terça-feira, 11 de agosto de 2009

As três irmãs:
obra-prima de Tchecov
analisada por Harold Bloom


Entre todas as obras de Tchecov, As três irmãs é a mais difícil de ser classificada, em parte, porque carece de um gênero definido. A peça pode ser considerada tragédia, tragicomédia, comédia ou o que o leitor quiser. Howard Moss, no ensaio mais tchecoviano que existe a respeito do texto, observa que "a incapacidade de agir torna-se a ação da peça". Sempre me fascina, quando releio o ensaio de Moss, o comentário de que Tchecov (assim como Proust) jamais nos oferece o retrato de um casamento feliz. Neste particular, sempre digo a meus alunos que o casal Macbeth é o mais feliz em Shakespeare. A maior lição que Tchecov aprende de Shakespeare é fazer com que nenhum personagem se dê ao trabalho de escutar o que o outro diz, especialmente se forem amantes. Monólogos intermináveis e um solipsismo maravilhoso marcam os personagens de Tchecov, assim como os de Shakespeare. Que Tchecov é irônico fica muito claro, mas a ironia de Shakespeare, à semelhança da de Chaucer (segundo Chesterton), é grande de mais para ser percebida.

As três irmãs de Tchecov, tão familiares quanto as nossas amigas mais íntimas, chamam-se Olga, Masha e Irina. A maternal Olga jamais se torna mãe e, no entanto, representa, de modo comovente, a generosidade e a bondade, embora o nervosismo a impeça de fazer oposição à cunhada, a vitalista e napoleônica Natasha. Das irmãs, Masha é a que se assemelha a Hamlet, sempre pronta a dizer a verdade, ardente mesmo em sua reticência tchecoviana. Tchecov também aprendeu com Shakespeare a arte da omissão, e a elíptica Masha, mais uma heroína de luto pela própria vida, é o personagem mais cativante da peça. Seu amante, Vershinin, é outra autoparódia tchecoviana: culto, benigno, fraco, insignificante, de vez que não consegue suportar o terrorismo ibseniano de Masha, que atavés da verdade nos bombardeia, até sermos por ela destruídos.

Irina, menos complexa do que Masha, mesmo assim é tão assustadora quanto amável, embora seja incapaz de retribuir amor. Mais até do que Olga e Masha, Irina está convencida de que a volta a Moscou (onde as irmãs haviam sido educadas) resolveria o aperto em que as três se encontram e abriria, para elas, as portas de Eros. A Moscou de Irina, assim como a de suas irmãs, é uma ficção, e desapareceria logo na chegada. Irina e Masha, e até mesmo Olga, bem encenadas, despertam na platéia uma paixão que se torna desesperadora, porque as três irmãs jamais se arriscarão a viver as alternativas disponíveis, tampouco encontrarão forças para deixar de lado o desdém e enfrentar Natasha, a cunhada predadora. Isso tudo pode parecer uma telenovela tchecoviana, mas, através de nuanças, é elevado a um exepcional nível artístico. Uma telenovela em que as três heroínas formam um coro que lamenta a própria ignorância constitui, de certo modo, novo gênero, no qual os imitadores de Tchecov não têm conseguido rivalizar a atmosfera e o ritmo dramático do autor.

Como articular a genialidade de As três irmãs? Moss resume bem a questão: "As irmãs anseiam por realizar o oposto daquilo que logram alcançar, anseiam por se tornar o oposto daquilo que são". Pairam aqui os infindáveis enígmas de Hamlet, mas o Príncipe da Dinamarca pode invocar anjos, ainda que estes não acorram. Levando-se em conta o potencial de seu gênio, Hamlet realiza tão-somente o desastre de oito mortes, inclusive a dele próprio. Embora a catástrofe seja memorável, o desperdício da consciência mais abrangente de toda a literatura seria espantoso, não fosse o extraordinário canto fúnebre de Hamlet, a ária à eternidade. As três irmãs causam um sofrimento bastante diferente e indefinível. Todo o apreço que tenho pelo grande crítico canadense Northrop Frye (1912-1991) é incapaz de minimizar a minha insatisfação, quando, em Anatomia da Crítica (1957), ele registra:

Nos trechos de Tchecov, especialmente, no último ato de As Três Irmãs, em que os personagens, um a um, isolam-se dos outros, recolhendo-se ao interior de suas celas subjetivas, aproximamo-nos da ironia pura, com a máxima intensidade que o palco comporta.

