terça-feira, 16 de julho de 2013

O Trágico na Vida de Kleist
          
Manuela de Sousa Marques

          Subordinar a vida à lógica configura para o homem um destino trágico ou cômico. Kleist, criador de destinos trágicos em forma dramática ou novelística, foi ele próprio o herói trágico da sua existência e o trágico expoente da incomensurabilidade entre a existência e a razão. Tal incomensurabilidade, porém, só é trágica quando se ignora e se pretende tornar comensuráveis os dois termos qualitativamente diversos. A tragédia não reside, todavia, em tal irredutibilidade, mas no esforço em vão expendido para vencer uma situação inelutável, quando do bom êxito desse esforço dependeria a integridade de um destino humano, e ainda quando, pondo em jogo a vida do homem, ou dos valores que lhe dão sentido, esse esforço é frustrado e subvertido, aniquilando para a existência quem nele apostou e perdeu.
          
          O trágico não nos é dado por uma determinação meramente reflexiva da essencial inadequação entre a razão e a existência; no domínio do espírito não há tragédia, há ironia perante a verificação dos limites do pensamento, e se a alma se não comprometer arriscando em entrega afetiva o seu máximo valor não se penetra no domínio do trágico. Não há tragédia sem frustração de um destino com toda a radicalidade emocional que o destino implica. Contudo, nem sempre a frustração de um destino é tragédia. Qual será então o segundo momento que converte a frustração em tragédia? É o momento de transcensão do destino individual para o genericamente humano. Surge a tragédia quando no triste e aniquilante caso individual se descobre o trágico signo da humanidade.
          
          Em Kleist, como dissemos, o trágico revela-se na incomensurabilidade entre a razão e a existência. O poeta do Michael Kohlhaas pretendeu viver segundo princípios e entusiasmou-se por ideias. Jogou a alma na Vernunft e perdeu. Kleist é um iluminista, embora nas histórias da literatura se lhe conceda, ao lado de Hölderlin, um lugar entre o classicismo e o romantismo. Um dos lugares na classificação que mostra bem a pobreza e a dificuldade das classificações. Se, porém, admitirmos as classificações não como rubrica de movimentos ideológicos em determinada época, mas como sinal de determinados valores, independente da cronologia epocal, Kleist deveria ser situado entre os pré-românticos. O pré-romantismo é ainda um produto iluminista, é o período de crise em que o iluminismo revela os limites e insuficiências na interpretação do homem e o momento em que o primado da razão se vê ameaçado na sua clara facilidade pelas solicitações obscuras e irreprimíveis da emoção.
          
          Kleist tem uma formação iluminista e crê na razão, na Vernunft, com todo o fogo do seu coração apaixonado. Ela é o seu supremo amor e consolação. Por isso mesmo é terrível a decepção que sofre quando a esperança, fundada na razão para organizar com dignidade humana a sua existência, fraqueja e lhe nega auxílio. Kleist é um atraiçoado da razão, e sofre porque lhe exigiu mais do que ela lhe poderia dar: a compreensão absoluta do mundo e da vida. Pretendia convencer o mundo e a vida em nome da razão, mas não se queria deixar convencer nem pelo mundo nem pela vida, e desta forma encontrou gigantescas resistências na impassível ordem da natureza, sempre vitoriosa e sempre antagônica à ordem da razão, da sua razão pelo menos. 

          Esta burla-o na convicção de supremacia; e quando ele, finalmente, o reconhece, retira-lhe a confiança e nessa hora perde a crença no sentido da existência. Só pode ter esperança agora no suicídio, na morte, na passagem para o Além e, coerente com a sua nova esperança, suicida-se aos 35 anos, junto do Wannsee, nos arredores de Berlim, com uma amiga e companheira de infortúnio, após ter vivido na véspera, em antecipação da morte, o dia de maior calma e plenitude da sua vida.
          
