segunda-feira, 27 de abril de 2009

Pobre comédia

Ronald Fucs


É paradoxal que a comédia seja frequentemente classificada de o mais difícil dos gêneros teatrais e, ao mesmo tempo, sistematicamente desprezada pelos críticos e mesmo por gente de teatro. O desprezo raramente é explícito, porque ninguém gosta de admitir que alimenta preconceitos de qualquer natureza (e este é um caso inequívoco de opinião preconcebida); mas é só perguntar a qualquer amante de Shakespeare qual é a maior peça do autor inglês, e a resposta jamais será o título de uma de suas comédias.
Do mesmo modo, a grandeza de Molière não é posta em dúvida, mas quando se trata de relacionar os mestres da arte dramática, ninguém põe o francês em primeiro lugar. Pode-se até enunciar a seguinte regra: por melhor que seja a comédia de algum autor, ela nunca será considerada a melhor de suas peças, a menos que ele só tenha escrito comédias; e nesse caso, nunca será considerado o melhor dos autores (a não ser, possivelmente, por si próprio). E o mesmo se pode dizer em relação a espetáculos e a interpretações. Mais que paradoxal, isto é com frequência injusto para com autores, diretores e atores de comédias.

Singularidade

Mas, em vez de criticar, tentemos compreender. O ponto de partida para o entendimento deste paradoxo está no fato de que a comédia tem uma singularidade: a reação da platéia é audível. Se todos gargalharam do começo ao fim do espetáculo, já se sabe que este foi um enorme sucesso; se o tempo todo persistiu o silêncio, não há dúvida do fracasso. Esse "feedback" parece constituir uma vantagem sobre os outros gêneros; mas, como veremos, pode ser também uma grande desvantagem.

Palavrão

Uma consequência direta dessa situação básica é um fenômeno comum e muito irritante: o enorme efeito que costuma ter sobre as platéias o apelo aos recursos mais pobres do humor - o palavrão, por exemplo. Quem já não foi testemunha das gargalhadas provocadas pela obscenidade mais rastaquera - se é que não gargalhou também?. Fenômeno muito semelhante é o sucesso dos "cacos", que quase sempre se caracterizam pela grosseria (sim, há "cacos" sutis; mas são muito infrequentes e não despertam mais que sorrisos).

Desânimo

Isto é particularmente desanimador para o dramaturgo que, depois de usar todo o seu poder de criação na busca do mais fino humor, acaba sendo obrigado a admitir que o ponto alto do espetáculo foi o palavrão improvisado. Pior ainda: no dia em que há o "caco", a peça, a partir daquele momento, parece ter perdido a graça: ninguém ri de mais nada. Surge então, por sinal, um problema incômodo, bem conhecido de todo diretor: o grande sucesso dos "cacos" costuma levar os atores, se não forem devidamente orientados em contrário, a repeti-los sistematicamente, incorporando-os ao texto.

Consolo

Há um consolo, sob a forma do seguinte argumento: a reação audível da platéia não é um termômetro adequado, pois não se mede em decibéis a qualidade do humor (quem chama a atenção para este aspecto logo acrescenta: igualmente, se as lágrimas constituíssem um diagnóstico justo do valor de um drama ou de uma tragédia, o crítico poderia ser substituído por um medidor de precipitação pluviométrica). Infelizmente, quem já escreveu uma comédia sabe que esse tipo de argumento não chega a ser convincente, porque a platéia só não riu satisfatoriamente no dia em que houve o "caco" - este parece ter agradado tanto que, em comparação, o resto perdeu a graça. Nos outros dias, foi boa a reação. O que torna razoável concluir que o "caco" é melhor do que a peça; e tentar salvá-la, impedindo o ator de improvisar, parece uma espécie de golpe baixo. Em prol do sucesso do espetáculo, mais lógico seria dizer: esqueça o texto, improvise o tempo todo.

Erro

Esta linha de raciocínio, evidentemente, está errada em algum lugar. Pois seu desfecho só pode ser: quanto mais palavrão, melhor. E por mais baixo que seja o gosto do público geral, ninguém vai querer assistir a uma peça anunciada assim: "Venha gargalhar com a comédia do ano! 782 palavrões em uma hora e meia de espetáculo!".

