estar sempre organizando os ganhos para viver e sustentar minha família. E tenho onde cair morto. Sempre tive a casa da minha mãe para me refugiar quando a fome apertava. E não recomendo a profissão a quem não tem condições mínimas de sobrevivência, que aí ela fica cruel demais. É claro que se assim mesmo, não tendo onde cair morto, você não conseguir fazer nada na vida que te interesse mais do que Teatro, então sofra mesmo que você merece. O orçamento para a cultura é de 0,23%. Grave esse número. Você que faz. Você que pretende fazer. Você que está começando. O numero é 0,23%. É quanto eles acham que vale o seu serviço. E quando estiver trabalhando honestamente e mesmo assim faltar feijão para os seus lembre-se desse número. E por não ser nem um inteiro e sim quase um quarto de um, o artista tem de fazer mais quatro coisas ao mesmo tempo para tentar totalizar um. Um dia eu não vou poder andar na rua porque todo mundo vai querer se aproximar para dar palpite, se é melhor cortar tal cena, mexer em certa fala, tirar outro ator, porque todo mundo vai se achar um pouco diretor, todo mundo um dia já terá dirigido uma peça na escola, e se achará com direito de dar palpite. Seremos os brasileiros 150 milhões de diretores de teatro. E lá fora, torcida na porta, espectadores lotando teatros e as casas de cultura, e os centros culturais, e de lambuja os museus e galerias. Um dia vão se formar filas e mais filas para comprar ingresso, brotarão acalororadas discussões sobre Shakespeare, Tcheckov, Ibsen, se Marilia é melhor que Fernanda, se Bibi rouca vai poder estar em cena. Um dia todo aluno fará, desde que entra na escola, sua própria avaliação, depois dará notas a si mesmo, e mais adiante se diplomará e atestará sua capacidade para exercer a profissão que escolheu. Só ele pode e poderá dizer se já sabe a matéria, se aprendeu a lição, se está apto a passar de ano, se formar e exercer tal serviço. Um dia se instalará a lei de que todo servidor público será obrigado a tratar seus filhos e parentes em hospitais públicos e colocá-los obrigatoriamente para estudar em escolas do governo. E sonhos realizados, sonho que hei de vencer mesmo sendo honesto.
LF – Quais seriam os requisitos básicos que uma pessoa deve possuir para um dia chegar a ser um bom profissional do palco?
EW – Primeiramente, talento. Que isso existe mesmo. E facilita. Que já que vai ralar melhor ralar naquilo que leva jeito. E gostar de se exibir. E ter muito medo de não ser amado. E subir no palco e se sentir em casa. Confortável. E quando sua mãe disser pela milésima vez: meu filho, pare de fazer drama, saiba que existe um lugar só para isso e vá para lá. Depois gostar da instabilidade. Não se importar com ela. Achar graça disso. E ter curiosidade para sempre se sentir jovem. E capacidade de distanciamento, de ser observador do entorno e de si mesmo. E gostar de estudar sempre, que o teatro evolui muito rápido e você não pode ficar para trás. E fazer muita aula, pra adquirir muita técnica vocal, corporal, e muita rodagem cênica, sempre com o melhor profissional de cada área. O ator tem que estar em cena. Fora de cena ninguém é ator. Ator no bar é à toa. E se manter espontâneo. E acima de tudo saber separar o seu ser pessoa do seu ser cênico. E não fazer nada do que eu digo e não seguir nada do que eu faço, e esquecer imediatamente tudo que foi dito acima. E amar.
LF – Você raramente atua nos espetáculos que dirige. É difícil exercer ao mesmo tempo as duas funções ou você não está com “essa bola toda” como ator?
EW – Acho dificílimo exercer as duas coisas ao mesmo tempo. E tenho uma inveja danada de quem consegue. Eu não consigo. Toda vez que fiz isso adoeci. Deu “tilt”. São lugares muito diferentes, olhares muito díspares, como se olhasse para fora e para dentro ao mesmo tempo, não dá, acaba priorizando um, e eu que sou muito perfeccionista e obsessivo fico devedor de mim mesmo, e quando dou por mim já estou um nó que só.
LF – Domingos Oliveira sustenta que, no fundo, todo diretor encena espetáculos para agradar aos amigos. É isso mesmo?
EW – Eu amo o Domingos. Um autor inegável. Meu melhor amigo. Deve ter razão. Que ele sempre tem razão, mas no meu caso não funciona assim. Não mesmo. Eu faço para “um outro”. Para um espectador que imagino ser muito inteligente, muito sensível, muito perspicaz, tenha pouquíssima paciência, uma capacidade elevada de observação, odeie teatro, e para quem tenho que me desdobrar para tirar da posição “deitado com os pés em cima da cadeira da frente” e interessá-lo a ponto de acabar o espetáculo de pé com ânsia de subir no palco. Eu chego lá!
LF – E para terminar: corre uma lenda de que você, quando ainda era bem jovem e tinha a cabeça ornamentada por longas e onduladas melenas, quando chegava na praia de Ipanema esta literalmente “parava”. Se isto não é lenda e sim um fato, pode-se saber por quê a dita praia “parava”?
EW – Bem...
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O jornal Folha Zona Sul é uma publicação mensal, gratuita, e pode ser encontrado em livrarias como Travessa e Letras & Expressões, em faculdades e escolas de teatro. No Folha venho publicando uma média de quatro críticas por edição. (LF)
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