          O seu fim é conseqüência dos princípios de ordem racional a que se manteve fiel, não obstante a derrocada das suas esperançosas promessas. Nunca se deixou viver, sempre desejou que a razão lhe talhasse o destino. Kleist tentou tudo, exceto libertar-se dos princípios que lhe invalidavam as tentativas. Depois de julgar possível caminhar livre, feliz e moralmente pela vida, afinal tropeça e esbarra dolorosamente em becos sem saída, desespera-se e revolta-se. Nunca ironicamente reconhece que ao homem nada aproveita gritar e queixar-se que Deus o traiu, nem tampouco pôde aceitar resignadamente o trágico da condição humana que leva o homem, apesar da inutilidade do clamor, a insurgir-se e a debater-se em revolta contra o seu signo de irremediável imperfeição. Mas Kleist não dispunha de ironia, nem era filósofo.
          
          Todos os caminhos e veredas da sua inquieta existência mostram, com uma lógica arrepiante e quase inumana, as catástrofes resultantes da aliança instável entre a vida e o espírito. Somos persuasivamente informados pela sua correspondência sobre o primado racional e consequente inflexibilidade lógica que lhe informa a existência e resuma das páginas da sua obra, como Staiger tão subtilmente comprova na análise sintática de Das Bettelweib von Locarno (Staiger, Emil - Heinrich von Kleist, „Das Bettelweib von Locarno“ Zum Problem des dramatischen Stils,Deutsche Vierteljahresschrift 20, 1942). Através da obra vemos Kleist debater-se nas sucessivas e precárias soluções que, segundo o programa imposto pela razão, dará à sua vida nos diversos pactos que sucessivamente pretendeu firmar.
          
          A primeira e suprema das suas ambiciosas exigências, aquela que inicia o longo trilho das decepções e renovadas postulações, é a revelação da verdade. A sua missão no mundo, pensa quando ainda adolescente, consiste no estabelecimento de condições e deveres que tornam o homem verdadeiramente homem. A verdade é a primeira condição da existência. Para orientar a vida, para saber agir e reagir, é preciso possuir a segurança clarividente da verdade. Só a razão pode mostrar qual é o verdadeiro Ziel – a finalidade do homem nas relações consigo e com os outros, na amizade, no amor, na vida privada e na vida pública, em suma, no comportamento segundo uma norma de absoluta exatidão que a verdade exige da moral.
          
          Ainda muito jovem, durante o serviço militar, e devido a imposições familiares e sociais, Kleist se atormenta por não saber como proceder com os superiores e inferiores hierárquicos; a disciplina militar prescreve-lhe, por vezes, atos que repugnam à sua sensibilidade e que, realizados em outros meios, seriam considerados condenáveis. E ao homem em permanente reflexão e problematização que é Kleist, logo surge com dolorosa agudeza esta questão: «deverei comportar-me como homem ou como soldado?» Onde está a verdade única e soberana? 

           Para Kleist a verdade, tal como ele na sua inquietação a sonha e procura, deve ser única e, portanto, una e anuladora de todos os possíveis dilemas. A razão deve claramente decidir o que é o bem e o que é o mal. Os primeiros anseios de iluminação pela verdade surgem-lhe prementemente no domínio da moral; as primeiras dificuldades com que se debate provêm das relações entre os homens.
          
          A sua fé racionalista promete-lhe evidente esclarecimento da situação de homem e de cidadão, torna-lhe imprescindível o conhecimento de direitos e deveres, o que é tão pouco fácil porque não ignora os que deverá ter para consigo próprio e ainda porque, com a sua obsessão iluminista e iluminante, só admite dignidade humana aos atos de que conhece o porquê, – porém ainda insuficientemente iluminado, não sabia aceitar que o porquê de muitos atos consistia em não terem porquê.
           
          Como o serviço militar em nada contribuía para a resolução destas dificuldades e, pelo contrário, lhe aumentava as inquietações, consegue a demissão, apesar dos protestos dos amigos e da família, e liberta-se para se entregar ao estudo. Dedica-se com entusiasmo ao cultivo das matemáticas, das ciências da natureza e da filosofia. Mas ainda não encontra o que procura. Reconhece que a matemática só lhe permite abstrações, que as ciências naturais só lhe revelam a superfície das coisas, escondendo a profundidade do homem. Nada lhe dá a verdade que almeja, a verdade ética, a verdade absoluta na ação, sem a qual a vida, para o ser dotado de razão que é o homem, não teria sentido nem elevação, isto é, para Kleist, dignidade racional. E afirma:  «Enquanto o homem não é capaz de se propor um plano de vida, está e continua em menoridade, quer como criança sob a tutela dos pais, quer como adulto sob a tutela do destino».
          