Premissa

Se a dedução é lógica e a conclusão é absurda, o erro está na premissa - nesse caso, a premissa implícita de que a comédia é um gênero, quando na realidade é um amplo conjunto de gêneros. Abrange a mais fina sátira e o mais grosseiro pastelão - coisas completamente diferentes. Nos gêneros "sérios" não se faz esta confusão: ninguém chamaria uma história policial de drama ou uma tragédia grega de espetáculo de "suspense". Mas paródia, besteirol, sátira, comédia de costumes, "nonsense", pastelão, pornochanchada - tudo isso é rotulado, de forma automática, de "comédia". E a definição é uma só: comédia é algo que faz rir (ou que tenta fazer rir).

Reflexos

Os reflexos dessa confusão verbal vão longe, e o pior deles é justamente o baixo conceito da comédia. Até dramaturos e diretores se deixam confundir, ao não perceber o essencial: os diferentes climas de comédia. A gradação vai do mais fino para o mais grosseiro (há aqui um julgamento de mérito do qual não há como escapar). E a intromissão do humor grosseiro tem sempre efeito destrutivo, ao provocar uma súbita queda do clima. Entra em ação uma espécie de lei da gravidade: para baixo, todo santo ajuda. Depois de rir do escorregão, não se ri mais do jogo de palavras sutil; depois da torta na cara ou do bêbado trocando as palavras, o diálogo espirituoso perde a graça.

Clima

O que leva à formulação de um princípio básico para autores e diretores de comédias: é fundamental determinar de saída o clima preciso que a peça deve assumir - e não se desviar dele. O humor fácil, mas de nível mais baixo, é uma tentação que é essencial evitar. E não porque a piada não vá fazer efeito - este, na realidade, seria o menor dos males - mas porque pode fazer muito efeito, e nesse caso o contraste será devastador para o restante da peça. A tentação é grande, e nela se cai com facilidade se não há a percepção do risco. Exemplo típico: num ensaio, o ator se atrapalha e troca os nomes de dois personagens; se a reação dos outros atores, e de quem mais estiver presente, é a gargalhada, por que não incorporar a confusão à peça? Se comédia é tudo que faz rir, parece não fazer sentido excluir do espetáculo o que faz rir muito. Mas o diretor que sabe que há climas distintos de comédia percebe que a fala espirituosa que veio logo a seguir mal foi notada - e corta a troca dos nomes, não a fala espirituosa, para que esta tenha condições de ser devidamente apreciada, graças à preservação do clima adequado.

Ditador

Agir assim costuma desagradar muito. O diretor passa a ser visto como um ditador arbitrário e um egocêntrico que não admite colaborações preciosas dos atores. É preciso tolerar essa má fama e ter paciência para aguardar a recompensa que virá no dia da estréia - e ainda suportar, depois, a teimosa convicção de alguns atores, de que a peça fez sucesso APESAR do corte injustificado de algumas valiosas contribuições.

Compreensão

Infelizmente, a compreensão desse estado de coisas está longe de ser generalizada. Ainda não se entende com clareza que o amante com uma peruca vermelha, falando em falsete para o marido, para fingir que é uma mulher, está completamente fora de lugar numa fina sátira - embora se perceba de imediato que é inadmissível um tiroteio com mortos e feridos numa peça intimista de Tchecov. Somente quando isso estiver perfeitamente claro é que a comédia poderá se subdividir em todos os seus gêneros, cada qual se tornando "puro" (ainda que sem ganhar um nome específico), com as fronteiras claramente delimitadas. A partir daí, pode-se esperar que a má reputação de hoje se limite às formas mais grosseiras de comédia, deixando de abranger os espécimes mais artísticos. E até, quem sabe?, que os concursos de textos teatrais acabem algum dia premiando uma comédia.
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Artigo extraído da revista Cadernos de Teatro nº 131/1992, edição já esgotada. Ronald Fucs, mais conhecido como Roninho, é dramaturgo, jornalista, tabladiano e irmão da Silvinha.

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