terça-feira, 4 de janeiro de 2011

A professora

Enrique Buenaventura
Tradução: Angelo palomero

(Em primeiro plano uma mulher jovem sentada num banco. Não deve haver relação direta entre ela e os personagens das cenas que acontecerão à sua volta. Ela não os vê nem é vista por eles)

Professora - Estou morta. Nasci aqui neste povoado. Na casinha de barro vermelho e telhado de palha que fica na beira da estrada em frente à escola. A estrada é um rio calmo de barro no inverno e um redemoinho de poeira no verão. Na época das chuvas as sandálias ficam presas na lama. Os cavalos e as mulas ficam sujos de barro até o focinho e os chapéus dos jinetes se tingem de vermelho, salpicados pelo barro. Nos meses de sol o pó vermelho cobre todo o povoado. As sandálias carregam o pó vermelho, e os pés, as pernas e as patas dos cavalos, e o nariz resfolegante das mulas, as crinas e os arreios e os focinhos suarentos e os chapéus, tudo fica impregnado daquele pó. Nasci desse barro e desse pó vermelho e agora volto a eles. Aqui, no pequeno cemitério semeado de hortências, gerânios, lírios e pasto, e que vigia o povoado daqui de cima. É um lugar tranqüilo e perfumado. O cheiro acre do barro vermelho se mistura ao aroma doce do pasto e carregado pela brisa da tarde desce o monte e se espalha pelo povoado. Me trouxeram ao anoitecer. (Ao fundo, entra um cortejo com um caixão) Vinha Joana Passambú, minha tia.

Joana - Para quê parastes de comer?

Professora - Eu não quis comer. Não havia sentido em comer. Come-se para viver e eu não queria viver. Já não havia sentido em viver. (Pausa) Vinha Pedro Passambú, meu tio.

Pedro - Gostavas de banana-maçã e de milho assado com manteiga e sal.

Professora - Eu gostava das bananas e do milho, e mesmo assim, não quis comer. Cerrei os dentes. (Pausa) Aí está Tobias, o Torto, que há anos foi corregedor.

Tobias - Te trouxe água da fonte. A mesma que bebias quando criança em um copo feito de folhas e não quiseste beber.

Professora - Não quis beber. Apertei os lábios. Foi maldade? Que Deus me perdoe, mas cheguei a desejar que a fonte secasse. Me perguntava por que a água continuava brotando. Para quê? (Pausa) Lá estava a Velha Assunção. A parteira que me trouxe ao mundo.

Assunção - Ai, mulher! Ai, menina! Eu, que te trouxe a este mundo. Ai, menina! Por que não aceitou nada de minhas mãos, que curaram a tantos, e não puderam curar tuas feridas? E enquanto os assassinos estiverem aqui...(Os acompanhantes do cortejo olham em volta, assustados. A Velha chora em silêncio enquanto a Professora fala)

Professora - Eles têm medo. Já faz tempo que o medo chegou a este povoado e paira sobre ele como uma imensa nuvem de tempestade. Sente-se no ar o cheiro do medo. As vozes se dissolvem na saliva, amargado medo, e o povo se cala. Ontem, rasgou-se a nuvem e um raio caiu sobre nós. (O cortejo desaparece. Ouve-se um forte toque de tambor na escuridão. Quando volta a luz, no lugar onde estava o cortejo está um velho camponês ajoelhado com as mãos amarradas às costas. À sua frente um sargento da polícia)

Sargento (Examinando uma lista) - Você responde pelo nome de Peregrino Passambú? (O velho assente) Então, você é o chefe político aqui. (O velho nega)

Professora - Meu pai tinha sido corregedor por duas vezes, nomeado pelo governo. Mas entendia tão pouco de política que sequer havia notado que o governo mudara.

Sargento - Por influência política conseguiste esta terra. Certo?

Professora - Errado. Meu pai fundou este povoado. E como fundador tinha direito à sua casa e ao sítio na beira da estrada. Ele batizou o povoado. Chamou-o “A Esperança”.

Sargento - Não falas? Não dizes nada?

Professora - Meu pai falava muito pouco.

Sargento - Esta terra está muito mal dividida. Vamos dividi-la novamente. Terá donos legítimos, com título e tudo.

Professora - Quando meu pai chegou aqui era tudo mato.

Sargento - Também os cargos estão mal divididos. Tua filha é a professora da escola, não?

Professora – Não era nenhum cargo. Poucas vezes recebi o salário. Mas eu gostava de ser professora. Minha mãe foi a primeira professora do povoado. Ela me ensinou e, quando morreu, eu passei a ser professora.

Sargento – Sabe-se lá o que ensina a professora.

Professora – Ensinava a ler e a escrever. Ensinava o catecismo e o amor à pátria e à bandeira. Quando me recusei a comer e a beber pensei nas crianças. Eram poucas, é verdade, mas quem iria ensiná-las? Também pensei: para que devem aprender o catecismo? Para que aprender o amor à pátria e à bandeira? Talvez tenha pensado mal, mas foi o que pensei.

Sargento – Por quê não falas? Não é coisa minha. Não tenho nada a ver com isso. A culpa não é minha. (Grita) Vê esta lista? Aqui estão todos os caciques e os grandões do governo anterior. Há uma ordem para eliminar a todos e organizar eleições. (O Sargento e o Velho desaparecerem)

Professora – E assim foi. O colocaram contra a parede de barro atrás da casa, o Sargento ordenou e os soldados atiraram. Depois o Sargento e os soldados entraram no meu quarto e, um a um, me violentaram. Nunca mais comi nem bebi e fui morrendo aos poucos. Pouco a pouco. (Pausa) Logo vai voltar a chover e o pó vermelho se transformará em barro. A estrada será um rio calmo de barro vermelho e as sandálias e os pés voltarão a passar cobertos de barro. E os cavalos e as mulas sujas de barro até o focinho e os chapéus irão estrada acima, salpicados de barro.

FIM
Esta peça está publicada na revista Cadernos de Teatro nº 173


Nenhum comentário:

Postar um comentário