          Não é uma equação que resolve o destino de um homem, a ação e suas consequências não são calculáveis como uma raiz quadrada. E o que a matemática lhe não dá, também as outras ciências lhe negam. Classificar e rubricar, analisar e calcular, não o ajuda a descobrir a alma no homem nem a desvendar a verdade em dimensão humana. Repugna-lhe a unilateralidade da ciência a que se refere em tom enfastiado ou satírico. Nenhuma ciência lhe parece digna de dedicação exclusiva, para nenhuma se sente especialmente atraído: nem para as ciências da natureza, nem para as ciências do espírito. Apesar de ter seguido durante algum tempo o curso de Direito, não será também a jurisprudência que o prenderá como profissão.

          Kleist, depois de abandonar a carreira militar, não consegue, apesar de várias tentativas, decidir-se por nenhuma profissão. Não escolhe, não opta, com receio de se enganar ou trair a vocação; a reflexão ensinou-lhe que é impossível saber, neste domínio, quando se evita o erro. Possibilidade de erro é permanente, mas isso foi o que o revoltado Kleist jamais quis ou pôde admitir. E erro haveria sempre no seu caso, quando a voz da alma, que era vocação, fosse forçada a confluir e a diluir-se na voz da razão. Vida como irracionalidade, caos, aventura e Schicksal, no mais fundo e misterioso da palavra, é o que Kleist não pode admitir, e daí a dor da sua revolta impotente contra o Criador. 

           Há ainda uma razão decisiva que o leva a desistir de exercer quaisquer funções públicas como servidor do Estado. É talvez o único momento em que a reflexão, ao mesmo tempo que é entrave, o ajuda a reconhecer claramente a necessidade de se afastar desse caminho. Diz em carta à noiva, no estilo dialogado e tenso tão revelador do seu dramatismo: 

 «Não quero aceitar nenhum cargo público. Porque razão o não quero? – Oh! quantas razões me vêm ao espírito! Não posso compartilhar de interesses que eu, com a minha razão, não possa examinar. Sou obrigado a fazer o que o Estado me exige, sem todavia poder investigar se é bom o que de mim se exige. Para a realização de fins desconhecidos tenho que ser mero instrumento – não é possível. Empenharia o meu orgulho em fazer valer os ditames da minha razão contra a vontade dos meus superiores – não, Guilhermina, não é possível, não nasci para funcionário público».

          Encontramos assim o mesmo problema que o atormentava quando servia no exército. O serviço para ele não era compatível com os ditames da razão e como esta era, segundo julgava, única dispensadora da verdade absoluta no conhecimento e na ação – só a ela queria servir.
          
          Severo golpe atingiu contudo a confiança na mentora Vernunft, por ele interpretada como Verstand, profundo e duro golpe. E foi a obra de Kant que o vibrou. A leitura da Crítica da Razão Pura desvendou-lhe que o entendimento não tem acesso à verdade absoluta. O entendimento é comparável a uns óculos coloridos que, forçando-nos a olhar através, nos deixam para sempre na ignorância da verdadeira cor das coisas. Só nos dão o que parece, mas escondem-nos o que é: «das Ding an sich». 

           Deve notar-se que Kleist nunca exigiu da razão que lhe desvendasse os segredos do Além, o mistério da morte; mas na função de guia telúrico surpreende-se, espanta-se, e sofre com o seu fracasso, como criança ressentida e atônita com injusto castigo. São exigências de Bem e de Verdade que a razão acorda e paradoxalmente não pode satisfazer.
          
          Como pode o homem organizar digna e plenamente a existência, se o Bem tem outra face que é o Mal, e a Verdade outra face que é o Erro? Se uma ação julgada má pode ter repercussões boas e vice-versa, se o Bem varia ao sabor das latitudes, se não há uma moral absoluta, como pode o homem comportar-se como ser pensante e racional? 