Seja lendo o texto de As três irmãs ou assistindo à sua encenação, sou tomado de forte páthos, quando Masha grita "Precisamos viver...precisamos viver...", Irina proclama: "Vou trabalhar, vou trabalhar...", e Olga abraça as duas irmãs, concluindo a peça com as palavras: "Se nós soubéssemos, se nós soubéssemos!". As irmãs estão presas em uma situação de ironia, mas, absolutamente, não se isolam. Onde há tanto amor, inclusive nosso amor por elas, como é possível haver ironia pura?

Querida (1899), conto escrito dois anos antes de As três irmãs, narra a história de uma alma "bela e santa", Olenka, merecedora dessa descrição por parte de Tolstoi. Ela é tão infantil, e tão maternal, a um só tempo, que, quando não tem quem amar, sente-se vazia, em um estado morto-vivo. É como se não dispusesse de identidade, a não ser no amor. Tchecov a adorava, Tolstoi tinha por ela um sentimento idêntico, e o leitor não tem outra escolha. A vida, com toda a sua crueldade, reserva-lhe a morte de dois maridos, mas ela sobrevive através do filho adotivo, deixado aos seus cuidados.

Os críticos seguem Tolstoi, ao deduzir que, nesse conto, o impulso original de Tchecov é irônico, possivelmente satírico, mas que a história lhe escapa. Desprovida de pesonalidade e idéias próprias, Olenka pode ser encarada como uma versão absurda de mulher, mas tal avaliação me parece superficial. Eu mesmo conheci algumas mulheres e alguns homens, como Olenka. Talvez, todos sejamos como ela, embora a nossa sociedade não saiba lidar muito bem com "almas santas". Olenka possui mente simplória, mas não é, de maneira alguma, deficiente mental, e o modo como escolhemos ler a sua história constitui, inteiramente, um exercício de auto-avaliação. Em sua fase final de contista, Tchecov adota um perspectivismo shakespeariano: que valor tem algo, senão aquele que lhe é atribuído? Os homens de Olenka são seres absurdos, e o filho adotivo é uma criatura fraca, que contra ela transborda um ressentimento reprimido.

Como o próprio Tchecov lia esse conto? Não sabemos, e não creio que isso tenha importância. É difícil aceitar Olenka, e perigoso rejeitá-la, pois, se a desprezamos, ou mesmo se dela sentimos pena, perpetramos uma certa violência contra a alma; condenado pela tuberculose, Tchecov, aos 39 anos de idade, desistiu de censurar o próprio gênio. A pobre Olenka não representa o gênio de Tchecov e, sem dúvida, merece a condenação de Gorky, a partir de sua perspectiva revolucionária. Todavia, é Tchecov, e não Tolstoi, quem cria Olenka. Entre o advento de um e outro ser que possa ser objeto do seu amor, Olenka passa por mudanças.

O leitor pode argumentar, conforme o fazem alguns críticos, que o sentimento de Olenka é devorador, tendo consumido os esposos, enxotado um admirador, e que, com o tempo, tal sentimento provocará a perda do filho adotivo. Não consigo ler a história nesses termos, e Olenka não me parece uma Psique, aguardando a volta do Cupido. Confrontado pela imagem de Olenka, algo em Tchecov se rompe profundamente. Talvez o seu gênio, a despeito de toda a sua sapiência humana, resida mais no reino da aspiração do que os estudiosos puderam até o momento perceber. Segundo entendo, em última análise, Olenka é uma denúncia da aspereza irônica das nossas próprias almas.
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O presente artigo foi extraído do livro Gênio - os 100 autores mais criativos da história da literatura. Tradução de José Roberto O'Shea. Editora Objetiva.

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