quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

                                       Diretor:
                                    figura decorativa ou tirano?
                                           Afinal, o que ele faz?

                                                                                                                             Domingos Oliveira


Segundo o bom Truffaut, na Noite Americana, o diretor é um homem que responde a perguntas. Realmente é impressionante a quantidade de questões que temos de responder no decurso de um ensaio. O que que faço? Que luz acende? Qual é o som? A que horas é o próximo ensaio? Será que eu tenho jeito? E mil outras coisas. Impressionante também a rapidez com que essas perguntas são feitas. Se você hesitar nas respostas, a peça não estréia. Isso faz com que um bom diretor seja um homem intuitivo, confiante em seus palpites e intuições, menos racional do que parece. Um bom diretor raramente pensa duas vezes. Confia na primeira resposta, possui uma comovente irresponsabilidade


Sem dúvida, ele é o organizador daquele caos. Para o qual deve ter um plano inicial, um projeto. Mesmo que seja o de fomentar o citado caos. Somente os anjos, disse Gaudi, conseguem construir uma catedral sem projeto.


Objetivamente, não há dúvida de que ele representa a platéia. É uma pessoa que foi eleita pelos atores e a equipe para representar essa função, sem a qual o fenômeno teatral não se cristaliza. É ao diretor que se pergunta, durante os ensaios, se está bom ou ruim, se ele gosta ou não. É à platéia que, durante os espetáculos, tacitamente se fará a mesma pergunta.


É também um provocador. Os artistas possuem segredos e valores ocultos. É preciso cutucá-los com vara curta para romper essa bolsa criativa.


É evidente que, desde a primeira leitura, um diretor deve ter uma resposta interna quanto ao texto que vai montar. Quando um diretor lê o texto que o agrada, ele um espetáculo. Durante algum tempo acreditei que todas as pessoas faziam isso ao lerem uma peça de teatro.


Depois constatei que não. Apenas as vocações de diretor possuem esse tipo de imaginação. Cuidado, porém! Pois essa resposta interna, por mais acabada e inspirada que seja, serve apenas como início.


A distância que vai entre a imaginação de um autor (convertida em texto) e um espetáculo no palco é, como sempre entre a intenção e o gesto, enorme. O embate com o real é violentíssimo. Da coerência de uma cabeça criadora (o autor), o texto é jogado sobre a mesa da primeira leitura, entre muitas cabeças criadoras (diretor, atores, equipe). Como um cristão entre as feras. O diretor é aquele que acha belo esse fenômeno. Que é capaz de harmonizá-lo. Transformar diferenças em somas. Não se trata de evitar que as feras briguem, não se trata de realizar acordos políticos. Trata-se de criar alianças em torno de um mesmo fim.


Escalar uma equipe, escolher as pessoas, eis a tarefa que demanda mais talento. Dado o texto e uma vez escolhidas as pessoas, a sorte está lançada. Se a equação humana fechar corretamente, tudo serão prazeres e facilidades. Se houver uma rachadura, nada poderá evitar o desastre. É portanto numa fase anterior ao início dos trabalhos que o destino de uma direção fica determinado. Na hora de escolher as pessoas é preciso que o diretor recolha toda sua sabedoria, reze a seus mais fiéis deuses. É preciso que ele tenha consciência de que é nesta hora que a maior parte de seu trabalho está sendo feito.


Claro que um diretor deve também saber lidar com seus atores (e equipe). Resumindo uma velha teoria: nunca fui a favor de muita conversa. Com o cenógrafo, figurinista, ainda vai. Com os atores, jamais. Ensaio é para ensaiar, não para conversar. Cuidado com a teorização. Muitos atores exigirão teorias loga na primeira leitura. Discursos imensos sobre a peça, o autor, a época, os personagens. Evite fazer esse discurso imenso, evite mesmo um mínimo discurso. Por quê? Porque a teorização é o grande recurso do qual o ator lança mão para não trabalhar.


Os atores não gostam que se fale com eles. O diálogo, de modo geral, só é produtivo quando franco. A psicologia dos atores é delicada demais, frágil demais para suportar a franqueza. Não estou propondo a mentira como método de trabalho, absolutamente. Mas tente a comunicação através de meios não-verbais. Climas, olhares, jogos, propostas de ensaio. Provoque a criatividade, não alimente discussões. Palavras são coisas perigosas, coisas de intelectual. Palavras são coisas civilizadas. E os atores são bárbaros.


Convém aqui lembrar uma função secundária do diretor. Ele é o pai dos atores. Rarissimamente você não é requisitado para esta posição espúria. Os atores expões seus problemas mais íntimos para você, exigem ser amados, têm ciúmes uns dos outros, te acompanham ao bar, isto para não falar de amores. Já disse Freud que a civilização começa com o assassinato do pai, de modo que você deve tomar todo cuidado que puder, usando para isso todos os anos de análise que tiver. Contorne esse ponto com violência, se não quiser ficar louco. Ou seja, berre rotineiramente: "Não sou pai de ninguém, aqui é tudo gente grande!". Mesmo que você esteja convencido da falsidade desta afirmação.


O diretor deve saber esperar. Não imponha suas convicções, isso cria resistências. Esperar é o segredo. Espere o dia em que os atores chegarão às mesmas conclusões a que você já chegou, faz muito tempo, mas com a certeza absoluta de que se trata de conclusões deles!


Resta comentar que é uma boa e bela profissão. Inclusive porque contém a hora de ir embora. Lembre sempre a seus atores que você está ali por pouco tempo! Que aproveitem avaramente a sua presença, posto que, alguns dias depois da estréia, você vai embora. Quando um espetáculo está em cena, todas as noites, diante do público, ele pertence aos atores. Mesmo que você, como diretor, tente o contrário. Neste momento é inevitável o sentimento do pai. Como acontece sempre, chega a hora em que os filhos crescem e vão embora.


O diretor fica numa posição bem desconfortável, diante dos atores, depois da estréia. Quando suas opiniões são confrontadas, dia a dia, com a reação do público. Ele passa a ser tratado, nos camarins, com uma certa complacência delicada, a mesma que seria devida a um intruso querido. E dificilmente consegue ser levado a sério, como nos ensaios. Por outro lado, ele próprio se pergunta até que ponto tem direito de interferir num processo tão violento quanto o que os atores enfrentam diante do público.


Antes de continuar, eu gostaria de esclarecer que tenho pelos atores o mais pleno respeito, apesar de todas as observações feitas neste livro quanto a seu tipo de comportamento. Como diretor, sei que são eles que vão estar lá em cima, sobre as tábuas. E que minha função é apenas ajudá-los a permanecer lá com a dignidade necessária. Eles entregarão, com generosidade, seu corpo e alma ao público, todas as noites. Eles viverão, todas as noites, a solidão imensa do ator. Oscar Wilde dizia que o modelo de todas as artes, como forma, é a música. Como sentimento, é a arte do ator.

--------------------------------------------
Fragmento extraído do livro "Do tamanho da vida - reflexões sobre o teatro". Coleção Documentos (Minc/INACEN)

Nenhum comentário:

Postar um comentário