“Na verdade, ponderando que precisamos de uma vida inteira para aprender como deveríamos viver, que nem mesmo na morte pressentimos o que o céu pretende de nós, que ninguém conhece a finalidade da sua existência nem do seu destino, que a razão humana não é suficiente para se compreender a si própria, nem à alma, nem à vida, nem às coisas em redor, que após milênios ainda se duvida se há uma justiça – – pergunta-se, pode Deus chamar tais seres à responsabilidade? Não se diga que uma voz no íntimo nos confia secreta mas claramente o que é justo. A mesma voz que exorta o cristão a perdoar ao inimigo diz ao Zelandês para o assar e comer com devoção. E, de resto, o que é, em consequência de ação, fazer mal? O que é o mal, o mal absoluto?».
          
          Contudo, não foi apenas o problema gnosiológico e ético que o torturaram e lhe aniquilaram o sentido da existência, embora estejam estes, sem dúvida, na origem da configuração da sua vida e dos conflitos das suas obras. Kleist não capitula logo após o golpe de Kant. Nele há ainda fogo, taças que não provou, energias que não usou. A sua inimiga razão ainda aqui foi tão hostil ao homem como favorável ao poeta: não o poupou aos tormentos de um inquieto itinerário de decepção em decepção até ao suicídio, não lhe segredou que todos os cálices estavam envenenados pelo seu excessivo império sobre um corpo onde afetos e paixões ardiam em labareda. E temos de agradecer a esses tormentos porque deles nasceu, como de ostra, a pérola da sua obra. A razão mostrara-lhe somente novos caminhos. ainda não trilhados: se a via do pensamento o não podia satisfazer, havia ainda a tentar a via da ação:  

             «Começo a crer que o homem existe para algo mais do que para pensar. Sinto que só o trabalho me poderá dar maior tranquilidade». 

           Mas ao chegar a esta conclusão, que marca o abandono da especulação pura, científica ou filosófica, surge o espinho de sempre, que mais uma vez o impedirá de escolher uma carreira:  

          «O que me preocupa é a impossibilidade de me propor um fito e o receio de falhar a vocação e estragar toda a minha vida se precipitadamente o escolher mal».
          
           A partir desse momento assistimos ao claudicar sucessivo dos planos e ideais a que se propõe. É o fracasso no amor: a ruptura com a noiva Guilhermina, que ele tão metódica e cuidadosamente preparara ilustrando-a, instruindo-a, aconselhando-lhe boas leituras (Rousseau, Schiller), corrigindo-lhe exercícios escritos, passando-lhe temas de composição e enviando-lhe questionários com problemas de ordem moral e outros tendentes ao desenvolvimento da imaginação. O amor de que pretende tornar-se digno com tanta seriedade e tão fervorosa e enternecedora aplicação, até esse mesmo o desilude. 

          Guilhermina não tem coragem para romper com tudo quanto seria necessário para acompanhar Kleist no seu novo plano de vida: arrendar uma quinta na Suíça, tornar-se agricultor e viver idilicamente, como Rousseau preconizava e o seu contemporâneo Pestalozzi realizava, «ein Haus, eine Frau und Freiheit». A paz que esperava encontrar, essa vida simples em contacto com a terra, foi-lhe negada, assim como, pela recusa da noiva, lhe fora negada a felicidade. Da estadia em Thun, terminada pela doença, só beneficiou Die Familie Schroffenstein e o projecto de Der Zerbrochene Krug. Antes do projeto idílico e do desastre sentimental, já Kleist descobrira ou pressentira a sua vocação de poeta.
            
          Foi para ele mais uma oportunidade de tortura, pois Kleist não encontrara na atividade criadora, na realização poética, o sentido para a vida, ou, pelo menos, consolação e defesa. Não. Kleist começa por destruir pelo raciocínio o valor da produção literária. Envenena-se primeiramente com reflexões acerca da problematicidade da glória poética; tortura-se com feroz exigência e severidade para com as suas obras. A glória é incerta e lábil; o juízo consagrador da posteridade não se pode racionalmente e a priori garantir. E sem a razão nada se pode garantir, pensa Kleist, apesar das desilusões que ela lhe trouxe. 

          Da crítica e insatisfação perante as próprias obras temos um exemplo no Robert Guiskard, tantas vezes desmantelado, remodelado e, por fim, não concluído. De resto, no presente, a sua obra não é compreendida nem bem recebida. A glória futura se lhe afigura tanto mais incerta quanto, na sua época, poucos são a reconhecê-la entre o público e os grandes do reino da Poesia.
            
