O drama e a sociedade
Martin Esslin
Muita coisa tem sido escrita nas últimas décadas a respeito de arte politicamente engajada e especialmente a respeito de teatro político, do drama como instrumento de mudanças sociais e políticas. E não pode haver dúvida de que o teatro - e o drama em sua conotação mais ampla, que se estende ao cinema e aos veículos eletrônicos de comunicação de massa - é uma poderosa arma política.
O uso que se faz do teatro nas sociedades totalitárias de todos os tipos é um fenômeno largamente notado e debatido em nosso tempo e, efetivamente, a relutância verificada no passado, e durante longo período, do governo britânico em subsidiar algo que se assemelhasse a um Teatro Nacional foi freqüentemente justificado com o argumento de que se o governo, a qualquer momento dado, estivesse pagando as contas, haveria o perigo de o drama vir a ser censurado, influenciado ou usado como instrumento de propaganda da linha política do partido que estivesse no poder.
A criação de uma entidade como o Conselho Das Artes na Grã-Bretanha, que serve como uma espécie de elo de ligação entre o governo e os teatros, teve sempre o objetivo de evitar exatamente esse tipo de perigo.
No entanto, estou convencido de que o poder do drama como instrumento de propaganda política direta é superestimado. Podemos dizer isto em outras palavras afirmando que todos aqueles que procuram um drama politicamente engajado para apoiar suas próprias causas superestimam o efeito de propaganda a curto prazo do teatro.
Por quê? Por causa da natureza peculiar do drama como instrumento de conhecimento, percepção, reflexão e compreensão da sociedade, de sua concretividade e do fato de o drama jamais chegar a fazer afirmações ostensivas, pelo fato de ser sempre, por sua própria natureza, uma experiência que traz em si mesma um mecanismo próprio de controle, suas próprias verificações.
Permitam-me explicar o que estou querendo dizer, delineando um caso hipotético. Durante o debate a respeito de algum problema fundamental, qual seja a abolição da pena de morte, um dramaturgo pode querer escrever uma obra forte contra o enforcamento. Ele poderá então criar uma história a respeito de um assassinato, na qual a vítima é tão culpada quanto o assassino: vamos admitir que uma pessoa que esteja sendo chantageada tenha matado o indivíduo que a atormenta em um momento de descontrole emocional.
O dramaturgo passará então a mostrar a agonia do condenado durante e após o julgamento etc. Ele ficará tentado, a fim de alcançar seu objetivo perfeitamente louvável, a fazer o caso pesar ao máximo contra a pena de morte e a favor do condenado. Se assim ele fizer, os que apóiam a pena de morte passarão por vilões horrendos, sedentos de punição e vingança.
Porém, ao ceder a essa tentação, o efeito alcançado pela peça que o autor escrever será muito diverso daquele que pretendia, já que seus personagens excessivamente malévolos parecerão falsos quando apresentados no palco, e a platéia não ficará persuadida da validade de sua argumentação.
É claro que se o dramaturgo em questão for realmente bom, ele não cederá à tentação; não será capaz de ceder a ela simplesmente porque um bom autor dramático ao escrever uma peça tem de vivenciar todos os sentimentos de cada um de seus personagens por dentro, por mais que desaprove suas posições e comportamento - como podemos ver no Ricardo III, de Shakespeare.
Desse modo, ele será forçado a mostrar que o juiz que baixa a sentença também sofre toda espécie de agonia em sua mente, será obrigado a presentar argumento em favor da punição de seu protagonista de maneira tão isenta e consistente quanto o argumento contra essa punição. É possível que seja forçado a nos mostrar o sofrimento da família da vítima do assassinato, as conseqüências que a não punição de um assassino poderá ter sobre assassinos potenciais, e assim por diante.
Se ele for um bom dramaturgo, ele ainda assim conseguirá apresentar sua posição contra a pena capital; porém não lhe será possível impedir que ao menos alguns membros da platéia vejam igualmente o reverso da medalha. Em última análise, o efeito irá depender não tanto da intenção manifesta do autor quanto da qualidade da peça como drama.
Se a peça for aceita pelo consenso do público como uma retratação convincente da situação, que sempre terá dois lados pelos quais poderá ser encarada, ela poderá ter um efeito profundo, porém a longo prazo, por permanecer na mente dos espectadores e gradativamente levá-los a compreender a complexidade da situação retratada. E tal efeito a longo prazo poderá ser bastante diverso do desejado em termos imediatos.
Não pode haver muita dúvida, por exemplo, de que ao escrever O mercador de Veneza, Shakespeare desejava que o personagem Shylock fosse considerado um usuário odioso, detestável. Mas pelo fato de Shakespeare ter sido o grande dramaturgo que foi, ele conseguiu colocar-se imaginativamente na mente do avarento judeu e apresentar suas motivações: por isso ele fez Shylock sofrer por causa do ódio e da injustiça com que eram tratados os judeus, dando-lhe algumas falas magníficas que nos tornam conscientes dessas motivações.
