quinta-feira, 27 de agosto de 2009

Teatro de Protesto

Robert Brustein


O Teatro de Protesto é extremamente consciencioso a seu próprio respeito e auto-comprometido, como convém a um movimento romântico. E, à semelhança de outros românticos, o dramaturgo participa de sua obra num grau sem precedente. Strindberg e O'Neill quase não se distinguem de seus heróis; Ibsen e Shaw identificam-se bastante com seus heróis; Brecht esconde suas experiências nas próprias peças, mas fala diretamente através da figura de um narrador, na terceira pessoa; Pirandello e Genet modelaram suas obras até um plano conceitual quase solipsístico; e até Thecov paira sobre suas peças como uma presença moral. Quer se envolva como idéia ou personagem, o moderno dramaturgo está continuamente explorando as possibilidades de sua própria personalidade, não só representando mas exortando, não só dramatizando os outros, mas examinando a si próprio.

Apesar de tudo, o Teatro e Protesto só parcialmente é subjetivo; o dramaturo rebelde continua a observar os requisitos de sua forma. Uma peça desenvolve-se através do diálogo, e o diálogo implica debate e conflito. Sem debate, o drama é propaganda, sem conflito, mera fantasia. O dramaturgo rebelde poderá desejar que a sua arte seja uma representação viva de sua revolta, mas tal desejo é disciplinado pela sua consciência objetiva.

O rebelde que deseja transformar o mundo é também um artista que deve representá-lo com exatidão; o romântico que destruiria todas as fronteiras é também um classicista, aceitando limitações na vida e na arte. Essa ambivalência faz com que o dramaturgo rebelde vacile entre a negação e a afirmação, entre a rebeldia e a realidade. Incapaz de dominar suas contradições, dramatiza-as em suas peças, graças a uma forma em que as tensões não precisam ser resolvidas.

Assim, conquanto cada um dos dramaturgos rebeldes tome a revolta e o protesto como seu tema central, também os critica em nome da realidade; ao mesmo tempo, identifica-se e repudia os seus personagens. É o conflito entre idéia e razão - entre concepção e execução que forma a dialética central do drama moderno. Na verdade, o dramaturgo rebelde é aquele que sonha e submete seus sonhos à prova real. Isto talvez sugira por que o conflito de ilusão e realidade é um tema de tal importância no drama moderno: ilusão e realidade são os pólos gêmeos da imaginação do dramaturgo.

O Teatro de Protesto é o templo de um sacerdote sem Deus, sem uma ortodoxia, sem o que se possa chamar de congregação, que conduz seu serviço litúrgico dentro da hedionda arquitetura do absurdo. Missionário da discórdia, propaga o evangelho da insurreição, tentando substituir os valores tradicionais por uma visão inspirada, procurando improvisar um ritual na base da angústia e da frustração.

Podemos distinguir três categorias de revolta: messiânica, social e existencial. A revolta messiânica ocorre quando o dramaturgo se insurge contra Deus e tenta ocupar o seu lugar; o sacerdote contempla sua imagem no espelho. A revolta social ocorre quando o dramaturgo se insurge contra as convenções, a moral e os valores do organismo social; o sacerdote volta seu espelho para a sua platéia. A revolta existencial ocorre quando o dramaturgo se insurge contra as condições de sua existência: o sacerdote volta o espelho para o vazio.

A revolta messiânica é a fase inicial do drama moderno e a mais ostensivamente romântica. Podemos encontrá-la em Ibsen, Strindberg, Shaw e O'Neill. Floresce de novo em Genet e caracteriza dramaturgos secundários, como Wagner, D'Annunzio, Sartre e Camus. A revolta messiânica é a mais subjetiva, grandiloquente e egoísta de todas as rebeliões dramáticas. Com efeito, foi o messianismo que determinou o Teatro de Protesto. E embora a expressão seja mais ruidosa no começo do movimento, seus reflexos podem sentir-se através de todo o teatro moderno.

O drama messiânico é um meio de libertação absoluta, desimpedido de regras dramáticas ou limitações humanas, através do qual o dramaturgo se entrega ao seu insaciável apetite de infinito. Concebendo o universo como uma projeção de sua personalidade, que pode ser alterado ou manobrado através da vontade sobre-humana, imagina-se um Criador superior a Deus, destinado a transformar a vida em algo mais ordenado do que a confusão sem regra nem sentido que vê à sua volta.

A revolta social é muito menos ambiciosa, se bem que muito mais familiar às platéias modernas: caracteriza as peças mais conhecidas da cena contemporânea. A revolta social domina as peças modernas de Ibsen, os dramas naturalistas de Strindberg, as ações íntimas de Tchecov, a maior parte da obra de Shaw, uma grande parte de Brecht, uma parcela de Pirandello, assim como os dramas rurais de Synge e Lorca, as parábolas de Dürenmatt e a totalidade da obra de dramaturgos secundários como O'Casey, Odets, Miller, Osborne, Wesker e Frisch.

A revolta social é, evidentemente, um aspecto habitual do drama messiânico, mas aí está subordinada a outras matérias; quando domina uma peça, trata-se de uma manifestação relativamente modesta. A ênfase do drama transfere-se das curas radicais para os diagnósticos cuidadosos, em que o paciente ocupa o palco e o médico se retira para os bastidores. Em vez de examinar as relações entre o homem e Deus, o dramaturgo concentra-se no homem em sociedade, em conflito com a comunidade, com o governo, a academia, a igreja, a família.

A revolta existencial ocorre durante a velhice do drama moderno, embora cronologicamente, possa algumas vezes aparecer muito antes. É a revolta dos fatigados e dos desesperados, refletindo depois da desintegração das energias idealistas, exaustão e desapontamento. Isto explica sua relação íntima com a revolta messiânica, pois, na realidade, é um desenvolvimento inverso do impulso messiânico.

A revolta existencial representa o romantismo introvertido e começando a apodrecer. Extremamente hostil aos ideais messiânicos, totalmente descrente do individualismo messiânico, o rebelde existencial evidencia, porém, vestígios das antigas exigências radicais. É um neo-romântico, em fúria contra a existência, envergonhado do ser humano, revoltado contra seu próprio corpo. Uma das mais vigorosas características identificadoras do drama existencial é uma atitude em relação à carne, que é usualmente descrita em imagens de esterco, lama, cinzas e matérias fecais num estado de decomposição e decadência.
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Este artigo, aqui resumido, foi extraído de O teatro de protesto (Zahar Editores, Rio de Janeiro), e está na íntegra publicado na revista Cadernos de Teatro nº 40/1968, edição já esgotada.

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