           À exceção de Wieland, que com firmeza de juízo crítico surpreendente o considera o grande dramaturgo que a Alemanha não possuía e, apesar de Schiller e Goethe, ainda esperava, conhece-se o fiasco da representação de Der Zerbrochene Krug em Weimar, sob a direção e por culpa de Goethe, o poeta de quem ele se aproximara «auf den Knien meines Herzens» e que tão impermeável foi à compreensão do gênio de Kleist devido à sua cegueira para o trágico. 

           Sabe-se que a censura não permitiu, por motivos políticos, a representação de Der Prinz von Homburg e que, com exceção da tentativa de Weimar e de Das Kätchen von Heilbronn, nenhuma outra obra foi representada durante a sua vida, na Alemanha convulsa e agitada pela guerra da libertação e sem ambiente propício para a inquietação kleistiana. A previsão, aliás enganosa, da ruína da pátria apaixonadamente amada e servida, foi outro desgosto e outra decepção para Kleist. Porém, como poeta, não foi só a descrença raciocinada no renome e fama que o decepcionou.
          
          Kleist não era modesto e sentia-se superior àqueles pobres de alma e espírito – o público e os leitores – surpreendendo-se, por vezes com azedume, que o poeta pudesse entregar a «einem so rohen Haufen, wie die Menschen sind» (carta 53) o poema do seu amor – «das Lied seiner Liebe». Como prova da insatisfação do artista pela obra criada, já citamos o Robert Guiskard. Essa insatisfação, vizinha do desespero, nem as palavras dos amigos podiam vencer. A história da luta com o tema do Robert Guiskard atesta ambição e severidade: por várias vezes queima e destrói as cenas já escritas na ânsia de fazer convergir a realização com o ideal imaginado. O fragmento que nos deixou não tem o mesmo significado de outras obras fragmentárias dos românticos. O que para estes era prova de redentora ironia, era para Kleist sinal de desespero perante a disparidade do idealizado e do realizado. Kleist, como os verdadeiros trágicos, é incapaz de ironia e como tal de investidura romântica.
          
          Só no fim da sua curta vida consegue Kleist algo que, como momento irônico, parece contradizer esta afirmação e estar em desacordo com os dados essenciais da sua existência, que Staiger condensou no termo Consequenz. É esse o momento em que a razão juvenil e inconformada com os seus limites cede à razão amadurecida que se resigna à condição deHalbvernunft, de semi-razão. 

            No ensaio Über das Marionettentheater reconhece-se a superioridade do fantoche e de Deus sobre o ser hemivalente que é o homem, o ser medial e imperfeito, nem anjo nem bicho, neste caso nem fantoche sem espírito nem espírito absoluto ou Deus, nem a absoluta ignorância nem a omnisciência absoluta, que em linhas convergentes se tocam no mesmo valor supremo e estético que é a graça: Anmut

          Kleist só conhece um único e impossível remédio para o mal da condição humana, para fugir ao signo da terrível medialidade (Halbheit) que o homem desde a tentação de Eva chamou sobre si e seus descendentes: a maçã do conhecimento foi um logro – pois o homem não se tornou igual aos deuses, como a serpente prometera: eritis sicut deii. Só foi dado ao homem metade do conhecimento dos deuses, portanto só a repetição do pecado original lhe poderia restituir a outra metade de que carece para o completar e ser igual aos deuses.
           
          O mais interessante nesta utópica salvação através de um segundo pecado évico é ainda, talvez, o predomínio analítico e raciocinante da forma de pensamento de Kleist. Multiplicando por dois, resolve Kleist o problema trágico da condição humana, a superação do ni ange ni bête de Pascal. Depois de tudo isto, será natural e consequente pensar que também a morte, única via sobre a qual a razão lhe não permitia especulação ou dúvida, se lhe afigurava igualmente decepcionante. Parece que não, todavia. 

          Sabemos, pelas cartas deixadas a sua irmã Ulrike e a Marie von Kleist (cartas 223 a 228), que, após extremos cuidados e minúcias nas últimas disposições, sentiu na véspera do suicídio momentos de êxtase e plenitude, de pureza e perfeição, que nenhum ideal de vida antes lhe concedera.
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Edição original na Revista da Faculdade de Letras de Lisboa, tomo XVII, 2ª série, n. 1-4, 1951, revisto pela Autora em 2008.

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