Como resultado disso, muitos espetáculos contemporâneos da peça provocam tanta simpatia para com a posição de Shylock quanto revolta contra a sua avareza. O que pode ter começado como propaganda anti-semita transformou-se em fonte de simpatia em relação a uma minoria racial. Tomemos outra peça de Shakespeare, Noite de reis.
O personagem de Malvolio é claramente concebido como um ataque à estreiteza dos pontos de vista e à hipocrisia dos puritanos. Mas quando chega a hora, o sofrimento do personagem - cuja desmoralização supostamente nos deveria alegrar - é concreto, convincente e comoventemente sentido por Malvolio (e claramente também pela imaginação do autor).
Conseqüentemente, em muitas apresentações dessa peça, tenho sentido grande pena e até mesmo considerável simpatia por aquela pobre e frustrada vítima de uma brincadeira de mau gosto, à qual Malvolio é submetido por pessoas arrogantes que julgam que por lhe serem socialmente superiores tinham o direito de fazer um inferior passar por qualquer tipo de indignidade que lhes aprouvesse, com o único intuito de dar boas gargalhadas.
Quanto mais completamente um dramaturgo imagina uma situação e os personagens que a vivem, mais perto a peça chegará da complexidade e ambivalência da vida real. Isso não quer dizer que uma peça, seja ela ou não ostensivamente política, não terá efeitos políticos. Na verdade, autores como Ibsen e Shaw fizeram grandes contribuições para o advento de mudanças sociais e por isso mesmo, em última instância, políticas.
Ibsen foi uma influência importantíssima na abertura dos debates a respeito da posição da mulher na sociedade e fez, ao que me parece, uma contribuição determinante para as mudanças que se iniciaraqm com o sufrágio feminino e que ainda continuam a processar-se hoje em dia com o rótulo de movimento de libertação da mulher.
Nora, em A casa de boneca, iniciou o debate sobre a posição da mulher no casamento vitoriano; a Sra. Alving, em Espectros, chamou a atenção para a diversidade de critérios de moralidade para homens e mulheres; e Hedda Gabler, em última análise, constitui um apelo no sentido de se permitir às mulheres desenvolverem sua criatividade.
A apresentação brilhante e divertida que Shaw faz de seus pontos de vista socialistas contribuiu consideravelmente para a ascensão de um pensamento de esquerda na Grã-Bretanha e em outros países, quer tratase ele de problemas sociais específicos como o dos pardieiros de Casas de viúvos, quer da prostituição em A profissão da senhora Warren, quer de idéias políticas em geral, como em Homem e superhomem.
No entanto, ao examinarmos tanto as peças de Ibsen quanto as de Shaw, notaremos quão surpreendentemente isentas - apesar de suas intenções políticas - elas são na apresentação de sua problemática: quantas vezes, em Major Bárbara, os argumentos em favor do mundo dos negócios são apresentados de maneira tão forte e atraente quanto os que o são contra ele; ou, até mesmo em Santa Joana, como nos surpreende a inteligência com que é defendido o ponto de vista da acusação durante o julgamento de Joana.
Bertolt Brecht, um dos dramaturgos de nosso tempo mais profunda e apaixonadamente engajados politicamente, sempre se recusou a tornar sua mensagem excessivamente explícita porque sabia, tanto instintiva quanto conscientemente, que o que importa é a proposição do problema ser feita de modo a compelir a platéia a pensar por si mesma, e não tentar enfiar-lhe alguma espécie de mensagem quase que a marteladas dentro da cabeça.
Em seu Galileu, a argumentação da Igreja Católica Romana em favor do cerceamento da pesquisa científica livre (posição que Brecht, pessoalmente, não só rejeitava como também abominava) é apresentada com tremenda força, inteligência e persuasão, simplesmente porque de outro modo a defesa da pesquisa científica livre teria sido enfraquecida porque pareceria menos inteligente, menos convincente do que realmente é.
Quando estava ensaiando a peça na Alemanha Oriental, pouco antes de sua morte, Brecht argumentou com tamanha paixão para conseguir com que seus atores propusessem corretamente o ponto de vista da Igreja com total e absoluta convicção, que repentinamente ele parou, deu um sorriso e comentou: "Parece que eu sou a única pessoa neste país que ainda argumenta em favor do Papa".
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Texto extraído - e aqui reduzido - do livro Uma anatomia do drama, Zahar Editores, tradução de Barbara Heliodora. O livro foi lançado no Brasil em 1978, tendo sido escrito em 1976, e constitiu leitura obrigatória para os amantes do teatro.
quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011
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